Aimé Césaire, cólera e negritude

Aimé Césaire fotografado por Georges Dudognon durante um comício em Paris contra a guerra colonial francesa na Argélia, em 27 de janeiro de 1956.

* Artigo publicado originalmente como apresentação do livro Discurso sobre o Colonialismo.

Em um artigo publicado na edição de 24 de agosto de 1946 do tradicional jornal L’Humanité, então órgão central do Partido Comunista Francês (PCF), o controverso e importante marxista e partisan Roger Garaudy cravou para Aimé Césarie a alcunha elogiosa de “poeta da cólera”. Césarie havia chegado na França aos 18 anos, em 1931, após ganhar uma bolsa no Liceu Louis-le-Grand, onde concluiria seus estudos secundários para depois ser aprovado na Escola Normal Superior de Paris em 1935. Nesses anos, o jovem Aimé participa da Associação dos Estudantes Martinicanos na França, funda o jornal literário L’Étudiant noir, conhece os senegaleses Léopold Senghor, Birago Diop e Ousmane Socé e reencontra o franco-guianense Léon-Gontran Damas, que fora seu amigo de infância, se aproximando também da juventude comunista. Nesse coletivo de jovens intelectuais negros que se encontraram e se reconheceram na capital colonial ocorreriam os debates que ensejaram a formulação do conceito de negritude, usado por Césaire pela primeira vez no artigo Conscience raciale et révolution sociale, publicado na seção Nègreries da terceira edição de L’Étudiant noir, em maio/junho de 1935, dando origem à corrente político-cultural que ficou conhecida como “movimento da negritude”.

Aimé Fernand David Césaire nasceu em 26 de junho de 1913 na pequena cidade de Basse-Pointe, na região nordeste da Martinica, foi criado com mais cinco irmãos por uma mãe costureira e um pai que trabalhava como fiscal local de impostos, mas, em que pese o elevado nível cultural de sua família, Aimé e seus irmãos viveram sempre em uma situação de relativa pobreza. Muito cedo, se destacou como um aluno brilhante e premiado do Liceu Schoelcher em Fort-de-France, capital martinicana, partindo para a França assim que se formou em 1931 e ainda nutrindo um certo sentimento pelo “universalismo europeu”. Estudante no Liceu Louis-le-Grand, vivendo em uma Paris do período entreguerras, Césaire passa a ser fortemente influenciado pela rebeldia do surrealismo e pelos debates marxistas da época, conhece publicações como La Revue du Monde Noir e Légitime Défense econvive também com outros círculos intelectuais martinicanos, como o grupo formado em torno das irmãs Nardal e o coletivo onde se destacavam nomes como Étienne Léro e René Ménil. Em 1935, Césaire é aprovado em sua segunda tentativa no exame de admissão para os estudos em letras e humanidades na Escola Normal Superior e nesse mesmo ano inicia a publicação de L’Étudiant noir, periódico animado pelo círculo político-intelectualde estudantes africanos e antilo-guianenses, que diferentemente dos demais, avança nas reflexões sobre a questão colonial fundindo as influências comunistas com as ideias nascentes do pan-africanismo.

Durante suas curtas férias de verão na Iugoslávia em 1935 e profundas reflexões sobre a Martinica, Césaire começa a escrever os versos do seu clássico Cahier d’un retour au pays natal, que só seria publicado na revista Volontés em 1939 e receberia outras edições em livro nas décadas seguintes, com prefácio escrito em 1943 pelo poeta André Breton, fundador e principal teórico do surrealismo. Retornando à Martinica nas férias seguintes, a vivência de Césaire na metrópole o faz enxergar a questão colonial de outra forma, passando a entender a centralidade da luta anticolonial para libertação dos povos, em especial na África e nas Américas, reflexão que marcaria profundamente toda sua obra e sua dedicada militância por toda uma vida. Em 1937, Césaire retorna a França para concluir seus estudos e finaliza sua tese sobre o Renascimento do Harlem e as representações de escritores afro-americanos como Langston Hughes e W. E. B. Du Bois. Nesse mesmo ano, casa-se com Suzanne Roussi, também estudante martinicana e sua colega no L’Étudiant noir, que se tornaria uma importante e inovadora teórica do surrealismo.

O casal retorna para a Martinica em 1939 com seu filho, se estabelecendo na capital, onde Césaire passa a lecionar no Liceu Schoelcher e será professor e mentor de Frantz Fanon, influenciando fortemente também o escritor Édouard Glissant. Com René Ménil, Lucie Thésée, Georges Gratiant e outros intelectuais martinicanos, o casal Césaire funda a revista literária Tropiques no período que coincide com o avanço dos eventos na Europa que culminarão na Segunda Guerra Mundial, com a França sendo ocupada pelos nazistas a partir de 1940 e a instauração do regime de Vichy sob a ditadura colaboracionista do marechal Pétain. O regime fascista também se estende sobre as colônias francesas, a “Ilha das Belas Flores” tem seu abastecimento cortado e sofre com o regime repressivo do Almirante Robert. A revista Tropiques é censurada e proibida sob a acusação de ser uma publicação “revolucionária”, “racista” e “sectária”. Aimé se aproxima cada vez mais da federação comunista martinicana que funciona como uma regional do Partido Comunista Francês, ao qual se filiaria oficialmente aos 32 anos e seria eleito em 1945, após o fim da segunda guerra com a derrota do Terceiro Reich e do regime de Vichy, primeiro como presidente do conselho municipal de Fort-de-France, e na sequência, como representante martinicano e deputado na Assembleia Nacional da Quarta República Francesa, a partir de 1946. Em sua primeira ação como deputado, Césaire lidera a luta pela mudança do estatuto das colônias francesas, sendo relator da lei de 1946 que transforma a Martinica, Guadalupe, Reunião, Maiote e a Guiana Francesa em “departamentos ultramarinos” da República Francesa.

