Esta entrevista é um conjunto de respostas para perguntas escritas feitas pela equipe da Revista Al-Muslimoon e publicada pelo Centro Islâmico em Genebra, na Suíça. Malcolm X, El-Hajj Malik El-Shabazz, escreveu a maioria das respostas na noite em que sua casa foi bombardeada e as duas últimas na noite anterior à sua morte, em 21 de fevereiro de 1965.
Al-Muslimoon: O Movimento Muçulmano Negro é um dos movimentos mais controversos dos Estados Unidos. Tendo sido por um período considerável seu mais proeminente e principal organizador e porta-voz, você poderia gentilmente nos dar um retrato conciso do pano de fundo deste movimento, sua história, sua ética central e sua força real?
Malcolm X: Elijah Muhammad deixou-se ser dominado por um sentimento insano de inveja por causa de minha popularidade que estava além de seus seguidores e da comunidade não- muçulmana enquanto seu próprio prestígio e influência estavam limitados em grande parte entre seus seguidores imediatos. Enquanto eu estava no movimento e cego para seus defeitos por causa da minha própria fé intransigente nele, eu sempre pensei que a inveja e o ciúme que eu via – por meio dos sinais constantes que se originavam principalmente de sua família imediata, era inconcebível para mim, toda vez que membros de sua própria família me avisavam que o pai deles (o próprio Elijah Muhammad), estava quase insano de ciúmes.
Quando Elijah ficou sabendo que seu filho Wallace havia me contado como seu pai seduziu suas secretárias adolescentes, dizendo-lhes que ele era o profeta Maomé e fazendo com que cada uma delas pensassem que seria sua esposa favorita e a mais linda Aisha, Elijah temeu que minha posição de influência no movimento fosse uma ameaça para ele e seus outros filhos, que passou a controlar o movimento e se beneficiar de sua riqueza. Por temerem minha popularidade com os muçulmanos, eles foram cuidadosos com qualquer movimento imediato ou aberto para restringir minha autoridade sem um bom motivo, então esperaram pacientemente por uma oportunidade até que minha declaração sobre o assassinato do falecido presidente Kennedy lhes deu a oportunidade de obter o apoio do público contra qualquer tipo de ação que eles tomassem para me suspender ou remover.
Na época em que anunciaram que eu seria suspenso e silenciado por noventa dias, eles já haviam acionado o mecanismo para me expulsar completamente do movimento, e o próprio Elijah Muhammad já tinha dado ordem para me matar porque ele temia que eu expusesse a seus seguidores o segredo de sua extrema imoralidade.
Al-Muslimoon: Poderiam essas diferenças ser basicamente de natureza ética e de questões concernentes a fé? Na sua opinião, quais são as perspectivas de uma reforma radical dentro do movimento de Elijah Muhammad agora ou no futuro?
Malcolm X: Não, o próprio Elijah Muhammad nunca mudará. Pelo menos eu duvido disso. Ele é velho demais, dogmático e já foi longe demais ao ensinar que é um profeta maior que Muhammad ibn Abdullah. Ele é orgulhoso demais para confessar aos seus seguidores que ele deliberadamente lhes ensinou de forma incorreta. Mas à medida que seus seguidores bem-intencionados forem expostos à verdadeira religião do Islã, eles mesmos o deixarão para praticar o verdadeiro Islã como deve ser praticado. É por isso que é tão importante criar centros onde o verdadeiro Islã possa ser ensinado. E esses centros devem estar localizados principalmente nas comunidades negras, porque os afro-americanos são os que demonstram maior interesse na verdadeira religião.
Al-Muslimoon: Algum dos seguidores de Elijah Muhammad deixou o movimento com você; você acha que seu afastamento do movimento afetou seu corpo principal de forma considerável?
Malcolm X: Sim, muitos seguidores de Elijah não puderam aceitar sua imoralidade, e isso abriu seus olhos para as outras falsidades de sua doutrina. Mas não conseguimos reagrupá-los e reorganizá-los como deveríamos. É preciso financiamento, e deixamos todos os tesouros e propriedades com Elijah e ele usa essa riqueza que acumulamos para lutar contra nós e nos impedir de nos organizar. Ele é fanaticamente contra os afro-americanos que aceitam o verdadeiro Islã. Por isso, deu ordens a seus próprios seguidores para mutilar ou matar qualquer seguidor que deixasse o movimento para seguir o verdadeiro Islã. Ele teme que o verdadeiro Islã exponha e destrua seus falsos ensinamentos.
Al-Muslimoon: Você pretende apenas parar de expressar sua oposição contra Elijah Muhammad e seu grupo ou você tem algum curso de ação em mente para estabelecer alguma nova organização nesse campo? Em caso afirmativo, em que base e para quais objetivos específicos, próximos ou distantes?
