Assata, aquela que luta

Artigo publicado como apresentação do livro Assata Shakur – Revolucionária Negra (125 págs; 2022).

É um fim de manhã ensolarado de uma terça-feira, dia 11 de setembro de 1979, e o tempo seco de outono é uma característica desse período em Nova Jersey. Por volta das 11h, um operativo batizado como “A Família” leva a cabo uma ação de expropriação do carro-forte que saia carregado de dólares da loja de departamentos Bamberger’s, no distrito de Paramus. Dois guardas são feitos reféns e os revolucionários que pertenciam ao Exército de Libertação Negra (BLA, na sigla em inglês) e a Organização Comunista de 19 de Maio (M19CO) conseguem levar 105 mil dólares, após uma bem sucedida fuga e a liberação dos guardas. O comando guerrilheiro, do qual participam Mutulu Shakur, Marilyn Buck, Kuwasi Balagoon e outros revolucionários negros tem um objetivo claro, financiar a operação para libertar Assata Shakur.

Quase dois meses após a expropriação de Paramus, em 2 de novembro daquele ano, um novo operativo de “A Família” irá colocar em prática o plano de libertação de Assata. Os revolucionários que protagonizaram a ação sintetizam bem o cenário da luta armada revolucionária nos EUA em fins dos anos 1970, após uma década inteira de brutal repressão do FBI e do COINTELPRO que atingiu fortemente não apenas os panteras negras e o BLA, mas também a Weather Underground Organization (WUO) e as organizações revolucionárias de chicanos, porto-riquenhos e nativos americanos. O Dr. Mutulu Shakur, foi um integrante do Revolutionary Action Movement (RAM) e um dos fundadores da Republic of New Afrika (RNA) que se juntou aos ex-panteras na formação do BLA, se casou com Afeni Shakur em 1975 e foi padrasto de quem anos mais tarde viria a ser o maior ícone do rap nos EUA, Tupac Shakur. Sekou Odinga, havia se juntado a Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU), fundada por Malcolm X, antes de se tornar uma liderança do Partido Pantera Negra em Nova York, depois participar da seção internacional do BPP liderada por Eldridge Cleaver na Argélia e finalmente aderir ao BLA. Marilyn Jean Buck foi uma poeta marxista e militante anti-imperialista que compôs o Comitê Organizador Fogo na Pradaria (PFOC, na sigla em inglês), primeiro ligada a WUO e depois a May 19th Communist Organization, sendo a única mulher branca a também participar organicamente do BLA. Silvia Baraldini, uma revolucionária ítalo-americana que participou ativamente da mobilização no caso Panther 21 e no apoio a organização revolucionária porto-riquenha Fuerzas Armadas de Liberación Nacional (FALN), foi também do PFOC e da M19CO. Mtyari Sundiata foi um integrante da Republic of New Afrika que aderiu ao BLA. 

Na data que entraria para a história política dos EUA como o “Dia da Libertação de Assata Shakur”, Odinga se passando por visitante e aproveitando o baixo nível de segurança da penitenciária consegue entrar no Clinton Correctional Facility for Women, em Nova Jersey, após localizar JoAnne Chesimard lhe passa uma arma e rendem os guardas prisionais usando pistolas, tomam uma van do Centro Correcional e conseguem escapar com Cleo, codinome usado para identificar Assata, que é caracterizada pela repressão como a alma do Black Liberation Army. Mutulu, Mtyari Sundiata e Marilyn Buck também estão presentes na ação, um segundo carro dirigido Silvia Baraldini ainda é usado na fuga após abandoarem a van e os guardas sequestrados. Assata é levada para um aparelho e vai permanecer por alguns meses clandestina em diversos locais do país até seguir em fuga para as Bahamas em 1980 e ser acolhida como exilada política pelo governo cubano oficialmente em 1984. Diversas demonstrações de solidariedade do movimento de libertação negra ocorrem nos EUA e um grande ato é realizado alguns dias após a ação de libertação de Assata com cerca de 5 mil manifestantes em Nova York carregando cartazes com a palavra de ordem “Assata Shakur é bem-vinda aqui”, demonstrando apoio a JoAnne e a reivindicação do BLA por uma nação negra independente.   

