Huey P. Newton e o Poder Pantera

Artigo publicado originalmente como apresentação do livro “O Manejo Correto de uma Revolução” (Coleção Panterismo, 2021), revisado em abril de 2024 para a nova impressão.

No início dos anos 1960 ainda estavam em vigor o conjunto de leis segregacionistas que sucederam a escravidão nos EUA e ficaram conhecidas como “Leis de Jim Crow”, seguiam-se os massacres raciais promovidos por organizações supremacistas brancas paraestatais como a Ku Klux Klan e os Conselhos de Cidadãos Brancos (Citizens’ Councils). Martin Luther King Jr. liderava o movimento pelos direitos civis através da Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC) e Malcolm X, rebatizado com o nome muçulmano de El Hajj Malik El-Shabazz e porta-voz da Nação do Islã (NOI), se afirmava como dirigente negro propondo uma alternativa à filosofia da “não-violência” do reverendo King. Huey P. Newton e Bobby Seale se encontram pela primeira vez em 1962 durante manifestações em defesa de Cuba e contra o embargo norte-americano em São Francisco, na Califórnia. A Revolução Cubana liderada por Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos afirmava seu caráter socialista e inspirava lutas de libertação e solidariedade em todo o mundo, incluindo de setores oprimidos dentro do império supremacista yanque. Bobby havia ficado impressionado com a capacidade de argumentação de Huey e o convidou para integrar a organização negra que começava a articular a partir do Merritt College, faculdade pública comunitária de Oakland, onde ambos estudavam. Huey inicialmente declina do convite de Bobby, mas seguem colaborando em iniciativas político-culturais na Associação Afro-Americana e em grupos estudantis.

O encontro de Bobby e Huey na Califórnia, ambos migrantes nascidos no Sul, foi fruto também da chamada “Grande Migração para o Norte” ou a “Migração Negra” nos EUA. A família Seale migrou do Texas, e Huey, havia nascido na Louisiana, outro estado sulista com forte histórico de violência racial contra o povo negro. Esse processo migratório rumo aos estados do nordeste, centro-oeste e oeste dos Estados Unidos iniciado na década de 1910 tomou maiores proporções após a “Grande Depressão” de 1929 e tinha como motivação principal as péssimas condições econômicas das famílias negras e as leis segregacionistas que eram amplamente aplicadas no Sul. Esse perfil de militantes provenientes da migração de famílias negras do Black Belt (Cinturão Negro), que durou até os anos 1970 e deslocou mais de 6 milhões de pessoas da “colônia negra”, vai ser marcante no partido.        

O ano de 1965 seria decisivo para a tomada de consciência que culminaria na formação do Partido Pantera Negra (BPP, na sigla em inglês). Em 21 de fevereiro daquele ano, o povo negro dos EUA perde sua mais importante liderança radical, Malcolm X, que havia rompido e denunciado Elijah Muhammad, é assassinado por um fanático religioso da NOI em um episódio nunca esclarecido e com a participação do FBI, CIA e do Departamento de Polícia de Nova York, provocando diversos protestos nas ruas do país. Em agosto, Los Angeles, maior cidade da Califórnia, assiste ao Levante de Watts, após o assassinato do afro-americano Marquette Frye, os distúrbios tomam grandes proporções e a repressão brutal provoca pelos menos 34 mortes. Huey se convence da proposta de Bobby, que era um ex-militar da Força Aérea norte-americana, vendo a grande participação em atividades contra a guerra imperialista no Vietnã e decidem então formar uma nova organização negra.

