Simón Radowitzky: o anarquista que metralhou fascistas na Batalha da Praça da Sé

Apresentamos ao nosso leitor um ensaio inédito em português do saudoso Osvaldo Bayer, escritor e jornalista argentino, sobre a trajetória do “santo da anarquia”, Simón Radowitzky, nascido na Ucrânia e emigrado na Argentina, o lendário mártir de Ushuaia, a prisão do fim do mundo, e adepto da violência revolucionária contra os inimigos do povo, protagonizou desde muito jovem episódios marcantes para o anarquismo e a luta proletária internacional. O texto, “Simón Radowitzky, Homem de Ação”, é parte da nova edição ampliada e revisada de Anarquistas Expropriadores e Outros Ensaios de Osvaldo Bayer, que será lançada em breve em uma parceria entre o Editorial Adandé e a Editora Monstro dos Mares.

Radowitzky, de origem judaica, ferreiro e mecânico na Ucrânia, então parte do Império Russo, participa ainda muito jovem das mobilizações revolucionárias iniciadas em 1905 e segue para o exílio na Argentina ainda adolescente, em 1908, onde vai ser condenado pela morte com um atentado a bomba em 1909 do carrasco do povo coronel Falcón, responsável pela repressão na Semana Roja. Após uma grandiosa campanha pela sua liberdade consegue escapar da prisão na única fuga registrada da história do presídio de Ushuaia, em uma ação conjunta coordenada por Miguel Arcángel Roscigna e outros anarquistas expropriadores chilenos e argentinos, em 1911, é capturado novamente e consegue ser indultado após a vitória da campanha por sua liberdade apenas em 1930, passando a viver no Uruguai e fazendo diversas viagens ao Brasil. Em uma dessas visitas, Simón participa da Batalha da Praça da Sé, em 7 de outubro de 1934, no centro da cidade de São Paulo, que foi o conflito entre integralistas da Ação Integralista Brasileira (AIB) e as diversas forças antifascistas, incluindo o Comitê Antifascista, articulado pelos anarquistas em torno da Federação Operária de São Paulo (FOSP), e que resultou em sete mortos — entre eles um estudante antifascista, três integralistas, dois agentes policiais e um guarda civil — e cerca de trinta feridos. Em um episódio que possui diversas versões, Radowitzky  e o anarquistas João Perez Bouzas retiraram uma metralhadora das mãos de agentes da então Força Pública, e começaram a metralhar guardas civis e em seguida integralistas, no evento que ficou conhecido como a Revoada dos Galinhas Verdes e destroçou a então crescente organização fascista brasileira.

Em 1936, Radowitzky parte para lutar ao lado dos anarquistas da CNT/FAI na Frente de Aragón durante a Guerra Civil Espanhola, depois de se refugiar na França após a derrota para o franquismo, parte para o México onde vive até 1956 colaborando e atuando nos meios anarquistas, quando morre com um infarto.

SIMÓN RADOWITZKY, HOMEM DE AÇÃO

Osvaldo Bayer*

MATAR O TIRANO

Era o primeiro de maio de 1909. Anunciaram-se dois atos operários: um organizado pelos socialistas da União Geral de Trabalhadores, e outro é o da FORA anarquista que convoca a concentração na praça Lorea.

Governa Figueroa Alcorta e o país vive uma situação interna bastante difícil. Faz sete anos que está vigente a famosa “Lei de Residência” 4144, que serve principalmente para expulsar do país os dirigentes anarquistas estrangeiros. Também impede o ingresso ao território da república todo estrangeiro considerado pelo governo como agitador.

Depois do meio-dia a praça Lorea começa a se encher de gente estranha, ao centro: muitos bigodudos, com gorros, lenços, calças remendadas, muitos italianos, russos e bastante catalães. São os anarquistas. O momento culminante se constitui pela chegada da associação anarquista “Luz ao Soldado”. Na avenida de Maio e Salta um carro para de repente. É o coronel Ramón Falcón, chefe de polícia. A massa o reconhece e grita: 

Abaixo o coronel Falcón! Morram os cossacos! Guerra aos burgueses!

