Presidente Fred, o messias pantera

No início do ano letivo no campus leste da Escola Secundária Proviso, um colégio com maioria de estudantes negros em Maywood, nas proximidades de Chicago, em Illinois (EUA), os professores reúnem os novos alunos e contam a história do mais célebre personagem histórico daquela comunidade e antigo aluno da escola, o revolucionário Frederick Allen Hampton.

Fred Hampton nasceu em Summit, um subúrbio no condado de Cook a sudoeste de Chicago, em 30 de agosto de 1948, sendo o filho mais novo de três irmãos do casal Francis Allen e Iberia Hampton. Os Hampton haviam migrado da Louisiana nos anos 1930 e se estabelecido em Argo, nos arredores de Chicago, onde começaram a trabalhar na indústria do milho. Foi na Corn Products Refining Company que conheceram a família Till, e Iberia Hampton com Fred ainda bebê passou tomar conta também do filho de sua amiga Mamie Till, o jovem Emmett Louis Till. Nos anos 1950, os Hampton se mudam para Blue Island antes de se estabelecerem finalmente em Maywood, em 1958, e Mamie Till e o jovem Emmett seguem para o sul de Chicago. Emmett é enviado para a casa de um tio no Mississippi, na pequena cidade de Money, no condado de Montgomery. Em 28 de agosto de 1955, com apenas 14 anos de idade, Emmett Louis seria brutalmente assassinado por brancos racistas, após ser acusado de assobiar para uma mulher branca dentro de um mercado. O jovem Emmett seria sequestrado da casa de seu tio, o reverendo Moses Wright, levado para um galpão nas proximidades da cidade, onde foi espancado e teve seu olho arrancado, antes de ser covardemente morto a tiros, tendo seu corpo jogado no rio Tallahatchie e encontrado dias depois. Os dois assassinos racistas foram absolvidos e o caso de Emmett Till provocou a indignação e a revolta no povo negro em todo o país, servindo de catalisador para o Movimento dos Direitos Civis. Fred Hampton, ainda criança, teria seu primeiro contato com a luta de libertação negra nos EUA quando sua família participa dos protestos e boicotes, liderados por Luther King e Rosa Parks, contra o assassinato daquele jovem que foi criado com ele por sua mãe.       

O jovem Fred demonstrava desde muito novo o carisma e um espírito de liderança nato que marcariam sua trajetória política. Na Escola Primária Irving, foi capitão dos “Patrol Boys”, que ajudavam outros estudantes a atravessarem em segurança as ruas nos arredores da escola. Quando se transferiu para o campus leste da Escola Secundária Proviso, integrou o Interracial Cross Section Committee, um grupo interracial de jovens antirracistas, e se tornou também presidente do Junior Achievement Program, uma organização que apoiava o desenvolvimento econômico comunitário. Nesse período, Fred lidera vitoriosos protestos contra as condições racistas do colégio, pela implementação da história afro-americana na grade curricular e organiza manifestações contra a prisão injusta e racista de um de seus colegas, Eugene Moore.

Após se formar com honras no ensino médio, em 1966, Fred se matricula no programa de direito da faculdade comunitária Triton College, pois pretendia ser advogado e usar a profissão para combater a brutalidade policial. Em 1967, Hampton seria recrutado por Don Williams, presidente local da NAACP, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, passando a ser presidente do conselho juvenil local da organização.   

Enquanto Fred desenvolve e radicaliza sua militância, chegando a ser preso em setembro de 1967 acusado de incitar o tumulto e uma agressão contra um policial, após liderar um movimento contra a segregação nas piscinas públicas e locais de lazer em Maywood, o Partido Pantera Negra (BPP, na sigla em inglês), que havia sido fundado por Bobby Seale e Huey P. Newton em 15 de outubro de 1966, ainda com o nome de Partido do Pantera Negra para Autodefesa na Baía de São Francisco, na Califórnia, vai ganhando força e se espalhando pelos EUA. A organização, que apresenta seu Programa de Dez Pontos e adota a pantera preta como símbolo, se destaca no processo de radicalização da luta negra nos EUA na segunda metade dos anos 1960, período que seria profundamente marcado por dezenas de levantes populares e rebeliões negras pelo país, assim como, pelos assassinatos de Malcolm X, então líder da Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU) após sua ruptura com a Nação do Islã (NOI), em 21 de fevereiro 1965, e do reverendo Martin Luther King Jr. (MLK), em 4 de abril de 1968, líder da Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC) e a mais importante figura pública do Movimento dos Direitos Civis.