Em setembro de 1966 as ruas de São Francisco foram varridas pelos protestos da Rebelião de Hunters Point, após o assassinato pela polícia do jovem negro Matthew Johnson, novamente com tropas e tanques da Guarda Nacional realizando uma brutal repressão contra os motins. Bobby e Huey que trabalhavam no Centro de Serviços de North Oakland escrevem então o Programa dos Dez Pontos, redigido por Huey e com sugestões de Bobby, tendo como inspiração decisiva o programa elaborado por Malcolm X para a Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU, na sigla em inglês), organização fundada após sua ruptura com a NOI. Posteriormente adotam a pantera como símbolo, o nome Partido Pantera Negra para Autodefesa e afirmam uma linha revolucionária e socialista para a luta de libertação negra. A pantera preta, que Huey descrevia como um animal que ataca apenas para se defender, foi tomada como referência do símbolo usado pela Organização pela Liberdade do Condado de Lowndes (LCFO), do Alabama, ligada ao Comitê Coordenador Estudantil Não-Violento (SNCC) que tinha Stokely Carmichael à sua frente, e o nome pantera negra também não era exclusivo, sendo usado por dois outros diferentes grupos negros na Califórnia, que depois desapareciam.

Em 15 de outubro de 1966 o Partido Pantera Negra estava oficialmente fundado, Bobby e Huey se tornariam respectivamente Presidente e Ministro da Defesa da organização, formando uma parceria de décadas que ficaria marcada na longa tradição radical negra nos EUA, com o partido e seus líderes passando a figurar na história da diáspora africana nos EUA ao lado de nomes como Sojourner Truth, Nat Turner, Harriet Tubman, Frederick Douglass, Cyril Biggs, Ida B. Wells, W. E. B. Du Bois, Anna J. Cooper, Marcus Garvey, Oliver Cox, Lucy Parsons, Fannie Lou Hamer, o bolchevique negro Harry Haywood, Rosa Parks, Queen Mother Moore e tantas outras importantes figuras da libertação negra na América racista. Em paralelo às referências negras nos EUA, as lutas dos povos contra o imperialismo norte-americano e o colonialismo também teriam importante pe-so no contexto de formação do Partido Pantera Negra, além da ampliação do envolvimento direto dos EUA no Vietnã e da Guerra de Resistência contra a América liderada por Ho Chi Minh, Vo Nguyen Giap e pela a Frente Nacional de Libertação do Vietnã do Sul, avançavam as lutas de libertação na América Latina e Oriente Médio enquanto as guerras anticoloniais na África se expandiam após a Rebelião Mau-Mau liderada pelo KLFA (sigla para o Exército por Terra e Liberdade do Quênia), a libertação de Gana sob a condução de Kwame Nkrumah e a independência conquistada pelo Movimento Nacional Congolês de Patrice Lumumba, sendo seguidas por importantes processos de libertação como os conduzidos pelo Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) de Amílcar Cabral, pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) de Samora Machel e pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) de Agostinho Neto.

O jovem Bobby Hutton é o primeiro recrutado pelo BPP e será o tesoureiro do partido. Em janeiro de 1967, com os parcos recursos que tinham, o primeiro escritório é aberto e contam com cerca de 25 militantes, incluindo David Hilliard, que se tornaria dirigente nacional e Chefe de Gabinete da organização. O Partido Pantera Negra para Autodefesa, como vai ser chamado até 1968, começa a se expandir pela Califórnia. Huey aprofunda o desenvolvimento da aplicação do marxismo-leninismo às condições e experiência concreta do povo negro nos EUA e para arrecadar fundos e comprarem armas passam a vender Livro Vermelho de citações do presidente Mao Tsé-Tung. As primeiras ações consistem em realizar patrulhas armadas, portando também livros com as leis e câmeras, para acompanhar e intimidar a violência racista e a brutalidade policial nos bairros negros, atividade até então permitida pela legislação da Suprema Corte da Califórnia. Usando uma estética própria com camiseta azul clara e a pantera estampada, jaqueta de couro, calças e boinas pretas, exibindo armas ostensivamente, os panteras transmitem uma imagem de poder e ousadia, causando um grande impacto na comunidade negra, com o partido crescendo em adesões rapidamente. A mídia branca e racista começa a falar sobre um partido “antibranco” formado por “pretos racistas”, que patrulhavam as comunidades com armas. Políticos conservadores locais propõem a “Lei Mulford” para alterar a legislação da Califórnia que permitia que cidadãos portassem armas em público, com o objetivo de frear e criminalizar as atividades do partido.    