Falcón se ergue, é um militar dos antigos, um sacerdote da disciplina. Olha para essa massa que pelo seu critério é estrangeira, indisciplinada, antiargentina. Falcón fala brevemente com Jolly Medrano, chefe do esquadrão de segurança, e se retira. Minutos depois ocorre o choque.

Como sempre, as versões serão contraditórias. A polícia dirá que foi atacada pelos operários e os operários dirão que a repressão começou sem aviso prévio. Mas o certo é que o resultado é uma das maiores tragédias de nossas lutas de rua. Alguém dispara um tiro. Desata-se o tiroteio. Ataca a cavalaria. Os operários fogem, mas nem todos. Alguns não retrocedem. Depois de meia hora de uma luta corajosa a praça acaba vazia. A calçada está semeada de bonés, chapéus, bengalas, lenços… e 36 poças de sangue. São levantados 3 cadáveres e 40 feridos graves. Os mortos são Miguel Bech, espanhol, de 72 anos, vendedor ambulante; José Silva, espanhol, de 23 anos, empregado, e Juan Semino, argentino, de 19 anos, pedreiro. Horas depois morrerão Luis Pantaleone e Manuel Fernández, espanhol de 36 anos, guarda de bonde.

A comoção é tremenda. Falcón manda deter de imediato 16 dirigentes anarquistas e fecha todos os locais dessa tendência. O setor operário também reage: os socialistas se unem aos anarquistas e declaram a greve geral por tempo indeterminado. A suspenderão somente se Falcón renunciar. À medida que passam os dias a greve geral se vai desinflando.

Porém, os políticos e as classes alta e média são surpreendidas pela extraordinária manifestação de luto constituída por uma coluna de 60.000 operários que acompanham ao cemitério os restos dos companheiros caídos.

Desde a tragédia da praça Lorea, em maio desse ano, muitas são as ameaças que pairam sobre Falcón. Ganhou o ódio de um importante setor do movimento operário.

O carro de Falcón pega a avenida Quintana. Conduzido pelo italiano Ferrari. Ao lado de Falcón vai o jovem Alberto Lartigau, de 20 anos de idade. O carro dobra pela avenida Callao rumo ao sul. E é nesse momento que dois homens, o motorista José Fornés, que conduz o automóvel atrás do carro de Falcón, e o ordenado do ministério da Guerra Zoilo Agüero, observam que um rapazote com aspecto de estrangeiro começa a correr a toda velocidade atrás do veículo do chefe de polícia. Carrega algo na mão. Quando o carro dobra, o desconhecido se aproxima em linha oblíqua e joga o pacote no interior do mesmo. Meio segundo depois a terrível explosão. O terrorista olha para todos os lados e começa sua fuga para a avenida Alvear.

Depois do primeiro momento de surpresa, Fornés desce do carro e seguido por Agüero começa a correr até o desconhecido, que segue a uns 70 metros. Dão altos gritos e vão se juntando mais perseguidores, entre eles os agentes Benigno Guzmán e Enrique Müller. O perseguido corre desesperadamente, mas sabe que está encurralado. E assim então um tiro é disparado no peito e cai redondo sobre a calçada.

Falcón sempre acreditou que seu rosto e seu olhar de falcão parariam a mão de quem atentasse contra sua vida. Agora está prostrado na avenida Quintana e Callao, sangrando com suas pernas quebradas. É levado na ambulância ao consultório central. Porém já é tarde, Falcón não suporta o choque traumático e expira. Lartigau morre umas horas mais tarde. Os dois serão velados no departamento central. Poucas vezes Buenos Aires assistirá a uma expressão de dor tão grande. Com delegações policiais de todo o país e do exterior. O Exército argentino e a polícia tomaram como uma afronta. O terrorista é levado pelo cabelo e pela roupa. O insultam. Chamam-lhe de “russo de merda” e outras coisas. Tem os olhos bem abertos, assustados, esperando receber o primeiro tapaço na cara. Está perdido e por isso não pede perdão e sim grita: “Viva o anarquismo! Viva o anarquismo!”. Quando os agentes Müller e Guzmán lhe dizem “já vai ver o que vai te acontecer”, responde em um castelhano quebrado e fanhoso: “Não me importa, para cada um de vocês tenho uma bomba”.

