Marighella – a poesia de um revolucionário – Clóvis Moura

Artigo escrito pelo historiador, sociólogo, poeta e jornalista comunista Clóvis Moura (1925-2003), apresentado no seminário “O pensamento político de Carlos Marighella”, em maio de 1994 na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e publicado em versões diferentes nos livros Carlos Marighella – Poemas: Rondó da Liberdade (Ed. Brasilense; 1994) e Carlos Marighella: o homem por trás do mito (Editora Unesp; 1999).

“Não selo o meu cavalo

com arreios de prata,

não disponho de rendimentos de qualquer espécie.

Eu não tenho nem bens nem poder

Não tenho mais do que este copo de mel.

de mel cor de fogo.

Este é o meu único bem.”

Mazim Hikmet

Ao falar de Carlos Marighella, devo começar fazendo uma evocação que remonta a 1945. Foi a primeira vez que travei contato com a sua imagem: uma fotografia publicada em jornal da Bahia, mostrando-o no interior de um automóvel ao sair da prisão. E ele sorria. Um sorriso alegre e confiante de otimismo. Naquele tempo, eu pouco sabia da história do Partido Comunista e dos seus líderes. Fiquei conhecendo o seu nome por meio daquela notícia. O otimismo era, na época, o sentimento dominante entre os comunistas em todo o mundo. A União Soviética conseguira derrotar o nazifascismo. Os partidos comunistas assumiam um papel importantíssimo no panorama político mundial e Molotov, traduzindo este momento eufórico, diria que “vivemos uma época em que todos os caminhos conduzem ao comunismo”. Gabriel Péri, antes de ser fuzilado pelos nazistas, pouco antes do final da Guerra diria que “o comunismo é a juventude do mundo e anuncia os amanhãs que cantam”. Foi neste clima que tomei conhecimento do nome Carlos Marighella. A notícia dava como legenda uma pequena biografia política do militante e a sua opinião sobre o momento político nacional e internacional.

Esta imagem de otimismo e alegria me vinha à mente todas as vezes que lembrava de Carlos Marighella. Mesmo quando recebi a notícia da sua morte (pelo rádio do automóvel em que me encontrava), aquela imagem inicial de alegria me veio à mente.

A história política do Brasil havia mudado muito, ficando mais sombria e o seu povo mais triste. As esperanças otimistas do pós-guerra haviam desaparecido. Aquela euforia de vitória foi substituída por uma posição de vigilância permanente: “o espião janta conosco”, diria o poeta Carlos Drummond de Andrade.

De Carlos Marighella, sempre guardamos a imagem inicial. Depois o conhecemos como deputado, dirigente comunista polêmico, corajoso e mesmo temerário. Mas sempre a imagem que me vinha à memória era daquela fotografia de jornal e o seu sorriso. Era o sorriso do poeta que me vinha à lembrança todas as vezes que dele me recordava. E é como poeta principalmente que desejo evocá-lo. Não que o político fosse desligado do intelectual criador. Mas, para mim, é mais fácil evocá-lo com a ternura que somente os poetas conseguem despertar.

Como marxista, especialmente como intelectual marxista, sempre procurou discutir os problemas específicos da literatura e da arte. Na década de 1950, chegou a ser assistente da Frente Cultural do Partido, em São Paulo, convivendo com nomes como Vilanova Artigas, Artur Neves, Mário Schenberg, Fernando Pedreira, Mário Gruber, Afonso Schmidt e inúmeros outros. Alguns ainda são comunistas. Outros desviados nos labirintos do neoliberalismo. Alguns, finalmente, mortos.

Marighella tinha uma posição rigidamente ortodoxa em relação ao realismo socialista, naquela época imposto como dogma não apenas aos intelectuais soviéticos, mas a todos aqueles intelectuais marxistas do mundo. Durante o tempo em que assistiu a Frente Cultural, exigia dos intelectuais obediência aos princípios do realismo socialista, mas, também, à disciplina partidária, tendo-se manifestado publicamente na revista Fundamentos, órgão dos intelectuais do Partido Comunista, contra a fundação da Revista Brasiliense, organizada por intelectuais marxistas independentes, ou pertencentes ao Partido Comunista, como Caio Prado Jr., Elias Chaves Neto, Catulo Branco e outros, em nota que ficou célebre porque afirmava a condição de membros do Partido de alguns nomes, o que causou problemas para eles com os órgãos de segurança em face da ilegalidade do Partido.