Ao sair da prisão em 1967, Eldridge Cleaver, escritor que havia sido companheiro de Malcolm X na OAAU, adere ao partido, assumindo a condição de Ministro da Informação. Nesse mesmo ano, em abril, a primeira edição do jornal The Black Panther é lançada, com destaque para o trabalho gráfico de Emory Douglas, Ministro da Cultura, e funcionando como importante instrumento de formação e mobilização de massas, o periódico chegará a ter 250 mil leitores nos anos seguintes. Ainda em 1967, o episódio que ficou conhecido na mídia norte-americana como a “invasão de Sacramento” seria um divisor de águas, marcando uma virada que daria visibilidade nacional e internacional ao Partido Pantera Negra. Uma caravana de panteras armados se dirige até Sacramento, capital da Califórnia, para protestar contra a aprovação da “Lei Mulford”, seguindo em marcha e ocupando a Assembleia Legislativa estadual. Ronald Regan, então governador da Califórnia, que discursava para jovens num local próximo foge ao ver a coluna de negros armados, o presidente Bobby Seale faz a leitura do “Mandato Executivo n° 1”, escrito por Huey, que por motivos de segurança não participou da ação. Os panteras, mesmo não infringindo qualquer lei, são reprimidos e desarmados pela polícia estadual, 24 militantes do partido são presos, ocasionando uma grande campanha de solidariedade para pagar as fianças dos combatentes detidos.  

O BPP que será mais tarde classificado como “a maior ameaça à segurança interna do país” pelo diretor do FBI, J. Edgar Hoover, entra no radar da máquina repressiva estadunidense. Newton, que desde o início do partido enfatizava a importância das armas como “ferramenta básica de libertação” e afirmava categoricamente que “se você não acredita no chumbo, você já está morto” é acusado pela morte do policial branco John Frey, após um tiroteio ocorrido durante uma patrulha em Oakland, em outubro de 1967, com o partido dando início à campanha “Libertem Huey!”, que toma grandiosos contornos e catapulta o partido e a figura do Ministro de Defesa definitivamente em todo o país e no cenário internacional, com seu julgamento e prisão se arrastando até 1970. Eldridge Cleaver, em seu livro escrito no exílio na Argélia, “Uptight in Babylon”, diria que: “Malcolm X estava morto, mas o tiroteio que ele previra já havia começado. […] A tocha tinha sido acesa, e grandes cidades por todo o país haviam sido incendiadas por negros que, em total desrespeito ao conselho de King, tinham começado a reagir. […] Os irmãos que acorreram para se juntar ao Partido Pantera Negra o fizeram pela crença explícita de que estavam se unindo àquele exército, e que eles iriam para a guerra.”