Malcolm X: Com o pouco financiamento que pudemos levantar, fundamos a Mesquita Muçulmana Inc. com sede aqui no Harlem. Nosso único interesse é ajudar a desconstruir a imagem distorcida que ajudamos a espalhar sobre o Islã. Nossa mesquita também é para aqueles que querem aprender a viver a vida de um verdadeiro muçulmano.
No entanto, como vivemos como afro-americanos em uma sociedade branca racista, estabelecemos uma outra organização que não é religiosa, conhecida como Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU), que tem o objetivo de unir todos os negros americanos, independentemente de sua condição ou afiliação religiosa, em um grupo que pode lutar contra o racismo americano e os males econômicos, políticos e sociais que resultam do racismo branco aqui nesta sociedade americana. Com a Mesquita Muçulmana, estamos ensinando ao nosso povo um melhor modo de vida, e com a OAAU estamos ensinando a lutar, em um nível ainda mais amplo, por completo respeito e reconhecimento como seres humanos e estamos prontos e dispostos a usar qualquer meio necessário para atingir esse objetivo.
Al-Muslimoon: O que você realmente tem feito desde que você se afastou do movimento de Elijah Muhammad?
Malcolm X: Eu viajei para o Oriente Médio e África duas vezes desde que me separei de Elijah Muhammad em março de 1964, principalmente para entender melhor o Islã e os países africanos e, por sua vez, dar ao mundo muçulmano e aos africanos uma melhor compreensão dos problemas que enfrentamos aqui na América.
Al-Muslimoon: É verdade que, mesmo após ter se separado de Elijah Muhammad, você ainda mantém a cor como principal dogma e base para impulsionar a bandeira da libertação nos Estados Unidos? Como poderia um homem do seu espírito, intelecto e perspectiva mundial deixar de ver no Islã sua principal característica, desde seus primórdios, como uma mensagem que confirma sem dúvida a unidade e qualidade etnológica de todas as raças, atingindo assim a própria raiz da monstruosidade da discriminação racial. Inúmeros são os textos do Alcorão
e provérbios proféticos sobre este fato e nada mais testemunharia isso que o fato histórico de que as raças são heterogêneas, que nações e entidades linguísticas sempre se misturaram pacificamente na terra natal.
Malcolm X: Como Negro americano, sinto que minha primeira responsabilidade é com os vinte e dois milhões de afro-americanos que sofrem as mesmas indignidades por causa da cor da pele assim como eu. Não acredito que meu problema pessoal esteja resolvido até que o problema dos vinte e dois milhões de afro-americanos esteja resolvido.
Para meu espanto, até agora, o mundo muçulmano parece ignorar o problema do Negro americano, e a maioria dos muçulmanos que vêm do mundo muçulmano concentrou mais seus esforços na tentativa de converter americanos brancos do que afro-americanos.
Eu tinha retornado aos Estados Unidos de Londres às 16:30, em 13 de fevereiro, e tinha trabalhado até 12:30. Logo após a meia-noite, senti-me muito cansado, então, decidi deixar as páginas acima da máquina de escrever e terminá-la no início da manhã. Eu me retirei às 12h30 quando bombas explodiram em minha casa. Lançadas por assassinos que tentaram me matar, bem como minha esposa e minhas quatro filhas enquanto dormíamos às 2:30 da manhã. Mas Allah nos salvou da morte. Esta é apenas uma das muitas táticas terroristas que os inimigos do Islã usam para que o verdadeiro Islã nunca seja estabelecido nessa terra. E eles sabem que, se eu for bem-sucedido em ajudar a desconstruir a versão distorcida de Elijah Muhammad do Islã, será ainda mais fácil disseminar o verdadeiro Islã. [Este parágrafo foi escrito como uma nota de Malcolm X para os editores de Al-Muslimoon]
Existem dois grupos de muçulmanos na América: (1) aqueles que nasceram no mundo muçulmano e migraram para cá, e já eram muçulmanos quando chegaram aqui. Se esse total for superior a duzentos mil, eles não conseguiram converter mil americanos ao islamismo. (2) As pessoas que nasceram nos EUA e que se converteram ao Islã, representam 98% de população afro-americana. Até agora, apenas o afro-americano tem demonstrado interesse no islamismo sunita.
Se um estudante de agricultura tiver o bom senso suficiente de concentrar seus esforços agrícolas na área mais fértil de sua fazenda, eu acho que o mundo muçulmano deveria perceber que a área mais fértil do Islã no Ocidente é o afro-americano. Isso de modo algum implica discriminação ou racismo, mas mostra que somos inteligentes o suficiente para plantar a boa semente do Islã onde ela crescerá melhor. Mais tarde, podemos “medicar” ou fertilizar as áreas menos férteis, mas somente depois que nossa colheita já estiver bem plantada no coração e na mente desses afro-americanos que já demonstram grandes sinais de receptividade. Não foi Bilal, o etíope Negro, o primeiro a receber a semente do Islã do próprio Profeta na Arábia há 1.400 anos?
