Guerrilha rural: área principal de atuação da esquerda revolucionária – Carlos Lamarca

Documento escrito por Carlos Lamarca e assinado como “Claúdio”, para debate interno da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR e datado de 23 de outubro de 1970. Com fonte original datilografada no Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano – ASMOB e cedida gentilmente pelo Centro de Documentação e Memória da UNESP – CEDEM. Recuperado para o livro “Lamarca – Ousar Lutar, Ousar Vencer” (2º edição, 2023).

Uma tentativa para reconstituir a concepção de guerrilha rural da VPR esbarra com uma dificuldade: os planos da Organização se tornaram menos prontos e completos à medida em que se tentava concretizar essa forma de luta. A síntese do que a Organização pretende encaminhar encontra-se exposta no documento “Nota Complementar sobre Guerrilha”, que transcrevemos. É importante, entretanto, precisarmos qual foi o caminho que nos levou a essa posição e desenvolver um pouco a concepção de “coluna guerrilheira”, ao qual o documento se refere com maiores especificações.

1 – É importante colocar inicialmente que consideramos a guerrilha rural a ser iniciada como parte integrante de um processo de luta armada global, que atinge o campo e a cidade, e que consideramos importante encaminhar de maneira coordenada. Os últimos anos de luta, com toda a “despolitização” que teve a luta armada, todos os erros cometidos pelas vanguardas que não souberam tirar todo o proveito político das ações armadas, nem levar a cabo o planejamento com que todos concordavam – de iniciar prioritariamente a propaganda armada vinculada aos interesses das massas fundamentais da revolução – mostraram, de nosso ponto de vista, a importância de inserir-se no cenário político nacional através da ação urbana, tanto de contestação frontal do sistema como de construção de uma vinculação política mais sólida com os setores de massa avançados.

Há uma outra consideração de grande importância: a experiência guerrilheira recente na América Latina e mesmo nossos ensaios demonstraram a necessidade da existência de firmes vínculos políticos entre a luta que se trava na cidade e a que se travará no campo. O crescimento, desenvolvimento e implantação de uma guerrilha rural não se darão exclusivamente através de sua própria dinâmica, mas da dinâmica do conjunto da luta travada, mesmo se será a guerrilha rural o setor que tem as melhores condições de desenvolvimento nas primeiras fases de guerra, e aquele que permitirá o surgimento dos primeiros destacamentos fixos do exército popular que nos propomos a contribuir para a criação.

2 – Já a superação da noção de “foco” puro e simples implicava nesta visão. O documento base da VPR sobre a forma de se montar a coluna guerrilheira “Área Estratégica – Coluna Móvel Estratégica”, mostra a necessidade de coordenação da coluna com outras formas de luta armada, quer no campo quer na cidade. Em suas linhas gerais o documento coloca a seguinte:

a) A área de atuação da coluna tem que permitir aos guerrilheiros sobrevivência física enquanto adquirem condições de, através do início de operações, ganhar politicamente a população da região. Além de outras considerações que irão influir na forma de montagem de redes, isto pressupõe que há uma primeira exigência quanto a área: deve estar fora do cerco estratégico. O mesmo problema leva à necessidade de uma segunda exigência: a área coberta deve ter uma dimensão que torne o mais difícil possível o cerco tático. Em última análise, a escolha da área deve levar em conta a chamada “relação espaço/tempo estratégico”, isto é, a coluna deve dispor do maior espaço possível de manobra: só assim poderá ganhar o tempo necessário à sua implantação política.

b) Por outro lado, a escolha da área não pode se esgotar nos critérios acima. O essencial para a coluna, na primeira fase, é sobreviver para se implantar. Isso pressupõe a existência de um mínimo de condições “políticas” na área. Essas condições políticas não significam necessariamente que é necessário haver uma massa camponesa radicalizado, mas a existência de contradições sociais que permitam uma radicalização dessa massa e, por outro lado, dificultam a manobra “social” que as tropas antiguerrilha começarão assim que começarem as operações.  

c) Existe uma relação combatente/repressão que, evidentemente, não inclui apenas os elementos de ação militar direta, mas o conjunto das redes dos dois oponentes. Em outras palavras, a guerrilha não faz milagres no terreno militar, e existe uma quantidade mínima de afetivo abaixo do qual a guerrilha perde as condições operacionais. O estabelecimento desse mínimo está em função de duas variáveis, levando em conta que se montaram corretamente as redes de apoio (logística, política e de inteligência): a capacidade de deslocamento do inimigo e as condições específicas da área.  

d) O treinamento dos quadros que atuarão na frente armada da coluna não pode ser feito na própria área, a não ser uma fase final de conhecimento e mobilidade dentro da própria região de operações que tem de ser evidentemente feito nela.

