O pensamento político de Carlos Lamarca – Entrevista à Revista Punto Final

Entrevista realizada no início setembro de 1969 pela revista chilena Punto Final, alinhada com as posições do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR), ao final da entrevista inserem a seguinte nota: “posteriormente à esta entrevista, ocorreu uma divisão na organização VAR-Palmares. O capitão Lamarca se separou da mesma e voltou a organizar a VPR”. A VAR-Palmares foi fundada a partir de encontros que aconteceram entre junho e julho de 1969 da VPR com a militância que se articulou como O. (abreviatura para “Organização”, chamada também de “O Pontinho”), após o COLINA ser quase destruído pela repressão. Em agosto de 1969, a VAR-P realizou seu primeiro congresso, em Teresópolis (RJ), logo após, em setembro, se consolida o chamado “racha dos sete”, com um setor voltando a se reivindicar como VPR e do qual participaram Lamarca e lara. Utilizamos como fonte para a tradução a versão em espanhol publicada em Cuadernos de Marcha nº 38 “Brasil – Perspectivas de la revolución”, de junho de 1970, Montevidéu, Uruguai.

Punto Final – Quais são as razões que o levaram a abandonar o exército brasileiro?

Carlos Lamarca – Sou um dos poucos oficiais brasileiros de origem operária. Estudei com o sacrifício de meus pais e escolhi a carreira por acreditar que nas Forças Armadas haveria condições de contribuir com o desenvolvimento e a emancipação do meu país.

Logo me desiludi. O exército brasileiro, em seus degraus superiores, é a vanguarda da reação no Brasil. Sua função principal é de polícia interna. Serve de instrumento das classes dominantes para afirmar sua atual situação de privilégio, que mantém a imensa maioria da população brasileira em terríveis condições de exploração, miséria, analfabetismo e enfermidades. Jovens oficiais e soldados recebem prédicas diárias sobre o “inimigo interno da democracia brasileira”. E quem é este inimigo interno? São os operários que lutam pelo aumento de seus ínfimos salários e pela liberdade de organização de classe; são os estudantes que lutam por mais verbas, ensino gratuito e liberdade de organização; são os intelectuais e artistas, cineastas, jornalistas, que lutam pela liberdade de criação artística e científica; e, enfim, todo o povo brasileiro que pede eleições livres, melhores condições de trabalho. Todo esse anseio de mudança, de fim de um sistema injusto, é creditado a “minorias subversivas pagas pelo comunismo internacional”.

Dentro das forças armadas vi privilégios, vi falta de respeito ao povo trabalhador, vi torturas indescritíveis. A partir de 1964, percebi que haviam se esgotado as possibilidades de solução pacífica para os problemas brasileiros.

Durante esses anos, busquei contato com as organizações revolucionárias que propusessem um caminho para a revolução brasileira coerente com as conclusões a que cheguei. Nesse sentido, formamos um pequeno grupo, dentro de minha guarnição, de companheiros militares que pensávamos de igual maneira.

Em meados de 1968, um grupo assaltou o Hospital Militar e expropriou 9 fuzis FAL. Imediatamente nos colocamos em campanha para tentar localizar esse grupo, pois pensávamos que quem se interessava por armas longas estava efetivamente tratando de iniciar a luta guerrilheira no Brasil.

Esse grupo era a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), responsável também pelo justiçamento do capitão norte-americano Chandler, criminoso de guerra do Vietnã, em São Paulo. A partir de uma discussão política, meus companheiros e eu nos transformamos em uma célula da VPR.

A principal tarefa de nossa célula, por nós mesmos sugerida e aceita pelo comando da VPR, era a realização interna de uma grande ação de expropriação de armas de guerra no quartel de Quitaúna, em São Paulo, onde servíamos. A partir dessa ação, nós abandonaríamos o exército para nos dedicarmos plenamente à Revolução.

Punto Final – Essa ação foi realizada com êxito?

Carlos Lamarca – Não. Seu êxito foi apenas parcial. Dois dias antes da data prevista para a ação, marcada para 26 de janeiro de 1969, quatro de nossos companheiros foram presos em Itapecerica da Serra, São Paulo, quando pintavam um caminhão com as cores do exército brasileiro, que seria utilizado para retirar as armas do quartel. Seriam cerca de 400 fuzis FAL, metralhadoras, morteiros, munição. Tudo o que fosse possível. Nós, da VPR, não pensávamos em ficar com todas essas armas. Entregaríamos uma certa quantidade para outras organizações, também efetivamente partidárias da luta armada. Como esses companheiros presos formavam parte do plano de ação, nós, a célula de dentro do quartel, antecipamos para o dia seguinte com tudo o que foi possível levar naquela emergência: 63 fuzis FAL, metralhadoras INA, munição, etc.