Porém a polícia abre uma exceção. Não cumpre com a lei informal de vingar a morte de um dos seus. Aparece o subcomissário Mariano T. Vila da comissária 15 e ordena colocá-lo em um carro de praça e levá-lo ao hospital Fernández, porque o terrorista está perdendo muito sangue pelo lado direito do peito. Com uns curativos provisórios o preso é enviado ao calabouço da comissária 15 e fica rigorosamente incomunicável. Os interrogatórios se sucedem, mas o terrorista não fala. Apenas diz que é russo e que tem 18 anos de idade. Dali não lhe tiram.

21 ANOS DE PRISÃO

A intranquilidade reina no governo. Figueroa Alcorta estabelece o Estado de Sítio e proíbe os jornais terminantemente de dar qualquer informação sobre o preso e sobre as atividades anarquistas. Uns meses mais tarde Figueroa Alcorta sancionará a “Lei de Defesa Social”, que ampliava as medidas de repressão da lei 4144, deportando e prendendo a todo estrangeiro ou argentino nativo que fizesse propaganda anarquista, por considerar uma incitação à violência e ultraje à pátria.

Após vários dias de incessante trabalho, a polícia consegue identificá-lo: se trata de Simón Radovitzky ou Radowitzky, russo, domiciliado em um cortiço situado na rua Andes 194 (hoje José Evaristo Uriburu), é ferreiro e mecânico.

O ministro argentino em Paris, doutor Ernesto Bosch, informa também o seguinte: Radowitzky participou de distúrbios em Kiev, Rússia, em 1905 e que por isso foi condenado a seis meses de prisão. Também aponta que Radowitzky pertence ao grupo ácrata dirigido pelo intelectual Petroff, juntamente com os conhecidos revolucionários Karaschin (o do atentado no funeral de don Carlos de Borbón), Andrés Ragapeloff, Moisés Scutz, José Buwitz, Máximo Sagarín, Iván Mijin e a palestrante Matrena.

Identificado e reconhecido o crime pelo réu, só resta esperar o dia e a hora em que será fuzilado. Ninguém acredita que possa ter apenas 18 anos. O fiscal vê em Radowitzky um criminoso nato, como esses que assassinam para roubar. Não reconhece que é um filho do desespero, nascido em uma terra onde reina a escravidão e o chicote para o pobre. Finalmente o doutor Beltrán pede a pena de morte para o anarquista. Tem apenas o “pequeno” inconveniente da idade. Mas o doutor Beltrán encontra um modo para vencer essa dificuldade e faz com que “peritos médicos” calculem a idade do preso, determinando que Radowitzky tem um pouco mais de 22 anos. Ou seja, já está maduro para o pelotão. A imprensa influenciada pelos setores poderosos da população pedia a pena de morte. Assim estavam as coisas até que um bom dia apareceu na cena um personagem singular. Disse se chamar Moisés Radowitzky e ser primo do terrorista. Trazia um documento que iria dar uma volta de 180 graus ao processo. Era a certidão de nascimento de Simón Radowitzky. Um documento estranho, escrito com caracteres cirílicos. Os tradutores do comissário inspetor Vieyra afirmam que esse documento vêm a dizer que Simón Radowitzky nasceu na aldeia de Santiago, província de Kiev, Rússia, em 10 de novembro de 1891. Segundo o qual Radowitzky teria agora 18 anos e 7 meses.