3 – A montagem da coluna implica no trabalho paralelo de criação de redes de apoio, logística, política e de inteligência, estanques entre si e coordenadas com o quarto setor da coluna, o de operações.

a) A logística inicial da coluna é, de início, artificial, isto é, montada de fora para dentro, não especificamente como rede, mas como um eixo área estratégica/centros abastecedores. A garantia de sua eficiência é sua estanqueidade, que permitirá sua continuidade uma vez estabelecido o cerco quando iniciadas as operações. A rede logística da área de operações não é montada pelos apoios, mas diretamente pelos combatentes do setor de operações, a quem cabe a tarefa de descentralizar o abastecimento na região em que vão operar e só eles podem dominar. O contato se dá através de um terminal estabelecido com o encarregado de logística dentro do estado-maior do setor de operações.

b) A rede política, na fase de implantação da coluna, antes de se iniciarem as operações, faz trabalho de implantação social. Este trabalho pode assumir um caráter político, mas nunca caráter de agitação aberta, a não ser que o decorrer do trabalho de montagem permita coordena-lo com o início de operações. A priori se pensa que isso será muito difícil, mas não se pode decretar sua impossibilidade de fora da questão concreta. A atitude inicial da rede política é a implantação social exclusivamente. Alguns combatentes que já tenham um mínimo de condição técnica podem fazer parte dessa rede, com o objetivo de se ligarem abertamente à coluna depois de iniciadas as operações, vinculando dessa maneira o trabalho de implantação anteriormente feito ao início das operações armadas guerrilheiras.

c) A rede de inteligência tem uma dupla função: garantir a comunicação política entre as diversas frentes de luta (o eixo campo/cidade) e permitir a atuação da coluna através de informações recolhidas na própria área, nas áreas circunvizinhas, nos eixos de deslocamento do inimigo e no quartel general do inimigo – determinadas zonas urbanas.

4 – O respeito às condições assinaladas acima permite à coluna sobreviver fisicamente, numa primeira fase, enquanto através de operações cria os necessários laços políticos mais aprofundados com a massa da região. Mas há mil e uma maneiras de se estabelecer um cordão sanitário em torno da área de operações da coluna, desde medidas puramente militares até “reformas agrárias” localizadas, transferência maciça de população, etc. Nosso objetivo não se esgota na coluna, apenas a considera uma peça importante no desenvolvimento da guerra popular. Não podemos responder ao problema do desenvolvimento da luta armada e incorporação de cada vez maiores setores das massas a esse processo pelo chavão de que a guerra será prolongada. A coluna é uma peça importante, mas que, sozinha, perde suas características estratégicas e torna-se apenas uma forma de luta a mais. A dinâmica do processo armado é bastante mais complexa e não é um todo que se possa estabelecer a priori, mas uma preocupação constante para a vanguarda. Há, entretanto, algumas tarefas que são vitais e cujo cumprimento deve ser concomitante à montagem da coluna. Em última análise, trata-se da generalização do processo de luta armada, que toma a coluna como ponto de referência, mas obedece às características específicas de cada região ou setor. Algumas dessas formas de luta armada estão ligadas especificamente ao desenvolvimento da coluna, na medida em que o crescimento desta, além da expansão puramente política que sua existência provoca, situa-se numa determinada região e cresce em função de determinados eixos.

a) As formas de luta armada estabelecidas em torno da região estratégica estão intimamente relacionadas com as necessidades político-militares da coluna. São elas que permitirão o fustigamento incessante ao inimigo e é seu desenvolvimento que permitirá definir o próprio rumo da expansão da coluna. Poderão ser formas irregulares, isto é, de atuação não constante e formada por elementos locais, ou formas “regulares”, isto é, destacamentos auxiliares da coluna.

b) O funcionamento dos chamados “comandos de sabotagem”, cuja existência se localizaria em princípio nas vias de acesso à área, na periferia dos centros importantes, ou atendendo a preocupação de atingir pontos vitais do ponto de vista militar, econômico e político, tem também a coluna como ponto de referência, em que pese sua importância poder ser desligada do funcionamento da própria coluna, isto é, podem funcionar antes da existência desta.

c) Partindo do princípio de que toda luta armada no campo fora da região estratégica é tática, essas guerrilhas “táticas” podem ser regulares ou irregulares, dependendo da ligação dos combatentes com a população da região. A importância da existência desses tipos de guerrilhas prende-se à necessidade de generalização da guerra. A guerrilha tática regular corresponderia à necessidade de levar a luta armada à regiões não atingidas politicamente pela coluna, mas que tivessem importância dentro do quadro geral do país. A guerrilha tática irregular cumpriria o mesmo papel naqueles lugares de tensão social explosiva, onde a necessidade de surgimento do processo armado é por si evidente.

