Uma carta ao Papa de Assata Olugbala Shakur

Exiliada política em Cuba desde os anos 1980, a ex-pantera negra e combatente do Exército de Libertação Negra (BLA) Assata Shakur foi presa em 1973 e condenada em 1977 pela morte de um policial. Em 1979, uma ação da Organização Comunista 19 de Maio, que reunia membros do BLA, da Weather Underground e da República Nova Áfrika (RNA), conseguiu libertar Assata de uma prisão em Nova Jersey. Seguindo para Cuba, a revolucionária negra recebeu asilo político na ilha socialista oficialmente em 1984. Em 1998, por ocasião da visita do Papa João Paulo II a Cuba e após pressões feitas pela Polícia de Nova Jersey, Assata escreveu ao pontífice, em carta datada de 15 de janeiro de 1998, em Havana:           

Sua Santidade,

Eu espero que essa carta chegue ao senhor em boa saúde, boa disposição e envolta pelo espírito da generosidade. Eu tenho que confessar que nunca me ocorreu antes escrever para você e eu me sinto emocionada e maravilhada por ter esta oportunidade.

Apesar das circunstâncias terem me obrigado a entrar em contato com você, eu estou feliz de ter essa ocasião para tentar e cruzar as fronteiras que, caso contrário, nos separariam.

Eu sei que a Polícia Estadual de Nova Jersey lhe escreveu e pediu para que o senhor intervenha e ajude a facilitar a minha extradição de volta aos Estados Unidos. Eu acredito que esse pedido é sem precedentes na história. Já que eles se recusaram a tornar a carta que lhe mandaram pública, apesar de não terem hesitado em publicitar o pedido, eu me encontro totalmente desinformada sobre as acusações que eles estão fazendo contra mim. Por que, eu me pergunto, eu chamo tanta atenção? O que eu represento que é tamanha ameaça?

Por favor, deixe-me contar um pouco sobre mim mesma. Meu nome é Assata Shakur e eu nasci e cresci nos Estados Unidos. Eu sou uma descendente de Africanos que foram sequestrados e trazidos para as Américas como escravos. Eu passei o início da minha infância no Sul, segregado e racista. Mais tarde, eu me mudei para a parte norte do país, onde que percebi que as pessoas Negras eram igualmente vítimas do racismo e da opressão.

Eu cresci e me tornei uma ativista política, participando de lutas estudantis, do movimento antiguerra e, principalmente, do movimento pela libertação de Africanos-Americanos nos Estados Unidos. Depois, eu me juntei ao Partido Pantera Negra, uma organização que foi alvo do COINTELPRO, um programa que o Departamento Federal de Investigação (FBI) implementou para eliminar toda oposição às políticas do governo dos EUA, para destruir o Movimento pela Libertação Negra nos EUA e para desacreditar ativistas e eliminar lideranças em potencial.

Como resultado, fui alvo do COINTELPRO. Eu, assim como muitos outros jovens, fiquei cara-a-cara com a ameaça de prisão, clandestinidade, exílio ou morte. Neste ponto, acredito que é importante deixar uma coisa bem clara. Eu defendi e ainda tenho defendido mudanças revolucionárias na estrutura e nos princípios que governam os EUA. Eu defendo o fim da exploração capitalista, a abolição das políticas racistas, a erradicação do sexismo e a eliminação das políticas de repressão. Se isso é um crime, então eu sou totalmente culpada.

Para encurtar a história, deixe-me enfatizar que justiça para mim não é a questão, mas sim justiça para o meu povo é o que está em jogo. Quando o meu povo receber justiça, eu tenho certeza que eu também receberei. Eu sei que a Sua Santidade chegará às suas próprias conclusões, mas me sinto na obrigação de apresentar as circunstâncias em torno da aplicação da “justiça” em Nova Jersey. Eu não sou a primeira, nem a última, a ser vítima do sistema da “justiça” de Nova Jersey. A Polícia Estadual de Nova Jersey é famosa pelo seu racismo e brutalidade. Muitas ações legais foram movidas contra ela e, recentemente, em um procedimento de ação legal, a Polícia Estadual de Nova Jersey foi considerada culpada por ter “oficialmente sancionado uma política real de perseguir minorias com investigações e prisões”.

