Carlos Lamarca, novembro de 1969*
Sempre afirmei para todos os escalões, que eu não servia a ninguém, servia ao Brasil e nele via a esperança de, mediante uma tomada de consciência, terminar com as injustiças, a fome, a miséria e a incultura.
As Forças Armadas no Brasil, como em todos os países capitalistas, são instrumentos de opressão de uma classe dominante, são mantidas pelo que é expropriado do povo explorado. Servir ao Exército deveria significar servir ao povo, aos explorados, acabando com o domínio de uma classe, mas a formação militar, obstrui as ideias de liberdade, patriotismo, de soberania, impedindo a compreensão da realidade da sociedade brasileira.
Sei como é difícil para o militar compreender a realidade. Desde muito jovem o militar sofre brutal lavagem cerebral por meio de uma propaganda levada à prática pelo processo de impregnação psicológica. Frases feitas são repetidas diariamente, durante anos, sem que sejam aprofundadas dentro da realidade nacional. Sei também que é duro, quando se toma consciência da realidade, não poder vivê-la, muitos militares estão neste estado. A existência e a consciência não podem estar em contradição. Para justificar a inglória existência como instrumento de uma classe opressora, a consciência do ser militar é ultrajada, vilipendiada, até que se sinta um herói pela missão que lhe cabe. É desolador, mas é verdade.
À Pátria foi imposta a submissão política, econômica e militar aos EUA. O governo apregoa um desenvolvimento que não existe para o povo. Não chega a ele. A classe dominante se regozija. Nunca foi tão fácil explorar, toda a máquina opressora está funcionando a pleno vigor. Eis o ideal contrarrevolucionário de 1964. A exploração passa a ser oficializada por novas leis que tiram o direito de defesa legal aos explorados. Os trabalhadores passam a ser violentamente reprimidos nas suas justas reivindicações. Os opressores detêm a bandeira da legalidade e massacram o seu próprio povo. As atrocidades não são publicadas, a miséria e a fome são “esquecidas” no palavreado dos banquetes oficiais. Eu participei de muitos e sei como são, sei como eles se referem ao povo. Ao povo oprimido só resta um caminho: o da luta armada, longa e paciente. O futuro a ele pertence e o momento histórico exige dos que podem se constituir na sua vanguarda, a firme determinação de empunhar uma arma e lutar.
Quando ouvirem as frases feitas, pensem na miséria do nosso povo e qual a responsabilidade que cabe a cada um perante ele. Quando ouvirem falar das atrocidades que dizem existir nos países socialistas, lembrem-se do horror das torturas que praticam nas unidades da Polícia do Exército (PE), no Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e no Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), onde arrancam unhas, aplicam violentos choques, espancam, queimam com maçaricos e matam, não respeitando nem mesmo os velhos, mulheres e menores. Eu assisti em 1964, as torturas que praticavam no quartel. Não compreendia como era possível um ser humano lançar-se sobre outro, indefeso, com tal selvageria. Neste ano as Forças Armadas deixaram cair a máscara e em breve serão obrigadas a demonstrar as suas atrocidades ao povo e, por isso, já iniciaram a preparação psicológica. As Forças Armadas não estão inovando nada, isto faz parte de um processo de degradação moral. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) está assassinando religiosos e mais tarde trucidará mulheres e crianças para que sejam culpados revolucionários, também não estão inovando, noutros países fizeram isto e não impediram que o processo revolucionário evoluísse.
Em nome da liberdade, impedem a liberdade de pensamento, de locomoção, de eleger e ser eleito, de reunião, de exercer profissão, de estudar, de greves, de viver dignamente. Em nome da moral prendem bicheiros e trucidam marginais, como se eles não fossem um subproduto desta sociedade. Prendem um, somente um, explorador do povo, como se não houvesse todo um sistema internacional de exploração. Dizem permitir liberdade de religião, mas ocupam conventos, prendem e torturam padres e freiras, cujo único crime é seguir, na prática, os princípios do Evangelho. Pedem sacrifício enquanto sacrificam e se locupletam disto. Dizem amar, mas odeiam ferozmente o povo, eu sei.
Sabemos que torturam nossos companheiros, que assassinam covardemente, que injuriam, que falseiam, que roubam, enfim, que oprimem nosso povo. A tudo isto respondemos com a firme determinação de lutar, porque a nossa causa é justa, mesmo sabendo que seremos torturados e mortos se cairmos. Torturam-se e matam-se pessoas, mas não ideias. Historicamente vitoriosos, avançamos até que a morte nos alcance. O processo revolucionário continuará sempre, e todos os povos serão livres.
OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER.
* Carta de Carlos Lamarca, assinada também como Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), para circulação em formato de manifesto entre os miliares do país, com fontes no Arquivo Brasil Nunca Mais – BNM (nº 42, 66, 95 e 180), presente no livro “Lamarca – Ousar Lutar, Ousar Vencer”.