Eclipsado pela atuação e crescimento vertiginoso dos panteras, os líderes do SNCC, apesar das divergências iniciais, decidem pela adesão ao partido, com H. Rap Brown se tornando Ministro da Justiça, James Forman, que logo depois romperia com o BPP, assumindo como Ministro de Assuntos Exteriores, e Stokely Carmichael, criador do conceito de “Poder Negro” e que havia assessorado o reverendo King anteriormente, se tornando o “Primeiro-Ministro Honorário” dos Panteras Negras. O tumultuoso ano de 1967 ainda seria marcado pela rebelião de Newark, em Nova Jersey, com saques e distúrbios nas ruas, deixando 26 mortos pela repressão, e pela a grande Revolta de Detroit, no Michigan, uma rebelião negra e popular que durou vários dias e se espalhou pelo país, sofrendo uma repressão sem precedentes por forças policiais e pelo exército que deixou 43 mortos e mais de 2 mil feridos. Em 4 de abril de 1968, os EUA amanheceria com a notícia do assassinato de Luther King, atingido por um atirador na sacada de um hotel em Memphis, no Tennessee, onde apoiava uma greve de operários negros. O pastor batista e mais importante voz da comunidade afro-americana que se radicalizava cada vez mais e havia anunciado o início da “Campanha dos Pobres”, preocupava o governo dos EUA e seria vítima, assim como Malcolm, de uma conspiração da máquina repressiva e supremacista branca. Mais de 300 mil pessoas acompanham o funeral do Dr. King, o assassinato gera a maior onda de protestos da história americana, mais de 125 cidades registram distúrbios, a revolta dura pelo menos até o dia 11 de abril e o presidente Lyndon Johnson recorre ao exército, a repressão deixa pelo menos 46 mortos no país. Com MLK, seria também sepultada a estratégia integracionista e pacifista de luta contra o racismo, as revoltas seguem por todo o ano de 1968, e em paralelo ao crescimento do Partido Pantera Negra outras organizações revolucionárias vão surgindo no país, como o Dodge Revolutionary Union Movement (DRUM) e a Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários (LRBW), Black Liberators, Third World Liberation Front, Gay Liberation Front, Bread and Roses e a Weather Underground Organization (WUO), a partir da radicalização do Students for a Democratic Society (SDS).

Na leitura dos panteras, onde o lumpemproletariado negro, ou seja, a massa negra marginalizada, superexplorada e esfarrapada, era o sujeito fundamental para fazer avançar a luta revolucionária nos EUA, as revoltas espontâneas e as lutas insurgentes nas ruas deveriam ser canalizadas para os programas comunitários de sobrevivência que o partido iniciava nas comunidades negras e para a luta armada, que concebiam a partir da guerrilha urbana e da autodefesa negra. Sob o lema de “Todo Poder ao Povo”, a unidade antifascista e revolucionária com os demais setores oprimidos na América racista era também um elemento fundamental na estratégia pantera, e culminaria, em 1969, na formação da “Frente Unida Contra o Fascismo” (UFAF), reunindo os chicanos Brown Berets (Boinas Cafés), o partido revolucionário porto-riquenho Young Lords, a organização de brancos pobres apalachianos Young Patriots, o American Indian Movement dos povos originários, o Partido Paz e Liberdade (PFP) de radicais brancos, os asiáticos conhecidos como Perigo Amarelo da I Wor Kuen (Guarda Vermelha), além de outras organizações menores e até mesmo tentativas de diálogo com o Partido Comunista dos EUA, que os panteras negras combatiam e denunciavam como revisionista e reformista. 