Apesar da população de Nova Jersey ser 78% branca, mais que 75% da população carcerária é composta de Negros e Latinos e 80% das mulheres nas prisões de Nova Jersey são mulheres de cor. Há 15 pessoas no corredor da morte no estado e 7 delas são Negras. Um estudo de 1987 descobriu que os promotores de Nova Jersey buscam a pena de morte em 50% dos casos envolvendo réus Negros e vítimas brancas, mas em apenas 28% dos casos envolvendo réus Negros e vítimas Negras.

Infelizmente, a situação de Nova Jersey não é exclusividade, mas reflete o racismo que permeia o país inteiro. Os Estados Unidos possuem a maior taxa de encarceramento do mundo. Há mais de 1,7 milhões de pessoas encarceradas nas prisões dos EUA. Esse número não inclui as mais de 500.000 pessoas em prisões de municípios e cidades, nem inclui o número alarmante de crianças em instituições juvenis.

A grande maioria daqueles atrás das grades são pessoas de cor e praticamente todos aqueles atrás das grades são pobres. O resultado dessa realidade é devastador. Um terço dos homens Negros entre 20 e 29 anos estão em prisões ou sob restrição do sistema de justiça criminal.

Prisões são grandes negócios nos Estados Unidos e a construção, direção e abastecimento das cadeias se tornou a indústria de maior crescimento do país. Fábricas estão sendo deslocadas para dentro das prisões e prisioneiros estão sendo forçados a trabalhar como escravos. Essa superexploração de seres humanos significa a institucionalização de uma nova forma de escravidão. Aqueles que não podem achar trabalho são forçados a trabalhar na prisão.

Não só as prisões estão sendo usadas como forma de exploração econômica, elas também servem como instrumento de repressão política. Há mais de 100 presos políticos nos EUA. Eles são africanos, porto-riquenhos, chicanos, norte-americanos, asiáticos e brancos progressistas que se opuseram às políticas do governo dos Estados Unidos. Muitos daqueles que foram alvos do COINTELPRO estiveram na prisão desde o começo dos anos 70.

Apesar da situação das prisões ser um indício de violações de direitos humanos dentro dos Estados Unidos, há outros indicadores, mais fatais. Existem atualmente 3.365 pessoas no corredor da morte e mais de 50% dessas pessoas aguardando a morte são pessoas de cor. Pessoas Negras são apenas 13% da população, mas somos 41% das pessoas que receberam a pena capital.

O número de pessoas assassinadas pelo Estado aumentou drasticamente. Só em 1997, 71 pessoas foram executadas. Um repórter especial designado pela Organização das Nações Unidas (ONU) descobriu sérias violações aos direitos humanos nos EUA, especialmente aos relacionados à pena de morte. De acordo com essas descobertas, as pessoas com doenças mentais eram sentenciadas à morte assim como pessoas com deficiência de aprendizado e menores de 18 anos. Séria parcialidade em relação à raça foi encontrada por parte de juízes e promotores.

Especialmente mencionado no relatório foi o caso de Mumia Abu-Jamal, o único preso político no corredor da morte, que foi sentenciado à morte por seus ideais políticos e por causa do seu trabalho como jornalista, expondo a brutalidade policial na cidade da Filadélfia.

Brutalidade policial é uma ocorrência cotidiana nas comunidades. A polícia tem licença efetiva para matar e eles matam crianças, idosos e quaisquer pessoas que consideram como inimigas. Eles atiram primeiro e fazem as perguntas depois. Dentro das prisões e cadeias, há no mínimo a mesma brutalidade que havia nas plantações escravistas. Um número crescente de presos tem sido encontrados enforcados em suas celas.

Os Estados Unidos está se tornando um lugar cada vez mais hostil a pessoas de cor e Negras. O racismo está crescendo vertiginosamente e a xenofobia também. Isso é especialmente verdade na esfera da política nacional. Políticos estão tentando culpar os Negros e pessoas de cor pelos problemas sociais.