Al-Muslimoon: Agora que você visitou e revisitou muitos países muçulmanos, quais são suas impressões principais a respeito do Islã e dos muçulmanos ambos no presente e no futuro?
Malcolm X: Estamos no limiar da era nuclear. A educação é uma obrigação, especialmente nesta era altamente técnica. Na minha opinião, os líderes religiosos muçulmanos não enfatizaram a importância da educação para as comunidades muçulmanas, especialmente nos países africanos. Assim, quando os países africanos se tornaram independentes, as áreas não- muçulmanas possuíam o maior número de africanos instruídos, portanto, os mais qualificados para ocupar as posições recém-criadas do governo. Os atuais líderes religiosos muçulmanos precisam de um tipo de educação mais completa e, então, poderão enfatizar a importância da educação para as massas. Mas muitas vezes, quando esses líderes religiosos adquirem conhecimento, educação e compreensão, eles são muito limitados, às vezes, propositadamente, com o intuito de manter seu próprio povo ignorante para manter sua própria posição de liderança, eles mantêm as pessoas com suas mentes estreitas porque eles mesmos são pessoas de mente estreita.
Em todos os países do Oriente Médio e da África que visitei, notei que o país era “avançado” à medida que suas mulheres eram “avançadas”, ou “atrasado” à medida que suas mulheres eram “atrasadas”. Com isso quero dizer que, em áreas onde as mulheres foram deixadas para segundo plano e mantidas sem educação, toda região ou país se tornou atrasado, sem educação e “subdesenvolvido”. Onde as mulheres foram encorajadas a obter educação e a assumir um papel mais ativo nos assuntos da comunidade e do país, todo o povo se tornou mais ativo, mais esclarecido e mais progressista. Assim, na minha opinião, os líderes religiosos muçulmanos de hoje devem reavaliar e esclarecer a posição muçulmana sobre educação em geral e a educação das mulheres em particular. E então, um vasto programa deveria ser lançado para elevar o padrão de educação no mundo muçulmano. Um velho provérbio africano afirma: “Eduque um homem e você educará um indivíduo; eduque uma mulher e você educará uma família inteira”.
Al-Muslimoon: A África parece ter tomado a maior parte de sua atenção e preocupação. Por quê? E agora que você visitou quase todo o continente, onde você acha que o Islã realmente está? E o que, na sua opinião, poderia ser feito para salvá-lo tanto da falta de consciência de muitos, quanto da maioria daqueles que são considerados os defensores de sua causa, e da maliciosa e engenhosa aliança do sionismo, ateísmo e o fanatismo religioso contra o Islã?
Malcolm X: Eu considero a África como minha pátria. Estou interessado principalmente em vê-la se tornar completamente livre de influências políticas e econômicas externas que a dominaram e exploraram. A África, por causa de sua posição estratégica, enfrenta uma crise real. Os abutres coloniais não têm intenção de desistir sem lutar. Sua principal arma ainda é “dividir para conquistar”. Na África Oriental há um forte sentimento anti-asiático sendo nutrido entre os africanos. Na África Ocidental, há um forte sentimento anti-árabe. Onde há árabes ou asiáticos há um forte sentimento anti-muçulmano.
Essas hostilidades não são iniciadas pelas pessoas acima mencionadas e que estão envolvidas. Eles não terão nenhum benefício lutando entre si neste momento. Aqueles que mais se beneficiam são os antigos mestres coloniais que agora tem suplantado o odiado colonialismo e imperialismo com o sionismo. Os sionistas superaram todos os outros grupos de interesse na atual luta pelo nosso continente materno. Eles usam uma abordagem tão benevolente e filantrópica que torna muito difícil para suas vítimas enxergarem através de seus esquemas. O sionismo é ainda mais perigoso que o comunismo porque se torna mais aceitável e, portanto, mais destrutivo.
Uma vez que a imagem árabe é quase inseparável da imagem do Islã. O mundo árabe tem uma responsabilidade múltipla que deverá cumprir. Visto que o Islã é uma religião de fraternidade e unidade, aqueles que assumiram o papel de liderar e divulgar a religião, têm o dever de estabelecer o mais alto exemplo de fraternidade e unidade. É imperativo que Cairo e Meca (Conselho Supremo dos Assuntos Islâmicos e a Liga Muçulmana Mundial) tenham uma conferência religiosa de cúpula e mostrem um maior grau de preocupação e responsabilidade pela situação atual do mundo muçulmano, ou outras forças emergirão nesta geração atual de jovens muçulmanos que pensam no futuro e os “centros de poder” serão tirados das mãos daqueles que estão no poder e serão colocados em outro lugar. Allah pode facilmente fazer isso.