Assata Shakur desempenhou um papel importante no processo de reorganização do Exército de Libertação Negra que havia sido atingindo por uma brutal repressão após a intensa atividade armada que a organização desenvolveu entre 1971-72, mas foi a partir do episódio da sua prisão em 2 de maio de 1973, os sete julgamentos criminais contra ela que se seguiram até 1977 e a mobilização realizada pelo Comitê em Defesa de Assata Shakur, que JoAnne tornou-se uma figura pública nacionalmente conhecida. No incidente de 1973, que ocorreu quando um carro com integrantes do BLA foi parado pela polícia na autoestrada de Nova Jersey, Assata e o policial estadual James Harper foram baleados, Zayd Malik Shakur e o policial Werner Foerster morreram, Assata ficou ferida, sendo presa juntamente com Sundiata Acoli.

O BLA não era uma organização de tipo tradicional, era muito mais um conceito organizacional, com grupos armados que atuavam de forma compartimentada e com pouca coordenação entre si, sem uma liderança central. A formação do BLA remonta a dois fatores fundamentais da luta de libertação negra nos EUA, primeiro ao processo de radicalização de Malcolm X no fim de sua vida e a orientação política que deu contornos iniciais a noção de “nacionalismo negro revolucionário”, e segundo, as violentas lutas internas dentro do Partido Pantera Negra em 1971, cujo símbolo maior foi o bate-boca público entre Huey Newton e Eldridge Cleaver, mas que envolveram também a expulsão de Geronimo Ji-Jaga, então Vice-Ministro da Defesa do Partido, a briga entre o Comitê Central e o capítulo de Nova York no contexto do caso Panther 21, e os assassinatos dos panteras Robert Webb e Samuel Napler, que foram atribuídos as facções em luta no BPP.           

El-Hajj Malik Al-Shabazz, ou Malcolm X, a mais proeminente figura da luta negra nos EUA, ao lado de Martin Luther King Jr., havia rompido com a Nação do Islã (NOI) e a filosofia de Elijah Muhammad em 1964, ao se afastar da NOI da qual foi um eloquente porta-voz, fundou a Organização da Unidade Afro-Americana (OUAA) e coordenou um projeto político paralelo com Max Stanford, que havia fundado em 1962 o Movimento de Ação Revolucionária (RAM, na sigla em inglês), uma organização que mesclou o nacionalismo negro e a orientação marxista-leninista com forte influência maoísta, iniciando a construção das Guardas Negras como seu braço armado. Segundo Malcolm, a OUAA deveria ser uma frente ampla com atuação pública e o RAM a organização clandestina e armada para autodefesa do povo negro. O movimento de Malcolm para avançar no projeto de uma organização nacionalista negra revolucionária envolvia também Robert F. Williams, antigo líder da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), então exiliado em Cuba e depois na China maoísta, e que viria a se tornar presidente honorário da República da Nova África.

O projeto nacionalista nacionalismo negro revolucionário de Malcolm, Stanford e Williams, seria fortemente abalado com o assassinato do carismático líder muçulmano negro em 21 de fevereiro de 1965, que falsamente foi atribuído a NOI, mas que sempre teve por trás a CIA e o FBI. A morte de Malcolm foi um duro golpe para a luta de libertação negra nos EUA, mas a linha política do RAM terá sequência tanto no Partido Pantera Negra, quanto no Exército de Libertação Negra.

Fundado por Bobby Seale e Huey Newton em 15 de outubro de 1966 como Partido Pantera Negra para Autodefesa, o BPP teve uma ascensão meteórica. Em 1970, classificado como “a maior ameaça à segurança interna do país” pelo diretor do FBI, J. Edgar Hoover, o partido reunia milhares de militantes e apoiadores, com 250 mil leitores do jornal The Black Panther, quase 70 escritórios espalhados pelos EUA e mais de 60 programas comunitários de sobrevivência funcionando por todo o país que envolviam alimentação, saúde, educação, moradia, etc. A mobilização das massas negras marginalizadas e a política de unidade antifascista, multirracial e revolucionária com os demais setores oprimidos na América racista que se materializou na formação da “Frente Unida Contra o Fascismo” (UFAF), reunindo organizações de chicanos, porto-riquenhos, brancos pobres, povos originários e outros setores, alertava o governo dos EUA, que manteve uma política permanente de perseguição, prisão e assassinatos de lideranças, como do promissor presidente dos panteras em Illinois, Fred Hampton, 4 de dezembro de 1969. O partido, que entendia o povo negro como uma “colônia interna” dos EUA, também conseguiu um forte respaldo internacional de regimes socialistas como da China, de Cuba, do Vietnã e da Coreia Popular, além de manter uma seção internacional do partido baseada na Argélia (ver detalhes em O Manejo Correto de uma Revolução, Huey P. Newton, 2021, Coleção Panterismo).