Em paralelo à sua atividade política, Aimé aprofunda sua relação com o surrealismo e se dedica à produção poética, publicando Les Armes miraculeuses em 1946, Soleil cou coupé em 1948 e Corps perdu, com ilustrações de Pablo Picasso, em 1949. Estabelece uma importante colaboração com a revista Présence Africaine, fundada por Alioune Diop em 1947 e que será um importante porta-voz dos debates do movimento da negritude e do pan-africanismo. O ensaio Discours sur le colonialismo aparece pela primeira vez em 1950, mas seria de fato reconhecido pelo público com a edição de 1955 da Présence Africaine.

O Discurso de Césaire se tornaria sua obra mais contundente e conhecida. Utilizando a cadência revolucionária própria de um manifesto e lançando mão das tonalidades rebeldes de sua poesia surrealista, Césaire denuncia a Europa como uma civilização moribunda e indefensável que caminhava para a autodestruição. Como uma declaração de guerra ao colonialismo e ao fascismo, o Discurso de Césaire utiliza a dialética hegeliana para demonstrar como a violência colonial vai transformando cada vez os países colonizadores em reinados da barbárie. Não obstante da sua defesa da revolução proletária como solução final e o exemplo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) como nação socialista e multiétnica, Césaire dialoga com lógica leninista de que “a revolução social só pode vir na forma de uma época na qual são combinadas a guerra civil do proletariado contra a burguesia nos países avançados, e toda uma série de movimentos democráticos e revolucionários, incluindo os movimentos de libertação nacional, nas nações subdesenvolvidas, atrasadas e oprimidas” (V. I. Lênin, em Sobre uma caricatura do marxismo e o “economicismo imperialista”, outubro de 1916), mas radicaliza a compressão dialética entre a revolução proletária nos países centrais e as lutas de libertação dos povos colonizados, particularmente do povo negro na África e na diáspora, que em sua percepção assume uma condição de centralidade para derrotar o sistema capitalista e sua essência colonial e imperialista.     

Césaire terá uma longa carreira dedicada à atividade política, dividindo sempre sua atuação entre a Martinica e a França, sendo deputado na Assembleia Nacional francesa por 47 anos (1946-1993) e ocupando o cargo equivalente ao de prefeito de Fort-de-France durante 56 anos (1945-2001). Em 1956, logo após ser desatada a crise internacional no movimento comunista, publica sua famosa Lettre à Maurice Thorez, carta onde expõe suas divergências e motivos de rompimento com o PCF ao secretário-geral do partido, que também foi vice-primeiro-ministro da França em 1946-47. Em 1958, Césaire funda o Partido Progressista da Martinica, que defende um tipo de “comunismo martinicano” e que dialoga bastante com as perspectivas do socialismo africano de seu companheiro Léopold Sédar Senghor, que se tornaria presidente do Senegal independente a partir de 1960.

A militância artístico-literária nunca deixou de ser para Césaire um dos seus campos de batalha, produzindo ao longo de sua vida cerca de 15 obras entre compilações de poesia, dramaturgia e ensaios diversos, além de dezenas e dezenas de poemas e artigos publicados em revistas ligadas à questão negra e ao surrealismo. A eloquência do martinicano, seu engajamento e solidariedade às lutas anticoloniais fez dele uma espécie de porta-voz dos povos colonizados, sendo uma figura de destaque no I Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, realizado em setembro de 1956, em Paris, no II Congresso Internacional de 1959, em Roma, e no I Festival Mundial de Artes Negras em Dakar, em 1966. O conceito de negritude, que Césaire definiu como um elemento de autorreconhecimento da identidade negra, construção de solidariedade para um processo de libertação baseado na busca pelos valores culturais da África negra e que Jean-Paul Sartre chamou de “negação da negação do homem negro”, foi o ponto de partida para o movimento político-cultural que se seguiu e que inspirou guerras de libertação na África e em outras partes do mundo.

Em 1958, Aimé publicou seu primeiro texto teatral com Et les chiens se taisaient, retomou a poesia com Ferrements em 1960 e Cadastre em 1961. Sua estadia no Haiti por cerca de seis meses quando mais jovem também se refletiria em sua obra com o ensaio histórico Toussaint Louverture. La révolution Française et le problème colonial publicado em 1962 e a peça La Tragédie du roi Christophe, em 1963. Na peça dividida em três atos Une saison au Congo de 1966, nosso autor narra o processo de libertação da República Democrática do Congo e a tragédia de Patrice Lumumba. A adaptação para um teatro negro de “A Tempestade” de William Shakespeare, publicada como Une Tempête em 1969 seria a última contribuição de Césaire à dramaturgia. Suas Œuvres complètes em três volumes seriam publicadas na França em 1976, mas o “poeta da cólera” ainda daria contribuições à literatura terceiro-mundista com o livro de poemas Moi, laminaire em 1982, o ensaio Discours sur la négritude de 1987 e La Poésie de 1994. Césaire falece aos 94 anos em Fort-de-France no dia 17 de abril de 2008, encerrando sua longa trajetória de toda uma vida dedicada à Martinica e à causa dos povos colonizados.

      

Aimé Césarie durante o I Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, realizado em setembro de 1956, em Paris.

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