Meus queridos filhos: cartas inéditas de Carlos Lamarca

Cartas inéditas do capitão Carlos Lamarca publicadas no livro “Lamarca – Ousar Lutar, Ousar Vencer”.

Meus queridos filhos (I)

Carlos Lamarca, julho de 1970 [1]

Aproveito esta oportunidade de escrever para vocês porque tenho certeza que esta carta chegará com segurança. Já escrevi várias e não sei se chegaram a vocês. Eu não recebi nenhuma e estou triste com isso. Existe muita gente preocupada em pegar nossas cartas e guardá-las – essas pessoas se esquecem que somos gente e necessitamos, pelo menos, de algumas das pessoas que amamos. Entreguem as cartas para Darcy e Rosa [2] que eles enviarão para mim.

Sinto imensas saudades de vocês, passo muito tempo me recordando de quando estávamos juntos. Procuro lembrar de tudo, tudo, como vocês caminhavam, riam, falavam, cantavam e até pediam qualquer coisa. Procuro lembrar das imagens e as recordações de vocês junto a mim. 

Se passou um ano e meio desde que nos separamos, mas todos os dias penso em vocês e os sinto junto de mim. Durante este tempo passei por muitos problemas e dificuldades, porem sempre tive os bons momentos em que recordava de vocês.

Sei que vocês vão bem nos estudos, vocês estão cumprindo o que me prometeram. Quero que vocês se aperfeiçoem em tudo, principalmente, compreendam a História da Humanidade como a permanente luta de classes, que acabará um dia e então conheceremos a Paz. Preparem-se também para lutar onde for necessário para a acabar com a luta de classes.

Aqui lutamos também para que todas as crianças tenham o que vocês têm aí. Não se esqueçam da pobreza que existe aqui em nossa Pátria. César, se lembra como o pai de seu amigo Alexandro se suicidou por não ter dinheiro para comprar comida? Aí não falta nada para ninguém, porque aí foi feita a Revolução e estão construindo o Socialismo. Aqui, porém, temos muito que lutar para conseguir isso, mas nós conseguiremos.

Sei que na idade de vocês, as crianças necessitam muito dos pais e eu não posso ajudar vocês daqui. Sinto por isso, mas se todos os pais estiverem ocupados com seus filhos não poderíamos nos dedicar a luta. Espero que vocês compreendam que os pais também precisam lutar pelas outras crianças. Não quero que vocês me vejam como um herói, mas sim como um revolucionário como todos os demais companheiros que estão cumprindo seus deveres diante da História.

Sinto necessidade de conversar e passear com vocês, de deitarmos juntos abraçados e de fazer uma briguinha igual aquelas que deixavam bagunçado todo quarto ou rolarmos pela grama do parque, ou igual como na barragem quando passamos e jogávamos pedras. Sinto saudades de nossos piqueniques, dos churros e das pipocas, dos passeios e das viagens. Se não podemos estar juntos para isso, também não podemos nos esquecer de nada. Me pego pensando em como estarão vocês agora. Isso faz mais difícil escrever, para mim vocês são como eram, as mesmas crianças adoráveis.

Conheci aqui muitas crianças filhas de revolucionários, sete estão aí em Cuba – organizem aí um grupinho e a obrigação de cada um será ensinar o que sabe aos outros.       

Pratiquem bastante esportes, mas não se deixem fanatizar por nenhum. Repito para que vocês falem com a professora sobre a importância do tiro como esporte para ajudar o autocontrole e a concentração mental.

Hoje é aniversário da mamãe, o maior presente que vocês podem dar a ela é a aplicação nos estudos, colocando-se sempre na vanguarda. Vocês vão dar um beijo nela por mim, ama-la intensamente, tratando-a com muito carinho. Conversem bastante com ela, falem tudo o que eu não posso falar. Contem tudo a ela, pois é a maior amiga de vocês.

Algumas crianças que foram para aí também estão separadas de suas mães, para elas a vida é muito mais difícil. Mas a luta exige isso de nós e é o maior sacrifício que o revolucionário tem que fazer, porque o resto se suporta com relativa facilidade. Ofereçam para a mamãe todo o carinho que me davam e que eu não esqueço nunca – quantas saudades, filhinhos.       

Fujo dos pensamentos e tantas saudades, tentando me concentrar em leituras, mas me pego desviando a atenção de novo com o pensamento em vocês. Espero receber notícias de vocês e da mamãe. Beijos para vocês cheios de saudades.   

OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER.                              

[1] Carta de Carlos Lamarca aos seus filhos, César e Cláudia, datada de 16 de julho de 1970, traduzida a partir da versão datilografada em espanhol, com fonte disponível no Centro de Documentação e Memória (CEDEM/UNESP).   

[2] O nome das pessoas que Lamarca indica para encaminhar as cartas não aparece na versão datilografada em espanhol, os nomes fictícios que usamos fazem referência ao seu companheiro Darcy Rodrigues, recém chegado a Cuba após ser libertado com os 40 prisioneiros políticos trocados pelo embaixador alemão, e sua esposa, Rosalina de Freitas Anselmo.  