Fortemente influenciado por Malcolm X, Huey definiria o Partido Pantera Negra como um “testamento vivo” do líder negro muçulmano e a máxima de que a luta de libertação do povo negro deveria ser feita “por qualquer meio necessário” ou clássico discurso o “O voto ou a bala” eram repetidamente citados. Robert Williams, fundador da República Nova Áfrika e autor da obra “Negros Armados” foi também uma importante referência para Huey e o partido. O Revolutionary Action Movement (RAM), organização nacionalista negra e marxista-leninista, com forte influência maoísta e um braço armado batizado como Black Guard, que havia sido fundada em 1962 e se espalhou por diversos estados do país, mas com sua base principal na Filadélfia e liderada por nomes como Max Stanford e Donald Freeman, pode ser considerada uma organização revolucionária negra que precede diretamente o BPP, visto que tanto Huey quanto Bobby foram formados politicamente no Soul Students’ Advisory Council, uma filial do RAM no Merritt College dirigida por Ernie Allen. Leitor voraz de clássicos, mas dedicado principalmente à literatura nacionalista negra e as obras de Mao, Frantz Fanon e Che Guevara, Huey se consagraria como principal dirigente e teórico do Partido Pantera Negra, sintetizando mais tarde sua defesa de uma linha revolucionária para a luta de libertação negra com o conceito de “intercomunalismo revolucionário”. Dividindo com Eldridge Cleaver o papel de formulador intelectual do partido, Huey abre uma dura luta ideológica contra o chamado “nacionalismo cultural” e a linha reacionária da US Organization de Ron Karenga, famoso por ser o criador do Kwanzaa e um agente duplo da repressão, opondo o nacionalismo revolucionário ao “nacionalismo reacionário” dos culturalistas, cuja rivalidade estimulada pelo Programa de Contrainteligência do FBI (COINTELPRO) teria um ponto alto com o assassinato dos panteras Bunchy Carter e John Huggins, após discussões com membros da US na Universidade da Califórnia (UCLA) em janeiro de 1969. Além da influência mais direta das revoluções de Cuba e da Argélia, e até mesmo leituras do “Minimanual do Guerrilheiro Urbano” de Carlos Marighella ou do “Catecismo do Revolucionário” de Sergey Nechayev (que é comumente atribuído também a Mikhail Bakunin), o BPP estabeleceu relações com a República Popular Democrática da Coréia e com a “ideia Juche” de Kim Il Sung, mas principalmente, com o pensamento de Mao e a China socialista, onde Huey foi recebido oficialmente em 1971, sendo o maoísmo preponderante para a definição da estratégia pantera, que reconhecia a situação do povo negro nos EUA em uma condição de uma “colônia interna” da América branca e racista, fazendo uma relação direta entre a política imperialista-colonial contra os povos do mundo com a superexploração, a segregação, o encerramento em massa e a brutalidade policial contra a população afro-americana, conjugando assim, o nacionalismo negro com um programa revolucionário e socialista, atravessado por uma linha profundamente antirracista que caracterizava os EUA como um regime fascista em que capitalismo e racismo se determinavam mutuamente, e onde as massas negras marginalizadas deveriam formar a vanguarda da revolução. O internacionalismo seria marcante na trajetória do partido, o chamado programa Diplomacia do Povo para se contrapor à política imperialista da América branca, estabelece relações com países socialistas e inclui o oferecimento de contingentes de panteras para combater como soldados da Frente Nacional de Libertação e do Governo Provisório Revolucionário do Vietnã do Sul.

Até o fim de 1968 o partido havia aberto sedes em pelo menos 20 cidades dos EUA. Em 1969, segue crescendo rapidamente e promovendo as Escolas de Libertação para formação e educação de combatentes do povo negro, as forças repressivas, por sua vez, abrem uma verdadeira guerra contra o partido através do ilegal e clandestino COINTELPRO, cujo objetivo, segundo o próprio J. Edgar Hoover, era “expor, perturbar, desviar, desacreditar, neutralizar e eliminar” dirigentes do BPP. Em 4 de dezembro de 1969, o presidente dos Panteras Negras de Illinois, Fred Hampton, a liderança mais promissora do partido, é brutalmente assassinado pela repressão enquanto dormia. Com apenas 21 anos, Hampton liderava a chamada “Coalizão Arco-Íris” reunindo panteras, latinos, indígenas, asiáticos e brancos pobres, era um exímio orador e organizador, foi assassinado dentro de casa, juntamente com Mark Clark, em uma operação do Departamento de Polícia de Chicago e do FBI. Mesmo sob forte repressão, o avanço do Partido Pantera Negra segue vertiginoso e até 1970 seriam 68 escritórios espalhados pelo país. Sob o lema maoísta de “Servir ao Povo” organizam mais de 60 programas comunitários de sobrevivência que funcionam por todo o país, além do famoso programa de café da manhã para crianças, as iniciativas gratuitas para o povo negro e outros oprimidos funcionavam nos centros comunitários chamados de “Panther Pads” envolvendo clínicas médicas, pesquisas sobre anemia falciforme, odontologia, optometria, ambulâncias, fornecimento de alimentação e cooperativas alimentares, comunicação comunitária, produção de roupas e sapatos, assistência jurídica, apoio para prisioneiros e familiares, crédito comunitário, serviços de saneamento, combate de pragas, programa habitacional, escolas comunitárias, creches, programas de educação musical, aulas de dança e outras.                       