O Partido Pantera Negra, que irá se inscrever com uma das principais referências na longa tradição radical negra dos EUA até sua extinção no início dos anos 1980, realiza suas primeiras ações em Oakland, na Califórnia, através de patrulhas armadas, portando também as leis locais e câmeras, para acompanhar e intimidar a violência racista e a brutalidade policial nos bairros negros de São Francisco. Tendo Bobby Seale como Presidente e Huey P. Newton como Ministro da Defesa, principal teórico e figura pública da organização, o BBP abre seu primeiro escritório em janeiro de 1967 e recebe importantes adesões, como de David Hilliard, que se tornaria dirigente nacional e Chefe de Gabinete, e de Eldridge Cleaver, escritor que havia sido companheiro de Malcolm X na OAAU e assume a condição de Ministro da Informação. Os panteras negras se expandem na Califórnia e logo começam receber adesões em outros estados, principalmente após o episódio da “invasão de Sacramento”, quando uma caravana de panteras armados se dirige até Sacramento, capital da Califórnia, para protestar contra a aprovação da “Lei Mulford”, ocupando a Assembleia Legislativa estadual.

Defendendo uma linha revolucionária para a luta de libertação negra, usando uma estética própria e exibindo armas ostensivamente, além de desenvolver um importante conjunto de programas comunitários, o partido transmite uma imagem de poder e ousadia, causando um grande impacto na comunidade negra, mas também provocando o ódio da mídia racista, de políticos conservadores e da repressão que em junho de 1967 cria o ilegal COINTELPRO, programa de contrainteligência do FBI (Federal Bureau of Investigation), para “expor, perturbar, desorientar, desacreditar ou neutralizar” as lideranças e organizações negras nos EUA, com a máquina repressiva chegando a classificar o Partido Pantera Negra como “a maior ameaça para a segurança interna do país” (sobre os detalhes da formação do BPP, ver “O Manejo Correto de uma Revolução”, de Huey P. Newton, primeiro livro da Coleção Panterismo). 

A liderança de Fred Hampton no setor de juventude do NAACP seria marcante. Mais de 500 jovens negros dos subúrbios de Chicago aderem à organização, Fred chama a atenção pela sagacidade de sua oratória e seu papel de organizador político, dividindo comícios com Stokely Carmichael, então líder do Comitê Coordenador Estudantil Não-Violento (SNCC) e com Richard G. Hatcher, um dos primeiros prefeitos negros dos EUA, na cidade de Gary, em Indiana. O jovem ativista negro também articula importantes alianças com lideranças dos direitos civis como o reverendo Jesse Jackson, o ativista Dick Gregory e o padre George Clements. No final de 1967, as atividades de Hampton em Illinois passam a ser monitoradas pelo FBI.

Em 1968, Fred é falsamente acusado de roubar 71 dólares e espancar o motorista de um caminhão de sorvete, ainda respondendo esse processo e completando seu processo crescente de radicalização, Hampton rompe com a NAACP no meio desse ano e funda em novembro de 1968, junto com Bobby Rush, líder local do SNCC e estudante universitário de Chicago, o Capítulo de Illinois do Partido Pantera Negra. Chicago era então um dos centros do supremacismo branco nos EUA, e o próprio MLK diria, após uma marcha no Marquette Park em agosto de 1966 ser atacada por brancos racistas de Chicago, que nem mesmo no Mississippi ou no Alabama havia visto tanto ódio racial.         