Punto Final – As autoridades brasileiras dizem terem exterminado a VPR a partir dessas prisões, é verdade?

Carlos Lamarca – Não, ultimamente até a repressão confessa não ter conseguido eliminar a VPR, que seria um grupo bem-organizado, segundo suas próprias declarações.

Na verdade, as prisões de janeiro, e em parte pela delação de um dos presos (os outros tiveram um excelente comportamento), em parte pelas informações sobre nos-sa estrutura orgânica, levaram a uma reação em cadeia que provocou outras detenções e terminou apenas em março. É importante pontuar que a repressão passou a nos identificar como o principal inimigo e que o tratamento recebido pelos presos foi bárbaro. Choques eléctricos, “pau-de-arara”, maçarico, companheiras violadas. Alguns de nossos companheiros não resistiram a esse tratamento.

Porém os que permaneceram livres, em um esforço sobre-humano, reconstruíram a organização, retornando qualitativamente muito superior. Em abril de 1969 realizamos um congresso onde fizemos um balanço crítico de nossa atuação anterior, redefinimos nossa linha política e elegemos um novo comando, depois de ampla discussão envolvendo todas as bases.

Punto Final – Se afirma, no entanto, que a VPR se dissolveu…

Carlos Lamarca – Certo. Porém se dissolveu somente para unificar-se com o COLINA (Comando de Libertação Nacional), formando uma nova organização nacional mais forte e melhor preparada para conduzir a luta revolucionária no Brasil. O nome dessa nova organização é VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares).

Essa fusão não foi repentina. Há quase dois anos havia contato entre o COLINA, grupo originado de uma divisão na POLOP (Política Operária, atualmente Partido Operário Comunista – POC). Nós mesmos, na ex-VPR, estávamos formados em parte, por elementos dessa mesma origem. O ex-COLINA, que passou por uma grave crise logo após perder quadros, material e dinheiro, estava em franca recuperação.

A fusão das duas organizações correspondeu a uma nova fase no processo da esquerda no Brasil. Existe um processo de fracionamento contínuo, que se iniciou em l960, se fez agora o processo inverso, de reaglutinação dos diversos grupos em torno de opções políticas reais que o processo impõe.

Punto Final – Por que Palmares?

Carlos Lamarca – Como uma homenagem à luta heroica dos negros brasileiros contra a escravidão. Antes da abolição da escravidão, os negros brasileiros que fugiam das fazendas, se organizavam nos chamados “quilombos”, e o mais famoso deles foi Palmares. Nesse quilombo os negros do Nordeste brasileiro lutaram até o último homem. Em sua luta, organizavam os combatentes e suas famílias em aldeias em que se praticava um coletivismo bastante avançado. Fugitivos da justiça colonial, camponeses perseguidos, passavam a viver em torno de Palmares. O quilombo durou quase cem anos. Foi de fato uma luta contra os opressores e a primeira experiência guerrilheira que existiu no Brasil.

Punto Final – Como a VAR-Palmares enxerga a revolução no Brasil?

Carlos Lamarca – A resposta a essa pergunta envolve questões teóricas e políticas difíceis de serem respondidas no âmbito dessa entrevista. Em linhas gerais, nossa visão é a seguinte: o campo é “elo mais fraco” da cadeia imperialista. Nele se concentram as contradições mais agudas geradas pelo capitalismo brasileiro. No campo vive a maior parte da população brasileira e a imensa maioria dos explorados. Para modificar a situação agrária brasileira é necessário romper com todo o sistema, baseado e construído exatamente sobre o atraso e a miséria de nossas regiões rurais.

No campo construiremos a primeira coluna guerrilheira, como alternativa ao poder das classes dominantes, embrião do futuro exército popular. Construir esse exército, no Brasil, não significa, entretanto, apenas a coluna guerrilheira, mas sim criar guerrilhas irregulares em todos os pontos importantes do país.

Significa ainda efetuar um trabalho político-militar junto às massas, principalmente junto a classe operária.

A classe operária brasileira, apesar de estar impregnada por um longo período de reformismo, e amordaçada e reprimida pela violenta ditadura brasileira, terá um papel vital no processo revolucionário brasileiro.