A saída de Huey da prisão em 1970 e o processo de controle do partido pelo Comitê Central abrem também uma grave crise interna a partir de 1971, agravada em muito pelo alto e sofisticado nível de repressão do COINTELPRO, uma operação de guerra do FBI através de um programa ilegal e clandestino, cujo objetivo, segundo o próprio J. Edgar Hoover, era “expor, perturbar, desviar, desacreditar, neutralizar e eliminar” militantes e dirigentes do BPP.  O FBI produz centenas informações falsas e infiltrações, que somadas as divergências ideológicas e as lutas internas, ocasionam expurgos, proibição de novos membros e diversos problemas dentro da organização. É a soma da divergência entre Newton e Eldridge Cleaver, que acusou o Ministro da Defesa de desvios reformistas, e a crise entre capítulo de Nova York e o Comitê Central, onde as lideranças de NY acusam o CC de falta de apoio jurídico e financeiro para o caso Panther 21 e são acusados, por sua vez, de desvios reacionários e “nacionalistas culturais”, que vão colaborar com o racha entre as facções em luta e o surgimento do Black Liberation Army. 

A retórica revolucionária de Cleaver, que se desloca do exílio em Cuba para a Argélia, alegando falta de apoio do governo revolucionário da Ilha para a luta armada nos EUA, se soma ao trabalho de mobilização clandestina para a guerrilha urbana realizado por Geronimo Ji-Jaga, que era um experiente ex-militar condecorado do Vietnã e foi expulso por Huey do partido, além da liderança de Zayd Shakur, de Dhoruba bin Wahad e de Sekou Odinga, que retornou da Argélia na clandestinidade, possibilitam a formação da nova organização, que mesmo com uma estrutura mais descentralizada controla boa parte do antigo BBP em Nova York, alguns capítulos locais pelo país e dá início a um novo jornal, o Right On!.

Renegando, em certa medida, a liderança de Cleaver do exterior e o nome Exército de Libertação Afro-Americano que havia sugerido, mas conseguindo aglutinar também membros veteranos da luta negra radical do RAM e da RNA, além de ex-panteras e outros grupos negros, a primeira fase do BLA é marcada pela controversa liderança de Dhoruba bin Wahad e uma alto grau de violência e repressão. A guerrilha negra, atuando muitas vezes de forma coordenada com os radicais brancos da Weather Underground, responde à guerra racial da América contra o povo negro com assassinatos de policiais, expropriações e atentados em diversas partes dos EUA. A pesada repressão que se abate sobre o BLA e a WOU, induz ao trabalho cada vez mais coordenado entre as organizações revolucionárias, também surgem novos grupos armados como a M19CO, a partir da destruição da Weather Underground e com uma liderança feminina, além do polêmico Exército Simbionês de Libertação (SLA) entre 1973-75, as combativas Fuerzas Armadas de Liberación Nacional porto-riquenha, a partir de 1976, e a maoísta New World Liberation Front (NWLF), em 1977, que com outros grupos radicais menores mantém viva a opção pela luta armada revolucionária no coração da besta imperialista por toda a década de 1970, realizando dezenas e dezenas de atentados, expropriações e ações de propaganda armada. Surgem experiências de colaboração político-militar como “A Família” e o BLA vai se reinventando nesses anos sob a liderança de Mulutu Shakur, mantendo suas atividades armadas até 1981, quando a maioria dos seus combatentes estavam finalmente mortos, presos ou exilados. A luta armada nos EUA ainda se estenderia heroicamente até 1985 com a M19CO, a United Freedom Front (UFF) e ações pulverizadas de pequenos grupos revolucionários.