Radowitzky se salva do fuzilamento. Mas é condenado à morte lenta: penitenciária por tempo indeterminado, com reclusão solitária a pão e água durante 20 dias todos os anos ao aproximar-se da data do seu crime. Passará 21 anos entre o lixo da sociedade, 19 desses anos no presídio de Ushuaia, tristemente conhecido como a “Sibéria argentina”. Uma ironia histórica foi que, enquanto a Liga Patriótica propôs converter o 14 de novembro, o dia do atentado, em um feriado nacional, os anarquistas se aproveitavam desta data para reivindicar a liberdade de seu preso. Permanecem as perguntas sobre as quais Radowitzky não falará jamais.

Quem o inspirou para cometer o atentado? Foi ideia própria? Fabricou a bomba? Por acaso seus companheiros ordenaram que cometesse o atentado porque era menor de idade e poderia se salvar da pena de morte?

Em 6 de janeiro de 1911, Buenos Aires está em choque com uma notícia. Treze prisioneiros da Penitenciária Nacional escaparam por um túnel construído por debaixo da muralha. Conseguiram escapar dois famosos anarquistas: Francisco Solano Regis e Salvador Planas Virella.

No verão de 1908, quando o presidente José Figueroa Alcorta vai entrar em sua mansão, Solano Regis passa correndo e deixa cair um pacote ao seu lado. O pacote era uma bomba que não havia estourado por conta da errada proporção dos ácidos usados. O anarquista foi condenado a vinte anos de prisão. Em agosto de 1905 Salvador Planas Virella, tipografo de profissão, gruda no carro do presidente Manuel Quintana, engatilha seu revólver, mas a arma falha. É condenado a dez anos de prisão.

Os onze fugitivos restantes são presos comuns. Há um outro anarquista na penitenciaria que não teve como fugir: Simón Radowitzky, que poucos minutos antes havia sido levado a casa de impressão da prisão. Os anarquistas receberam ajuda desde fora e saíram por um túnel em forma de U, na altura da rua Juncal quase esquina com Salguero. Depois disso, nenhum diretor do presídio quer correr o risco de que os anarquistas planejem outra tentativa de fuga para salvar o companheiro preso. Além disso, é possível observar uma coisa pouco comum na prisão: Radowitzky desperta a simpatia de todos, de presos e carcereiros.

Nesse mesmo ano se decide e se leva a cabo a transferência do anarquista ao presídio de Ushuaia. Será a última vez em sua vida que pisa terra portenha. O navio que transportou os presos para Ushuaia se assemelhava bastante a uma câmara de tortura, e a viagem durava quase trinta dias.

Em maio de 1918 Buenos Aires é inundada por um folheto editado pelo jornal “La Protesta” e escrito por Marcial Belascoain Sayós.

O folheto está muito bem informado e denuncia as torturas a que vem sendo submetido Radowitzky, centrando seu ataque no subdiretor do presídio, Gregorio Palacios. Em 9 de novembro desse mesmo ano chega uma notícia sensacional: em 7 de novembro fugiu Radowitzky do presídio de Ushuaia. Lá vai Radowitzky metido em uma pequena chalupa pelo canal de Beagle até a liberdade.

É que os anarquistas de Buenos Aires são bons amigos. Prepararam os planos para derrotar o impossível e juntaram dinheiro. O homem eleito para a proeza é um crioulo puro: don Apolinario Barrera. Será ajudado por Miguel Arcángel Roscigna, quem anos depois, junto a Severino Di Giovanni, chegará a ser o representante mais destacado do anarquismo expropriador.