Ainda em fins de 1968, o Capítulo de Illinois abre seu escritório no centro de Chicago, logo Hampton é nomeado como presidente da seção do BPP e Chefe de Gabinete adjunto nacionalmente (por isso, foi comumente chamado também de “vice-presidente”), Bobby Rush assume a condição Ministro da Defesa adjunto, com o partido de Illinois recebendo a adesão de muitos militantes da NAACP, crescendo rapidamente e se tornando uma das principais seções do partido nacionalmente. É nesse momento que o FBI infiltra o agente William O’Neal na organização. O’Neal se torna chefe de segurança local e guarda-costas de Hampton.

O presidente Fred, como passou a ser conhecido, lidera negociações para pacificar as gangues de rua de Chicago, como os Vice Lords e os Blackstone Rangers, e também dá início aos programas comunitários de sobrevivência em Illinois. O Programa de Café da Manhã para Crianças, a Clínica de Saúde, além de ônibus para familiares de presos, serviços jurídicos, creches, bancos de roupas e serviços de ambulância são alguns dos programas gratuitos oferecidos para milhares de pessoas negras pelo Partido Pantera Negra em Illinois. Em abril de 1969, Hampton, que havia sido detido no início do ano por armações policiais, seria também condenado pelo caso do caminhão de sorvete, tendo sua fiança negada por, segundo sua acusação, defender uma revolução popular e socialista nos Estados Unidos. A repressão racista dos EUA abre uma brutal ofensiva também sobre o partido em Chicago, o pantera Larry Roberson é assassinado e a sede do BPP é invadida com os jornais e materiais dos programas de sobrevivência sendo queimados pela polícia. Diversos tiroteios entre panteras de Chicago e porcos fascistas são registrados.

A ofensiva sobre o partido em Illinois, e particularmente a prisão de Hampton, não são por acaso. O presidente Fred havia concluído com êxito, pouco antes de ser preso, as negociações políticas entre as diversas organizações populares de Chicago que culminaram na formação da Rainbow Coalition. A famosa Coalizão Arco-Íris, que teve como importante articulador o dirigente pantera Bob Lee, foi lançada simbolicamente na data de 1 ano do assassinato de MLK e conseguiu reunir os brancos pobres apalachianos da Young Patriots Organization, a organização revolucionária porto-riquenha Young Lords Party (YLP), liderada por José Cha Cha Jiménez, se juntaram ainda a Poor People’s Coalition, o SDS (Students for a Democratic Society), os chicanos do Brown Berets, os nativos indígenas do American Indian Movement e os chineses do Red Guard Party, além de outros grupos menores e as gangues de rua pacificadas pelo trabalho do BPP. A poderosa articulação da Coalizão Arco-Íris, com um programa anticapitalista e antirracista de solidariedade entre os oprimidos, assim como, a veemente oratória de Hampton, fazem com que J. Edgar Hoover, o famigerado diretor do FBI, afirme naquele momento que o presidente Fred poderia se tornar um novo messias, capaz de unificar e incendiar a luta negra e popular nos EUA.   

Em agosto de 1969, a Suprema Corte concede a Hampton o direito à fiança e ele retorna para Chicago, quando é recebido com grande entusiasmo e profere seu famoso discurso da People’s Church. O presidente Fred defende com afinco as posições do Comitê Central do Partido Pantera Negra nas disputas internas e as elaborações de Huey P. Newton acerca da aplicação do marxismo-leninismo às condições e a experiência concreta do povo negro como uma “colônia interna” nos EUA, o que o leva à condição de porta-voz de posições contra Stokely Carmichael, antigo líder do SNCC e que havia se tornado presidente de honra do BPP, antes de romper com a organização por discordar da linha de unidade revolucionária multirracial e antifascista dos panteras, e depois, assumindo uma forte postura contra a linha da Weather Underground Organization (WUO), na ocasião que envolveu os protestos contra a guerra no Vietnã e os chamados “Dias de Fúria” em outubro de 1969, que ocasionaram na prisão do presidente Bobby Seale e no famoso caso dos “7 de Chicago”. As duras críticas de Fred também se direcionaram, ainda com mais veemência, contra o nacionalismo cultural da US Organization e o papel reacionário do grupo liderado por Ron (Maulana) Karenga.