5 – Quando a VPR atual se constituiu, em final de 69, propunha-se manter a coluna guerrilheira (com todas as tarefas em que ela implica), e para tanto já tinha uma área de treinamento em funcionamento. A tentativa de passar a montagem propriamente dita provocou uma deliberação do antigo Comando, explicitada no Informe nº 3, de janeiro de 70, em que as bases eram comunicadas de algumas modificações de encaminhamento e instadas a se manifestarem a fim de que o conjunto da Organização aprovasse ou não a nova forma de encaminhamento proposta. Esse documento, que sintetizou a opinião da Organização a respeito até a “Nota Complementar sobre Guerrilha”, pode ser resumido, no que se refere a esse assunto, nos seguintes pontos:

a) Com suas atuais forças, a VPR não pode montar a coluna como ela a compreende, isto é, dentro da orientação do documento “Área Estratégica – Coluna Móvel Estratégica”. Mesmo empenhando todos os seus quadros nesta tarefa, só conseguirá montar um “foco” e, na prática, estará traindo as próprias concepções expressas no documento, pois essa decisão implicará no abandono de todas as demais formas de luta armada.

b) A Organização se propõe a encaminhar, se possível em 70, o início das guerrilhas táticas, levando em conta o exposto acima e a necessidade de transferir a discussão sobre guerrilha rural ao nível de encaminhamento concreto – método considerado como o mais adequado inclusive para fornecer subsídios à própria montagem da coluna.

c) A generalização da luta armada, mais concretamente, sua extensão ao campo, tarefa inadiável, do ponto de visto das necessidades objetivas do processo e do ponto de vista da situação interna das esquerdas.

d) A Organização desistia de montar a coluna guerrilheira, no momento, embora considerasse que a complexidade de sua montagem implicava em iniciar, desde aquele instante, trabalhos de levantamento e início de criação de infraestrutura.

e) O ritmo de montagem da coluna ficava subordinado não mais a sua capacidade (da Organização, que só permitia o encaminhamento de dentro), mas do desenvolvimento da frente das organizações armadas, pois a coordenação das forças permitiria um aumento qualitativo da capacidade operacional da vanguarda armada.

6 – Nota Complementar sobre Guerrilha

O documento “Área Estratégica – Coluna Móvel Estratégica” da VPR, elaborado em outubro de 1969, é completo, dá correta visão do encaminhamento de uma área de guerrilha. No entanto, a concentração numa área (embora extensa) de um esforço maior de Organização possibilita a repressão possibilidade de um eficiente combate militar, como com medidas reformistas poderiam esvaziar politicamente a guerrilha.

Ribeira era um campo de treinamento e a repressão sabia disso, como sabia que haveria luta na sua tentativa de extermina-nos. E assim pensando montou um esquema de combate à guerrilha. Sem querer estávamos transformados num foco e a repressão teme inclusive o foco. Além das medidas militares, entrou no Senado, em regime de urgência, um projeto de reforma agrária para o Vale do Ribeira, isto em maio; recentemente aquela região foi incluída no Projeto Rondon e Projeto Caiçara.

Eis a demonstração de que a mudança proposta pelo Comando, em janeiro, estava correta, na medida em que grupos menores tem mais mobilidade e podem se deslocar para outras áreas previamente preparadas. E a burguesia não poderá ir a reboque fazendo reforminhas; e como tende a ficar mesmo até em arremedo de reforma agrária burguesa corre o risco de a guerrilha retornar. É justamente o vaivém da guerrilha que politiza, a visão de antes, durante e depois da presença da guerrilha e mais tarde o retorno para a choque. Assim, as redes instaladas, no caso da guerrilha se deslocar, mudam de função, cumprindo missões eminentemente políticas.