Os anarquistas viajaram a Punta Arenas. Ali alugam o pequeno veleiro “Ooky”. Em 7 de novembro, às 7 da manhã, um guardião cruza as linhas de sentinelas do presídio. É Radowitzky disfarçado de guarda penitenciário, que não foi reconhecido. Barrera foi da opinião que uma vez a vários quilômetros de Ushuaia, Radowitzky desembarque em um dos tantos refúgios da costa. Haviam deixado comida para dois meses até que as perseguições e buscas houvessem cessado. Mas Radowitzky não aceita e ali comete o erro que lhe custará mais doze anos de prisão. Convence Barrera para que sigam navegando sem interrupções até Punta Arenas. Ao quarto dia de navegação entram no estreito de Magalhães. Até que de pronto avistam no horizonte a fumaça de uma embarcação que se aproxima. Radowitzky intui o perigo e pede que o veleiro se aproxime o máximo possível da costa da península de Brunswick, terra chilena. Assim quase chegando a uns duzentos metros, Radowitzky se joga, então, na água gelada e nada até a costa, onde desaparece. A fumaça negra que se aproximava era do navio de guerra chileno “Yañez”, que foi prender Radowitzky após uma chamada telegráfica das autoridades argentinas. Enquanto de Punta Arenas parte uma equipe de forças policiais da marinha chilena: sete horas depois, no lugar conhecido como Águas Frias, apenas a 12 quilômetros de Punta Arenas, é localizado Radowitzky, extenuado e com suas roupas geladas.

Vinte e três dias depois de sua busca por liberdade, Radowitzky entra novamente na penitenciária de Ushuaia. A vingança das autoridades é refinada: durante mais de dois anos o manterão isolado em uma cela, sem ver a luz do sol, e apenas meia ração.

Em 19 de maio de 1919 acontece o primeiro assalto expropriador na Argentina. O intento fracassa. Andrés Babby e Germán Boris Wladimirovich são condenados à morte, mas os juízes não entram em acordo, impondo-lhes finalmente a pena de prisão perpétua.

Wladimirovich é um personagem especial: nasceu na Rússia, é biólogo, sociólogo, pintor, fala vários idiomas e é autor de muitas publicações. O assalto teve como objetivo levantar fundos para fundar um jornal de agitação. Anos mais tarde Wladimirovich será o cérebro pensante da vingança dos anarquistas contra o membro da Liga Patriótica, Pérez Millán, assassino de Kurt Wilckens.

Na penitenciária de Ushuaia, sem que proponha ser, Radowitzky era um homem muito perigoso: a ele sempre recorriam todos os presos quando eram castigados ou tinham algum problema. Radowitzky sempre escutava a todos e era uma espécie de delegado dos homens de uniformes listrados. Passam os anos e o mito segue crescendo. Os anarco-bolcheviques quiseram atrair Radowitzky para sua causa, já que García Thomas, Viondi e Rosales haviam iniciado contato com ele, mas Simón permaneceu no movimento anarquista tradicional.

O número 23 de “Culmine”, publicação dirigida por Severino Di Giovanni, diz: “Radowitzky morre! As últimas notícias que vem de Ushuaia são alarmantes. A Sibéria argentina não perdoa. Não devemos titubear mais. Comecemos um sério trabalho de agitação que se estenda até os confins da Argentina. Temos que tentar todos os esforços para salvá-lo das garras assassinas dos dirigentes desta ‘grande’ democracia republicana.

Simón Radowitzky morre! O adolescente que justiçou o policial Falcón, o feroz, responsável em mil serviços, soube queimar como uma pira de dignidade rebelde. Que os verdadeiros revolucionários impeçam que este símbolo se acabe!”.

O diretor da prisão de Ushuaia, Juan José Piccini é acusado pelos anarquistas de ter torturado barbaramente Simón. Severino Di Giovanni junto com Paulino Scarfó lhe enviaram um dispositivo que ao ser aberto explode. O atentado, em si, fracassa, mas a notícia sai em todos os jornais e causa grande alvoroço.