O tema da luta antipatriarcal e contra o sexismo também merece destaque na trajetória do Partido Pantera Negra. Segundo um levantamento de Bobby Seale, em 1969, dois terços dos membros da organização eram mulheres. Kathleen Cleaver, que também tinha sido do SNCC, assume a função de Secretária de Comunicação e integra a direção do partido a partir de 1967, diferente da acusação de Angela Davis para justificar seu distanciamento do partido e filiação ao Che-Lumumba Club, uma organização ligada ao reformista PCUSA, os panteras negras sempre buscaram produzir uma autocrítica do “chauvinismo masculino” e conjugar a luta contra o dominação colonial do povo negro com a luta pela libertação das mulheres e o enfrentamento ao sexismo. Lideranças como Erika Huggins e Assata Shakur também se destacaram, Elaine Brown assumiria a condição de presidente do BPP, quando Huey P. Newton seguiu para o exílio em Cuba em 1974, para escapar de uma nova acusação tramada pela repressão estatal, retornando apenas em 1977. Candi Robinson no artigo “Mulheres Revolucionárias”, publicado no The Black Panther de agosto de 1969, conclamou: “Mulheres negras, mulheres negras, levantai a cabeça e olhai à frente. Nós também somos necessárias à revolução. Irmãs, eduquemos nosso povo. Combater o liberalismo e combater o machismo. Despertar nossos homens para o fato de que somos nem mais nem menos. Somos tão revolucionárias quanto eles. Durante muito tempo temos estado sozinhas. Durante muito tempo temos sido mulheres sem homens, durante muito tempo temos sido duplamente oprimidas, não somente pela sociedade capitalista, mas também pelos homens. Agora já não estamos mais sós, nossos homens estão junto a nós. Nós, mulheres e homens revolucionários, somos um a metade do outro”. E Kathleen, fazendo um balanço anos depois, diria que: “[…] o Partido Pantera Negra defendeu a luta revolucionária para estabelecer uma sociedade socialista. Os Panteras se voltaram para o marxismo-leninismo como guia na oposição do partido ao racismo, ao sexismo e ao capitalismo, […] os princípios do socialismo ditavam a igualdade de gênero entre os membros do partido, assim como a solidariedade interracial e internacional.”