É dessa geração de revolucionários e revolucionárias que decidiram enfrentar o demônio yankee dentro da sua própria casa que Assata Shakur faz parte. Uma representante do mais avançado setor da luta de libertação negra nos EUA. Sua bem-sucedida fuga da prisão através da ação do comando guerrilheiro “A Família” em 1979 representou uma grande humilhação para a aperfeiçoada e brutal repressão da América racista. Vivendo exilada em Cuba sob proteção do governo socialista desde 1984, Assata Shakur é uma mulher negra que simboliza a luta revolucionária contra o racismo e o capitalismo, que ousou enfrentar o Império e por isso figura no topo da lista de terroristas mais procuradas pelo FBI desde 2013, com uma recompensa de U$ 2 milhões por sua captura.

A opção radical de JoAnne Deborah Byron, seu nome de batismo, pode ser sintetizada pela passagem da sua Carta ao Meu Povo, quando afirma que “revolucionários negros não caem do céu”, e completa dizendo que “somos criados por nossas condições” e “moldados na nossa opressão”. JoAnne nasceu em 16 de julho de 1947, no bairro pobre conhecido como South Jamaica, no Queens, em Nova York, mas passou parte da infância com seus avós em Wilmington, na Carolina do Norte, e retornou para Nova York, onde concluiu seus estudos e foi acolhida por sua tia materna, Evelyn A. Williams, uma ativista negra dos direitos civis.

Em 1967 foi presa pela primeira vez após protestos estudantis, e nesse mesmo ano, se casou com seu colega e ativista, Louis Chesimard. Mudou-se para Oakland, onde ingressou no Partido Pantera Negra e atuou nos programas de sobrevivência. Após se separar em 1970, voltou para Nova York onde assumiu um papel de liderança no capítulo do BPP no Harlem. A partir da influência da República da Nova Áfrika, organização revolucionária da qual Betty Shabazz, viúva de Malcolm, era uma integrante notável, e que levantou a reivindicação de uma nação negra independente na região do chamado “Cinturão Negro”, no sudeste dos EUA, JoAnne adotou a partir de 1971 o nome Assata Olugbala Shakur. Assata vem da tradição muçulmana na África Ocidental e significa “aquela que luta”, Olugbala é um nome yorubá que significa “amor pelo povo” ou “salvação”, Shakur significa “agradecido” e foi adotado como sobrenome por JoAnne pelo fato de ter sido adotada simbolicamente por El Hajj Sallahudin Shakur, um veterano muçulmano negro próximo a Malcolm X, pai biológico dos panteras que também aderiram ao BLA, Zayd Malik e Lumumba Abdul Shakur, que foi marido de Afeni, mãe de Tupac. O nome tem origem histórica em Muhammad ibn ‘Ali ‘Abd ash-Shakur, o último Emir de Harar na Etiópia (1856-1875). 

Absolvida em seis dos sete julgamentos que enfrentou, Assata engravidou de Kamau Sadiki em 1973, seu companheiro de BLA e também preso político, dando à luz ainda encarcerada a sua primeira e única filha, Kukuya Amala. Tratada barbaramente na prisão, foi condenada à prisão perpétua em 1977 por um júri racista em um julgamento tendencioso. Assata se definiu como “uma revolucionária negra”, que declarou “guerra aos ricos que prosperam com a nossa pobreza, aos políticos que mentem para nós com rostos sorridentes e a todos os estúpidos, robôs sem coração que protegem a eles e a sua riqueza”, se tornando um símbolo de resistência contra a América racista, cantada em músicas como “Rebel Without a Pause” do Public Enemy, “A Song for Assata” de Common e “Words of Wisdom” do seu afilhado Tupac Shakur, também foi tema de documentários e seu caso permanece com uma questão diplomática entre Cuba e os diferentes governos reacionários dos EUA.

Nesta antologia política que apresentamos aqui com novas traduções, cartas, documentos e entrevistas, Assata narra por suas próprias palavras a trajetória de uma prisioneira de guerra e exilada política que “defendeu e segue defendendo mudanças revolucionárias”, com o “fim da exploração capitalista, a abolição das políticas racistas, a erradicação do sexismo e a eliminação das políticas de repressão”, como afirmou em sua Carta ao Papa.

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