Quando a guerrilha está presente, a rede política constituída por camponeses faz a propaganda, explica a luta aos camponeses, capitaliza as ações da guerrilha; a rede logística abastece a guerrilha, evacua os feridos; a rede de inteligência informa, faz levantamento, faz guerra psicológica, pratica contrainformação. A burguesia faz a reforma, e após efetivá-la, a guerrilha entra em refluxo. A guerrilha evolui para outra área contínua preparada previamente. Na área abandonada a rede política faz trabalho político reivindicando para a guerrilha a reforma burguesa, demonstra que não vai solucionar nada, que a exploração apenas mudou de forma, etc; a rede logística retifica o que foi atingido e se aperfeiçoa; a rede de inteligência se mantém localizando os reacionários mais ativistas, os políticos corruptos e oportunistas, estuda o novo mecanismo montado e seus pontos sensíveis, continua executando contrainformação e guerra psicológica. O regresso da guerrilha deve objetivar: fazer justiça, rearticular a reforma implantada mudando os pontos que mantém a exploração, designando uma administração, coletivizando maquinário e transporte, determinando que a assistência médica seja gratuita, expropria a burguesia (sementes, fertilizantes e máquinas). Atingindo este objetivo a qualidade da luta terá se modificado. A repressão retorna, executado terrorismo e reimplanta a ordem burguesa – a luta se expande, sai do nível da reivindicação individual de ter uma terrinha…

A existência de várias áreas táticas impedirá a reforma geral e sabemos também que ela é impossível de ser realizada em áreas de agricultura extensiva, onde as grandes empresas agrícolas estão instaladas. Claro, a burguesia não pode acabar com a mão de obra barata. Não pode desenvolver o “polo subdesenvolvimento” sem afetar o “polo desenvolvimento”, sem afetar o sistema. Pode sim, em algumas áreas fazer reformas e focar em ceder certificados de propriedade e no apelo para que a defendam.

Temos também de compreender que não podemos montar áreas táticas em diversas regiões de tensão social, como é o caso de grande parte do Nordeste. Ali a guerrilha tem de ser executada com o pessoal da região, ou seja, guerrilha irregular. Nessas áreas o trabalho é bem diferente embora tenhamos de treinar camponeses, montar redes, etc. O quadro para desenvolver este trabalho tem de ser nordestino mesmo, não há possibilidade de deslocar um quadro de origem pequeno-burguesa, da cidade, para lá; além das dificuldades de comunicação, etc, cai logo ao chegar.

É preciso não confundir guerrilha em área tática com guerrilha irregular. Enquanto na área tática grupos de guerrilha atuam apoiados pelas redes logística, política e de inteligência, a guerrilha irregular é desenvolvida pelos camponeses sem regularidade, mas com pequenas ações noturnas, políticas e militares. Na área tática há regularidade, certa constância, maior repercussão pela impossibilidade de a repressão justificar grandes mobilizações. É necessário também não confundir guerrilha irregular com agitação no campo. Enquanto esta é inconsequente, aquela politiza, cresce paulatinamente. Enquanto os agitadores no campo se esforçam para ganhar a confiança do camponês para jogá-lo numa aventura, enquanto saem de fino, a guerrilha irregular formada por um pequeno grupo da massa executa ações de massa sem se identificar, vai identificando quem à apoia para depois procurá-lo e fazer tralho político. Após a erupção da guerrilha irregular o perigo é o voluntarismo e a tendência a radicalização, caindo no imediatismo.   

A guerrilha irregular tem de estar integrada num todo, num planejamento geral. A organização da luta no campo em áreas táticas e guerrilhas irregulares evitará a concentração de esforços da repressão, seja para medidas militares como políticas.

Não abandonamos a concepção da coluna; só achamos que é inviável começar com ela, como achamos também que deve ser encaminhada paralelamente às áreas táticas e guerrilhas irregulares para, num estágio superior irromper a coluna, ao mesmo tempo em que as áreas táticas em movimentos coordenados concentram-se e se dispersam novamente…

Além disso a guerrilha urbana nas grandes cidades (todas) coordenadas com o comando de sabotagem atuando na periferia, completa o quadro geral.

Os documentos “Área Estratégica – Coluna Móvel Estratégica” e “Caminhos da Guerrilha” devem entrar em discussão.

Aguardamos a intensificação da discussão para que haja tomada de posição oficial da Organização (o que ainda não foi formalizado apesar de determinado no Informe nº 3), assim como a atualização do tema, principalmente para os quadros novos da Organização. Sem a leitura dos documentos citados será difícil o quadro se integrar no assunto e perceber corretamente a linha política de Organização, pois é dever de todos se capacitar para defendê-la.

OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER!

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