Tem havido ataques em praticamente todas as ações afirmativas feitas para ajudar a corrigir os resultados acumulados de centenas de anos de escravidão e discriminação. Além disso, o governo parece determinado em eliminar todos os programas sociais que proveem assistência aos pobres, resultando em uma situação onde milhões de pessoas não possuem acesso à assistência de saúde básica, moradia decente ou educação de qualidade.

Foi com grande felicidade que eu li a mensagem de Natal que a Sua Santidade entregou. Eu lhe aplaudo por levantar a bandeira dos pobres, dos sem-teto, dos desempregados. O fato de você estar tratando dos problemas de hoje, o desemprego, a desesperança, o abuso infantil e os problemas das drogas é importante para pessoas de todo o mundo.

Um terço das pessoas Negras nos Estados Unidos vivem na pobreza e nossas comunidades estão infestadas de drogas. Nós temos todas as razões para acreditar que a CIA e as agências governamentais estão envolvidas no tráfico de drogas.

Apesar de nós vivermos em um dos países mais ricos, mais avançados tecnologicamente do mundo, nossa realidade é similar aos não desenvolvidos, países do Terceiro Mundo. Nós somos um povo que está verdadeiramente buscando liberdade e harmonia.

Toda a minha vida eu fui uma pessoa espiritualizada. Primeiro aprendi sobre a luta e o sacrifício de Jesus nas igrejas segregadas do Sul. Eu me converti ao catolicismo enquanto jovem. Na minha vida adulta eu me tornei uma estudante da religião e estudei o Cristianismo, o Islã, religiões Asiáticas e as religiões Africanas dos meus ancestrais. Eu passei a acreditar que Deus é universal por natureza apesar de chamarmos por nomes diferentes e com rostos diferentes. Eu acredito que algumas pessoas soletram God com um ‘O’, enquanto outras soletram com dois [good].

O que chamamos de Deus não é importante, desde que façamos o trabalho de Deus. Há aqueles que querem ver a ira de Deus cair sobre os oprimidos e não sob os opressores. Eu acredito que seja o fim dos tempos quando a escravidão, o colonialismo e a opressão podem ser realizadas sob a tutela da religião. Foi nas masmorras da prisão que eu senti a presença de Deus de perto e tem sido a minha crença em Deus, na generosidade dos seres humanos que tem me ajudado a sobreviver. Eu não tenho vergonha de ter estado presa e eu certamente não tenho vergonha de ter sido uma presa política. Eu acredito que Jesus foi um preso político que foi executado porque lutou contra as maldades do Império Romano, porque lutou contra a ganância dos vendilhões do templo, porque lutou contra os pecados e injustiça do seu tempo. Como um verdadeiro filho de Deus, Jesus falou pelos pobres, pelos dominados, pelos doentes e pelos oprimidos. Os primeiros cristãos foram jogados aos leões. Eu tentarei seguir o exemplo de tantos que se levantaram contra tamanha opressão.

Eu não estou escrevendo para pedir que interceda a meu favor. Eu não peço nada para mim. Eu apenas peço que examine a realidade social dos Estados Unidos e que fale contra as violações de direitos humanos que estão acontecendo.

Neste dia, aniversário de Martin Luther King Jr., eu me lembro de todos aqueles que deram suas vidas pela liberdade. A maioria das pessoas que vivem nesse planeta não são livres. Eu apenas peço que continue a trabalhar e rezar para acabar com a opressão e a repressão política. Eu acredito, do fundo do meu coração, que todas as pessoas na Terra merecem justiça: justiça social, justiça política e justiça econômica. Eu acredito que seja essa o único jeito com que nós iremos conseguir paz e prosperidade na Terra. Eu espero que você aproveite sua visita à Cuba. Este não é um país que é rico de coisas materiais, mas é um país que é rico em matéria humana, espiritual e moral.

Respeitosamente, Assata Shakur.

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