Fred, com apenas 21 anos, se torna, cada vez mais, uma ameaça ao fascismo norte-americano e um alvo a ser eliminado, sua morte é uma decisão premeditada da repressão racista. Além do infiltrado William O’Neal, o informante e traidor que entregou a planta baixa da casa e colocou sonífero na água na noite anterior, o assassinato de Hampton em 4 de dezembro de 1969, envolveu uma cadeia de reacionários sob as ordens do FBI que conspiraram para matar o líder do Partido Pantera Negra em Illinois e a mais promissora liderança pantera no país. O Departamento de Polícia de Chicago e a máquina do Partido Democrata, na figura do promotor do condado de Cook, Edward Hanrahan, utilizando o argumento da “guerra às gangues” foi essencial para a operação ilegal e criminosa do FBI. Informações posteriores revelariam que até mesmo que o co-fundador da Anistia Internacional, Luis Kutner, passou informações para facilitar a ação. Um grupo de 14 homens do FBI e da CIA, armados com submetralhadoras, pistolas e rifles semiautomáticos invadiram a casa na rua WMonroe pela frente e pelos fundos, arrombando as portas às 4:30h da madrugada onde dormiam ao todo nove panteras, disparando quase 100 tiros e matando a queimar roupa primeiro o pantera Mark Clark, de 22 anos, que fazia a segurança, e depois o presidente Fred, enquanto dormia dopado por O’Neal ao lado de sua companheira gravida de nove meses, Deborah Johnson, além de espancarem os demais panteras sobreviventes do ataque.

Os métodos do assassinato de Hampton, não por acaso, foram os mesmos utilizados pela máquina fascista e supremacista branca da América racista contra Luther King e Malcolm X. Edward Hanrahan, articulador político dos assassinatos, sentenciaria as mortes de Fred e Clark como “homicídio justificável”. A Weather Underground, na sequência, realiza diversos atentados à bomba para denunciar as mortes, mas apenas em 1983, com o afastamento de Hanrahan, as famílias dos panteras conseguiriam vitórias judiciais comprovando os crimes de Estado. Fred se inscreveu na história ao mesmo lado de Sojourner Truth, Nat Turner, Harriet Tubman, Malcolm X e MLK, seu legado impulsionou o Partido Pantera Negra ao seu auge e sua linha revolucionária continua atual e necessária. A memória de Fred, registrada em produções audiovisuais, locais públicos e organizações negras, como a de todo herói do povo também foi apropriada por oportunistas. Utilizando o nome da Coalizão Arco-Íris, cuja original se desarticulou com a morte de Hampton, Harold Washington foi eleito o primeiro prefeito negro de Chicago em 1983 pelo Partido Democrata. Na campanha e gestão de Harold Washington trabalhou um jovem que iniciava sua carreira política e viria a ser presidente dos EUA, Barack Hussein Obama, responsável por uma das gestões mais agressivas do imperialismo norte-americano contra os povos do mundo.   

Esta publicação, que reúne os principais discursos registrados e entrevistas de Hampton, é um esforço coletivo do Editorial Adandé e do TraduAgindo para homenagear a memória do presidente Fred na passagem dos 50 anos de seu brutal assassinato, sendo uma publicação inédita não apenas em português, pois este conjunto de discursos, textos e entrevistas não haviam sido disponibilizados antes nem mesmo em inglês. O exemplo de Fred Hampton, sua disposição para construção da unidade entre os oprimidos e a defesa intransigente da luta revolucionária e socialista, com o povo negro e colonizado assumindo a vanguarda do processo de libertação e emancipação humana, é um exemplo vivo para as lutas dos povos do mundo, e particularmente para nós, que lutamos pela revolução social no Brasil e na América Latina. 

* Texto publicado como apresentação do livro “Poder em Qualquer Lugar Onde Haja Povo” (2021), de Fred Hampton, edição conjunta do Editorial Adandé e do TraduAgindo.

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