Viagem ao centro da resistência revolucionária – prefácio dos Contos Guerrilheiros

Era uma manhã ensolarada de 21 de abril, em 1792, quando no antigo Largo da Lampadosa, centro da então capital colonial, a cidade do Rio de Janeiro, o líder mais radicalizado da revolta que entraria para nossa história como Conjuração Mineira, Joaquim José da Silva Xavier, seria enforcado em praça pública, tendo seu corpo posteriormente esquartejado e salgado, com seus pedaços sendo distribuídos pela Estrada Real entre a capital e Minas Gerais. Sob às ordens de Maria I, que ficaria conhecida como a “rainha louca” do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a cabeça do ex-alferes e dentista prático, defensor da república e a favor da abolição da escravidão, seria levada para Vila Rica e exposta dentro de uma gaiola no alto de um poste no centro da Praça de Santa Quitéria.

Antes de ser enforcado, o único condenado à morte naquela revolta anticolonial, afirmaria em voz alta para o público do cortejo que acompanhava seu martírio que “se dez vidas tivesse, dez vidas daria pela libertação da minha pátria”. Ironicamente, Tiradentes que seria eleito como herói da nação e símbolo da pátria após a Proclamação da República em 1889, foi escolhido também como o patrono das instituições policiais brasileiras, as mesmas que representam em nossa realidade histórica a tortura e o martírio de quem ousou lutar pela libertação do país, assim como, reproduzem a mesma lógica de dominação colonial através da brutalidade e da repressão contra a maioria pobre e negra do povo brasileiro.

O nome de Tiradentes, como libertador da pátria e herói anticolonial, assim como o lema “se dez vidas tivesse, dez vidas daria”, seria reivindicado pelo pequeno, mas importante grupo guerrilheiro que enfrentou a ditadura militar fascista e o imperialismo norte-americano, o Movimento Revolucionário Tiradentes – MRT. As raízes da organização armada de orientação marxista-leninista e formada em 1969 fundamentalmente por operários remontam ainda ao PCdoB histórico e às Ligas Camponesas de Francisco Julião.

O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) havia sido fundado em 1962 sob a liderança Maurício Grabois e Pedro Pomar a partir da crise instalada sobre o movimento comunista com o famoso relatório de Kruschev contra Stalin de 1956. Adotando a linha revisionista da “transição pacífica ao socialismo” o setor majoritário da direção do Partidão consolida seu poder no V Congresso de 1960 e posteriormente opera a mudança de nome para Partido Comunista Brasileiro, a fim de obter o registro eleitoral do PCB, além de novos estatutos onde não constam definições como marxismo-leninismo, internacionalismo e comunismo. Com a expulsão da minoria do Comitê Central e dos signatários da chamada “Carta dos 100”, essa dissidência irá liderar a nova formação do Partido Comunista do Brasil.

Assumindo a estratégia maoista da guerra popular prolongada a partir do campo e negando a luta nas cidades para dedicar-se exclusivamente ao trabalho de preparação da guerrilha do Araguaia a partir de 1966-67, o PCdoB expulsa um setor divergente na sua 6ª Conferência, que juntamente com militantes das Ligas Camponesas dará origem ao PCdoB – Ala Vermelha, ou simplesmente Ala. Promovendo ações de expropriação nos centros urbanos o chamado Grupo Especial Nacional Revolucionário (GENR) se torna independente direção da Ala, em um novo racha que finalmente dará origem ao novo Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), que sob a liderança principal de Devanir José de Carvalho, o comandante Henrique, adota o nome do antigo braço armado das Ligas Camponesas que existiu em 1961-62 e foi a origem de parte dos combatentes que deixaram a Ala para formar a nova organização.          

Joaquim Alencar de Seixas, operário e veterano comunista que se transfere do Rio Grande do Sul para São Paulo em 1970, com sua esposa e seus quatro filhos Ieda, Iara, Ivan e Irineu, se integra ao MRT na capital paulista e se torna o comandante Roque. Seu menino mais velho, Ivan, ainda no começo da adolescência e cursando o ginasial passa então a cumprir tarefas da organização, se integrando posteriormente ao grupo guerrilheiro como seu jovem combatente, mesmo sob a preocupação do seu pai e da sua mãe, a também comunista Fanny Akselrud Seixas, com a família conseguindo manter uma fachada de vida legal mesmo atuando clandestinamente na resistência revolucionária e utilizando sua casa como um aparelho do MRT.             