         

Meus queridos filhos (II)

Carlos Lamarca, maio de 1971 [1]

Tenho que fazer uma autocrítica por não haver dado maior importância à correspondência com vocês.  Até agora, em dois anos e quatro meses de separação somente recebi uma carta e sei que nem todas as que enviei chegaram. Isto é muito ruim, mas filhinhos, podem acreditar que vocês são uma força para mim.

Na carta que escrevi no ano passado fiz referência ao bilhete que César me deu e aos cabelos de Cláudia, eles estavam em uma carteira comigo, mas no último combate no Ribeira a carteira caiu do meu bolso e o inimigo a capturou. Perdi então também as fotografias de vocês e as que eu esperava não chegaram.

Fiquei muito encantado em imaginar César com 10 anos e tu também, Cláudia, que vai fazer 9 – devem estar bem grandinhos e quero os ver. Eu desejo muito conversar com vocês, para ouvir muitas coisas de vocês e lhes fazer muitas perguntas. Acredito que agora tenho mais condições de ajudar vocês e sinto dor ao saber que precisam muito de mim. Mas vocês devem compreender que o ser humano não pode ser apenas reprodutor, a vida não se resume em criar filhos para que eles também criem filhos. Enquanto existir a exploração do homem na Humanidade, é preciso que os revolucionários se levantem para impulsionar a Revolução Socialista.

A função de vocês, crianças brasileiras no estrangeiro, é prepararem-se para a luta aqui no Brasil, como os cubanos se preparam para construir o Socialismo em Cuba. Não quero dividir as pessoas por nacionalidades, todas as pessoas são cidadãs do mundo e tem o mesmo direito de lutar em qualquer lugar e devem dar a contribuição para a Revolução onde melhor podem fazê-la. Mas a Revolução no Brasil tem um caráter decisivo para a erradicação do imperialismo em toda América Latina, é necessário um grande esforço de todos os brasileiros. Vocês têm o direito de lutar em qualquer lugar, mas o primeiro lugar que os revolucionários devem considerar é o lugar onde nasceram.   

A tarefa de vocês agora é estudar muito, compreender profundamente o marxismo, compreender toda a luta de classes através da história e dos movimentos revolucionários atuais em todo o mundo.

Não sei como vocês estão, quais são seus problemas e preocupações. Por isso é muito difícil escrever e participar da vida de vocês. Penso muito em vocês, como vocês eram – e agora deve ser muito bonito conviver com vocês – imagino isso, mas é muito difícil imaginar algo que possa se aproximar do real.

A Revolução é difícil de fazer – Che disse que temos que endurecer, mas que não podemos perder a ternura.  A luta, então, deve acontecer também dentro de cada um de nós, de acordo com a prática revolucionária. Muitos caem mortos, muitos são presos, alguns se acovardam – e diante da violência, a imundice capitalista que existe em cada um de nós vai sendo expulsa e vamos mudando, endurecendo, capazes de suportar muitos sofrimentos. E não perdemos a ternura porque o ódio a classe exploradora existe pelo amor aos explorados. Esse amor nasce da consciência da exploração e da injustiça – nada devemos temer, pois quem perde a ternura, quem não ama, não tem condições para ser revolucionário.

A vida da mamãe também deve ser dura porque, definitivamente vocês não convivem muito com ela – pediria então a vocês que procurem ter uma grande compreensão durante os dias que se encontrem. Mas também não há dúvidas de que somente acompanhar o desenvolvimento de vocês é uma grande alegria.

Pela carta, vocês sentem como é difícil escrever estando longe tanto tempo – mas sempre estou pensando em vocês. E quando a situação está difícil sonho com vocês – é um mecanismo de defesa de nossa mente que funciona para suportar grandes tensões. Mas o sonho é sempre aquela delícia, aqueles momentos que vivemos juntos. Mas acordo, penso como foi feliz toda nossa vida, penso igualmente muito em vocês e é uma mistura de alegria e saudade – alegria porque vocês existem e muitas saudades dos mínimos gestos, das palavras que vocês falavam e ficaram gravadas em mim, o bom dia Tabita, as conversas com Cláudia e nosso dialeto particular, da Catanga dos Brusodangas dela, da filhinha de Quica, de tantas coisas. Usei os nomes de vocês como nomes de guerra – César e Cláudio – quando conto aos companheiros que vocês me chamavam de João, quando trabalhamos na organização, eles acham muita graça. Sempre que posso, ouço a Rádio Havana ou a de Pequim, e sempre tem pessoas cheias de perguntas sobre tudo em Cuba. Ainda não sei como que vocês desejam encaminhar os estudos. Cláudia queria ser médica e César militar, em que vocês pensam agora?   

Apertem a mamãe com um grande abraço e a beijem muito. Ainda espero voltar a vê-los um dia e acabar com tanta saudade.

Muitos beijos para vocês três, com muito carinho. 

[1] Carta de Carlos Lamarca aos seus filhos, César e Cláudia, datada apenas como de maio de 1970, traduzida a partir da versão datilografada em espanhol, com fonte disponível no Centro de Documentação e Memória (CEDEM/UNESP).   

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