Quando Hipólito Yrigoyen assume sua segunda presidência, as diversas organizações de trabalhadores pressionam pelo indulto. É então quando se origina uma discussão nos distintos âmbitos acerca do delito de Radowitzky e sua interpretação. Uma descrição do ocorrido bastante acertada é publicada por Ramón Doll em 1928. Doll qualifica o delito de Radowitzky com as precisas palavras de “crime repugnante e estúpido”, mas adiciona: “não é um crime passional ou de um mercenário; é um crime social, na moderna guerra de classes. É evidente que um juiz pertence sempre a burguesia e, portanto, seus interesses, preconceitos, e sua própria comodidade o levam a se solidarizar com sua classe e não com os da classe proletária, de modo tal que a intolerância que deve ter para todos os crimes dobrasse quando o criminoso é também um adversário. O crime de Radowitzky não é nem mais, nem menos horrendo que os crimes que diariamente se cometem nas lutas eleitorais argentinas”.

E ainda assim, ninguém que participou desses crimes recebeu nem a quarta parte da pena imposta a Radowitzky. “Observe a atitude da burguesia frente aos crimes igualmente nauseabundos: um atentado anarquista e um assassinato noturno. No caso do assassinato por roubo se comenta, se critica, até apaixonadamente, mas sempre se termina deixando-o para a ‘serena majestade da justiça’; no atentado anarquista, a burguesia toma parte em sua repressão, se produzem razias policiais, se agitam as guardas brancas”.

Em janeiro de 1930, Eduardo Barbero Sarzabal, cronista do jornal “Crítica”, se dirige ao presídio de Ushuaia e ali faz gestões para conseguir uma entrevista que vai produzir uma reportagem de grande impacto.

LIBERDADE E LUTA

O desafio feito pelo nazifascista Francisco Franco em 18 de julho de 1936 contra a República espanhola é tomado pelos anarquistas de todo o mundo como uma questão de honra. Madri será o lugar do encontro. E entre esse grupo de homens vindos da Argentina, Brasil e Uruguai está Simón Radowitzky. O ex-prisioneiro de Ushuaia estava quase sempre em Madri, ligado ao comando anarcossindicalista. Radowitzky acredita que a guerra civil espanhola se converteu na realidade em seu velho sonho de ver juntos todos os homens de esquerda. Até que em 1939 é testemunha de uma dilacerante verdade: em Madri, em Valencia e em Barcelona começam os fuzilamentos de anarquistas. Mas não são os fascistas de Franco. São os próprios comunistas que “para evitar indisciplinas” e forçar o comando único em suas mãos, eliminam sem piedade a todo aquele que tenha cheiro de anarquista. Centenas de jovens e homens experimentados em todas as lutas são obrigados a cavar sua própria cova e depois são fuzilados por seus próprios aliados. Assim, sem prévio julgamento.

Ao terminar a guerra são muito poucos os anarquistas que permanecem. Apenas um grupinho que consegue passar os Pirineus, chegar à França e logo embarcar para o México. Ali, Simón Radowitzky editará revistas de pequena circulação, fará periódicas viagens aos Estados Unidos para visitar seus parentes, e às vezes trocará impressões com organizações anarquistas desse país. No México, o poeta uruguaio Ángel Falco o empregará no consulado onde era titular.

Radowitzky mudará de apelido e se chamará simplesmente José Gómez, dividindo seu quarto de pensão com uma mulher. Assim vive entre o trabalho, debates e conferências com os companheiros de ideias, e seu lar. Até que em 4 de março de 1956, aos 65 anos, morre por um ataque cardíaco. Seus amigos pagarão uma sepultura simples.

Matou por idealismo. Que contradições! O mal e o bem, o covarde e o heroico. O braço arteiro, movido por uma mente pura e bela.

* Ensaio inédito em português e traduzido a partir da versão publicada em “Los Anarquistas Expropiadores, Simón Radowitzky y otros ensayos”, pelo selo editorial Sombraysén Editores (Argentina, 2008). A publicação original foi também parte do livro “Los anarquistas expropriadores y otros ensayos” de 1975, do Editorial Galerna de Buenos Aires, publicados originalmente na Revista Todo es Historia.

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