A perseguição dos organismos de repressão dos EUA contra o partido foi implacável, além de Huey, o presidente Bobby Seale também seria preso, primeiro envolvido no famoso caso dos “Sete de Chicago” em 1969 e depois acusado de matar um informante do FBI. Eldridge Cleaver que havia sido candidato à presidência dos EUA para efeitos de propaganda pelo Partido Paz e Liberdade teria que partir para o exílio também após acusações, passando por Cuba e depois Argélia, onde será responsável pela Seção Internacional do partido. Diversos militantes do partido vão sendo assassinados e centenas seriam presos, em uma sofisticada rede de repressão racista montada pelo governo dos EUA. Jonathan Jackson seria assassinado após tentar sequestrar o juiz, promotores e jurados para tentar libertar os Soledad Brothers, entre eles, seu irmão George Jackson, fundador da Black Guerilla Family e que havia se tornando um proeminente pantera negra. Angela Davis, que então organizava uma importante campanha pela libertação dos Soledad Brothers, e era companheira de George, é acusada de fornecer as armas da tentativa de sequestro e uma grande campanha por sua liberdade tem início. No dia 21 de agosto de 1971, George Jackson seria assassinado por guardas racistas na prisão de San Quentin, na Califórnia, com presos de todo o país iniciando greves e motins. No Centro Correcional de Attica, no interior do Estado de Nova York se forma a Fração de Liberação de Attica, inspirada por Jackson e pelo anarquista negro Martin Sostre, explode então uma poderosa rebelião revolucionária contra o sistema prisional racista, que após alguns dias é massacrada por uma operação de guerra, com guardas supremacistas brancos assassinando cerca de 40 pessoas, desencadeando greves e rebeliões que envolveram cerca de 200 mil presos em todo o complexo industrial-prisional norte-americano como resposta ao massacre da Rebelião de Attica. Outro caso emblemático de repressão seria o “Panther 21”, quando 21 panteras negras de Nova York são falsamente acusados e presos por atentados em 1969, sendo absolvidos em 1971, entre eles Afeni Shakur, mãe do rapper Tupac, o anarquista novoafricano Kuwasi Balagoon, Dhoruba al-Mujahid bin Wahad, Jamal Joseph e Sundiata Acoli. Com o crescimento meteórico do partido até 1970, a política de infiltração da repressão assumiu sérios contornos dentro da organização, centenas de cartas e informações falsas, além de divergências ideológicas e lutas internas ocasionam expurgos, proibição de novos membros e problemas dentro do BPP. Com Newton preso de 1967 a 1970, Cleaver fora do país depois de abril de 1968, Seale entrando e saindo da prisão entre 1968 e 1971, David Hilliard assume a liderança nacional do BPP até 1971. Stokely Carmichael (Kwame Ture) já havia rompido com o partido em 1969, sustentando uma posição racialista e contra a unidade multirracial com outras organizações, mas em 1971 as divergências vão tomando contornos maiores. Huey, após ser libertado, passaria a controlar com mão firme o partido através do Comitê Central em Oakland e defender a priorização do trabalho de massas. As divergências culminam na expulsão de Geronimo Ji Jaga, que era Vice-Ministro da Defesa e experiente ex-militar condecorado do Vietnã, e de ouros importantes panteras como Connie Matthews, Michael “Cetewayo” Tabor e Dhoruba Moore, as lideranças de Nova York envolvidas no caso “Panther 21” abrem um pesado confronto com o Comitê Central, acusando o partido de falta de apoio jurídico e financeiro, Huey e demais acusam os panteras de NY de “nacionalismo cultural” e colaboração com inimigos do povo. Kathleen Cleaver e Eldridge se posicionam contra as expulsões e a centralização de poder por Huey. Finalmente em 26 de fevereiro de 1971, Newton e Eldridge Cleaver concordaram em dialogar sobre as disputas internas do partido, mas durante um programa local da televisão de São Francisco, com Cleaver falando por telefone da Argélia, os dois começam a discutir e expulsaram um ao outro da organização. O conflito entre os dois lados atinge um nível extremo quando Robert Webb, um pantera da Costa Oeste que tomou partido de Cleaver foi assassinado em março de 1971, e logo depois, em abril, Samuel Napler, gerente de distribuição do jornal The Black Panther, é morto em Nova York, supostamente em retaliação à morte de Webb. Por serem ambos membros respeitados nacionalmente no partido, a situação de guerra interna gera um temor generalizado entre os panteras, motivando cerca de 40% dos militantes a abandonarem o partido. Huey venceria a luta política interna, mas as lideranças de Nova York e vários outros panteras espalhados pelo país se alinham ao setor de Cleaver, incluindo Russell “Maroon” Shoatz, Sundiata, Mutulu Shakur, Assata Shakur, Ashanti Alston, Balagoon, Ojore Lutalo e outros importantes quadros que formariam, em conjunto com combatentes da República Nova Áfrika e antigos membros da Black Guard do RAM, a organização revolucionária clandestina Exército de Libertação Negra (BLA) para seguir com a luta armada contra o Estado supremacista branco estadunidense. O BLA mantém a tradição original dos panteras negras, mas aprofunda a linha político-militar como organização de guerrilha urbana, coordenando ações armadas com outros grupos como o Weather Underground.  