Punto Final – O capitão Lamarca é um assassino frio?

Carlos Lamarca – É a ditadura que assassina friamente nossos companheiros. De janeiro a agosto caíram cinco dos nossos, João Lucas Alves, torturado até a morte pela polícia do estado de Minas Gerais; Severiano Viana Colou, torturado até a morte pela polícia do estado da Guanabara; Hamilton Fernando Cunha, assassinado a tiros quando pedia demissão do emprego; Carlos Roberto Zanirato, torturado ao extremo preferiu se atirar algemado debaixo de um ônibus; Fernando Borges de Paula Ferreira, morto a tiros pela polícia de São Paulo.

O saldo da violência da ditadura brasileira é terrível. Dezenas de companheiros nossos sofreram torturas que muitas vezes os inutilizaram para sempre. A repressão no Brasil prende famílias inteiras como reféns, chegando a manter incomunicáveis senhoras de idade, adolescentes e até crianças de dois anos.

A VAR-Palmares não tem interesse em fazer vítimas entre o povo. Nas vinte e uma expropriações financeiras que já realizou, provocou somente duas baixas, ambas em legítima defesa. Nas expropriações de armamentos e outros equipamentos, nunca teve que disparar suas armas. Os bancários e policiais que se renderam, jamais foram agredidos. Aos que resistiram, demos um combate leal.

Além disso, a VAR-Palmares realizou o que acreditamos ser a maior expropriação financeira revolucionária feita na América Latina, sem ter que empunhar armas. Depois de uma longa investigação conseguimos localizar uma parte da famosa “caixinha” do ex-governador de São Paulo, Ademar de Barros, enriquecido por anos e anos de corrupção. O dinheiro estava, após a morte de Ademar, nas mãos de sua “secretária”. Essa senhora não pode denunciar o conteúdo do cofre roubado pois eram dólares com entrada ilegal no país. Conseguimos US$ 2,5 milhões, que em cruzeiros velhos dá mais de dez bilhões.

Punto Final – E quanto ao terrorismo?

Carlos Lamarca – Acreditamos que já chegou o momento de responder a violência do inimigo aplicando a justiça revolucionária. A morte do capitão Chandler, por exemplo, foi um ato de justiça revolucionária, assim como as bombas de advertência colocadas por nós na porta das casas dos opressores da classe operária, em Belo Horizonte, foi o interventor nos sindicatos de bancários e metalúrgicos e o delegado regional do trabalho durante a greve de outubro de 1968.

As classes dominantes no Brasil, no entanto, em uma contraofensiva ideológica, recentemente nos acusaram de atos que foram praticados pela própria repressão, ou pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas), de qualquer forma, realizados pela direita: incêndio de 3 estações de televisão, em São Paulo, queima de uma rádio-patrulha com dois policiais no interior do carro, bomba na residência do cardeal de São Paulo.

Punto Final – Como se sente agora que é um homem famoso?

Carlos Lamarca – A revolução não será dirigida por homens isolados, mas sim pela vanguarda dos oprimidos e explorados. Sou um militante da VAR-Palmares e só desejo uma coisa: empunhar meu fuzil. Os homens e mulheres que se fazem revolucionários contribuem de formas diversas, lutando anonimamente por seus ideais. Se alguns deles ganham notoriedade em função de determinadas circunstâncias, isso em nada muda sua condição formal, de parte dos quadros da revolução.

As classes dominantes tentam personificar as ações revolucionárias em torno de certos nomes apenas para tentar nos desmoralizar e mostrar sua “eficiência”.

Punto Final – Deseja dizer mais alguma coisa?

Carlos Lamarca – A revolução brasileira é parte da luta mais ampla dos explorados de todo o mundo por sua libertação social e política e, mais especificamente, pela revolução latino-americana; mas a luta pela emancipação do continente do imperialismo norte-americano é pela implantação de um sistema social que resolverá nossos problemas, é pelo socialismo.

Desejaria enviar, em nome da VAR-Palmares uma mensagem ao povo chileno. Estamos, no Brasil, nos primeiros passos de uma guerra que será longa e dolorosa. Essa é nossa forma de prestar uma solidariedade ativa a Revolução Cubana e a luta gloriosa do povo vietnamita. Temos certeza de que nesta luta nos encontraremos lado a lado com os revolucionários chilenos, entregando nossas vidas pelos mesmos ideias. Temos que “ousar lutar, ousar vencer”.

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