O Movimento Revolucionário Tiradentes, ainda que com uma pequena estrutura, desempenhou um papel de relevância na luta armada contra a ditadura. Com a queda de Carlos Marighella em 4 de novembro de 1969 e o endurecimento da sanguinária repressão do regime, a Ação Libertadora Nacional (ALN) sob a direção de Joaquim Câmara Ferreira e a Vanguarda Popular Revolucionária reorganizada e dirigida pelo capitão Carlos Lamarca após a frustrada tentativa de unificação com o COLINA na VAR-Palmares, se juntam ao PCBR de Mário Alves e ao MR-8 da Guanabara para a formação da experiência de coordenação guerrilheira que existiu entre 1970 e 1971 e seria chamada de Frente Armada Revolucionária, contando ainda com a participação da REDE, de Eduardo Leite, o comandante Bacuri, que se integraria na ALN, e com o MRT sendo o principal elemento de ligação entre as organizações revolucionárias da Frente.

Como participante direto da luta armada no MRT e na Frente, Ivan Seixas nos brinda com as lembranças e a profundidade humana e fraternal de grandes nomes da nossa história de rebeldia como povo brasileiro, desde Henrique, Rei e Roque do MRT, passando por Lamarca, Yoshitane Fujimori e Inês Etienne Romeu, a comandante Leda da VPR, até os comandantes da ALN como Toledo, Bacuri e seu amigo Clemente, mas também desfilam nestas páginas fundamentais para nossa memória coletiva nomes menos conhecidos da esquerda armada e são personagens também destas histórias de resistência e opressão assassinos e torturadores da Oban, do DOPS, do DOI-CODI e do Esquadrão da Morte, além de traidores e infiltrados que desempenharam um papel crucial na repressão.               

As ações da guerrilha urbana como a espetacular expropriação do carro-pagador da Brink’s, a tomada armada da Fábrica Mangels, a tentativa de sequestro do general Humberto de Souza Mello, os justiçamentos do sádico empresário Henning Albert Boilesen e do delegado do DOPS paulista Octávio Gonçalves Moreira Júnior, e diversas outras operações de propaganda armada e expropriação são narradas a partir da visão de seus protagonistas. São histórias de abnegação, heroísmo e valentia de um lado, mas também de traições, covardia e sadismo do lado inimigo.    

Ivan foi capturado pela repressão com seu pai em 16 de abril de 1971. Preso pela Oban, que depois se chamaria DOI-CODI, acompanhou o comandante Roque ser assassinado sob tortura, e sua mãe e irmãs também serem presas e violentadas. Ainda menor de idade, foi transferido diversas vezes entre os DOPS de São Paulo e do Rio Grande do Sul, depois para o Presídio Tiradentes, a Penitenciária do Estado de São Paulo, o DOI-CODI e a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, sendo posto em liberdade somente em agosto de 1976, após importante campanha pela sua liberdade, mas passando ainda por 2 anos e meio de liberdade vigiada e sendo seguido pela repressão.

Esses Contos Guerrilheiros – Memórias da luta armada no Brasil reúnem em mais de trinta ensaios seus relatos e memórias reais que percorrem um importante período da história do nosso país, conduzindo o leitor às cenas do cotidiano da vida clandestina de militantes que assumiram o risco de enfrentar a máquina sanguinária da repressão através da guerrilha urbana e de ousadas ações armadas. O livro narra o funcionamento interno das organizações guerrilheiras, as relações afetivas de amizade, amor e confiança estabelecidas entre os combatentes da esquerda armada, a dureza da vida nas casas clandestinas chamadas de aparelhos, os encontros de guerrilheiros nos locais que eram conhecidos como pontos, o levantamento de informações até as expropriações de bancos e carros-fortes para financiar a luta, os tiroteios com agentes da repressão, as ações de propaganda armada, o atendimento médico aos feridos em condições precárias, o papel infame dos traidores e infiltrados conhecidos como “cachorros”, as redes solidárias de apoio e a tristeza das quedas de companheiros presos ou mortos pelos organismos de repressão. 

Prefácio do Editorial Adandé para o livro Contos Guerrilheiros – Memórias da luta armada no Brasil de Ivan Seixas (300 págs; 2025).  
 

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