Por fim, é possível sintetizar a trajetória do Partido Pantera Negra em quatro diferentes fases, a primeira fase entre a fundação em 1966, seu auge em tamanho e influência e o racha em 1971, nessa fase se concentram os escritos e a elaboração político-teórica de Huey, feita principalmente na prisão. Essa fase inicial é marcada também por um grande crescimento nacional do partido, seu reconhecimento internacional, um alto e sofisticado nível de repressão, além de um processo de expurgo nas fileiras da organização e finalmente a ruptura e o nascimento do BLA. A segunda fase do partido tem início em 1971, após a saída de Huey da prisão, uma centralização de poder através do Comitê Central e o início de um caminho reformista, a priorização do trabalho comunitário e dos programas de sobrevivência em detrimento da luta armada, e também pela tentativa eleitoral em Oakland, que ocorre após Huey ganhar novamente sua posição no Comitê Central, aprovando o fechamento das seções locais e suas atividades nos demais estados, com o deslocamento dos militantes que ainda seguiam no partido para a concentração de forças nas candidaturas de Bobby Seale a prefeitura de Oakland e de Elaine Brown à assembleia local, dessa vez diferente das candidaturas anteriores como tática de propaganda, o partido acredita realmente na tomada de poder pela via eleitoral para construir um modelo de poder do povo na cidade onde a organização nasceu.

Após o fracasso eleitoral que deixou o partido em frangalhos, abrindo uma terceira fase, Bobby Sele renuncia à presidência e deixa o partido em 1974, Huey é novamente acusado e parte para o exílio em Cuba, Elaine Brown assume a liderança, promove mais mulheres panteras à condição de direção da organização, mas aprofunda uma linha reformista e mesmo conseguindo incrementar alguns programas comunitários amplia a degeneração da linha revolucionária, fazendo gestões com setores da política tradicional e empresariais. A volta de Huey em 1977 abre a última e derradeira fase da organização, a luta de classes vive um grande refluxo os EUA e o BPP volta a ser um grupo local, apesar de sua grande referência nacional e internacional, Elaine também deixa o partido. Huey, que segundo seus companheiros sempre demonstrou algumas oscilações de personalidade, parece estar de fato abalado psicologicamente com a guerra promovida pelo COINTELPRO contra o partido e adota um comportamento cada vez mais errático, que alguns críticos relacionam com uma espécie de degeneração ideológica lúmpen na gênese da organização. Com frequentes casos de abusos de drogas por Huey, relações conflituosas com gangues, casos de violência interna e sexismo, a última edição do jornal The Black Panther seria publicada em 1980 e a última escola comunitária para jovens fechada em 1982, o lendário Partido Pantera Negra chegaria ao fim nesse mesmo ano.

 O homem negro, cuja imagem circulou o mundo com um porte desafiador, sentado em uma espécie de trono, cercado por escudos africanos, segurando uma lança em uma das mãos e uma arma em outra, em uma foto feita a pedido de Eldridge Cleaver, teria um fim trágico. Huey que havia se formado em Direito em 1974, concluiria seu Ph.D. na Universidade da Califórnia em 1980 com uma dissertação intitulada “War Against the Panthers – A Study of Repression in America”. Em 1984 seria internado por problemas relacionados ao abuso de drogas e em 22 de agosto de 1989 o icônico pantera negra seria assassinado a tiros em Oakland. A versão policial é de que ele teria sido morto por um traficante e membro da gangue da Black Guerrilla Family, fundada por seu antigo companheiro George Jackson. O exemplo da organização que fundou e dirigiu, desafiando a besta imperialista dentro da sua própria casa, contundo, continua sendo uma importante referência para as lutas dos povos no mundo e para o povo negro na diáspora, especialmente. 

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