Esta nota tem um significado particular para mim. Ela saiu na revista Fundamentos com as iniciais CM (Carlos Marighella) e ARI (Pedro Mota Lima). Acontece que eu era secretário da revista àquela época e para os seus leitores as iniciais CM eram Clóvis Moura e ARI certamente outro parceiro. Como, por outro lado, eu não podia esclarecer o caso, porque desta forma iria praticar erro idêntico, Caio Prado Jr., Elias Chaves Neto e outros membros da Revista Brasiliense morreram pensando que a nota fora de minha autoria. Cheguei, posteriormente, a colaborar na revista. Mas sempre considerado o autor da nota dissonante.

Nesta época, já estávamos no período da Guerra Fria e no processo de repressão ao comunismo de forma sistemática. Foi o que determinou, por outro lado, esse endurecimento de comportamento dos comunistas em relação ao aparelho de Estado brasileiro.

Mas Carlos Marighella, antes disto, havia sido deputado federal (depois cassado) pelo PCB. Chegou a fazer parte da mesa da Câmara Federal. No particular, eram conhecidas as suas intervenções e apartes sobre matéria a ser legislada. Quando se discutia na Constituinte o problema da Família, Marighella pronunciou discurso sobre a separação entre a Igreja e o Estado o qual provocou vivo interesse e polêmica acirrada naquela Câmara Legislativa, em 4 de julho de 1946. Mediante esse texto, podemos ver como Marighella era um marxista convicto, um parlamentar revolucionário encravado no contexto conservador da Constituinte. Defendia uma posição radical coerente com a filosofia do seu partido e a ideologia que o norteava o materialismo histórico. E foi nesta linha de coerência com os seus princípios que lutou até o fim, dando a vida como prova de fidelidade a esses princípios.

Mas, por outro lado, Carlos Marighella era também poeta. E na poesia é que iremos encontrar a riqueza maior do seu pensamento porque, muitas vezes, além da visão científica, da posição política, aquela vai na direção de uma visão muito mais complexa da valorizada por ele no dia a dia. Daí a transcendência poética de todo revolucionário autêntico. Porque todo revolucionário é um poeta nato. Isto não significa que seja obrigado a fazer versos. Mas, a sua visão do mundo leva-o a vê-lo dentro de um enquadramento romântico ao procurar transformá-lo. Marx dizia que “o homem é um ser apaixonado e por ser apaixonado um ser que sofre”. Isto explica o que dissemos acima. O próprio Marx fez poesias na sua juventude. A paixão revolucionária faz com que a realidade não se esgote na visão do que existe no mundo, mas leva-a a uma atitude dinâmica ao tentar transformá-la. E nesta visão de permanente transformação ele se apaixona mais do que os demais homens e por isto sofre mais porque recolhe dentro de si o sofrimento de todos aqueles que são oprimidos e discriminados.

Muitos revolucionários assumem em primeiro plano a posição de poetas como Maiakóvski, Aragon, Nazim Hikmet, Paul Éluard, Pablo Neruda, José Portogalo ou Rafael Alberti.

Outros se engajam na militância política e são os líderes e dirigentes. Há, também, o que é raro, aqueles que são, ao mesmo tempo, dirigentes revolucionários e poetas, como é o caso de Mao Tsé-tung e Ho Chi Minh. Mas, em todos eles, subjacente, existe aquela conotação apaixonada que os caracteriza. Uns e outros trazem a marca de transformadores do mundo, os poetas através de metáfora e dos símbolos e os segundos pela militância política. Todos porém têm a mesma marca romântica e humanista e a paixão os irmana no mesmo nível de transformadores da história. Aliás, já dizia Mário de Andrade que todo vate vaticina.

Carlos Marighella, como autêntico revolucionário não fugiu à regra. Um dos maiores militantes comunistas do Brasil, cuja existência foi toda dedicada à transformação da nossa sociedade, tinha, na sua subjacência a dimensão poética, acompanhando-o em cada dia da sua vida. E não apenas na sua ação política, a qual já era um ato de romantismo revolucionário, mas na sua atividade criadora como poeta. E esta preocupação levou-o a produzir um trabalho nessa área que foi como um contraponto à sua ação de comunista.

A sua poesia nasce já nos bancos colegiais. Ainda na Bahia, Marighella surpreende os seus professores fazendo uma prova de Física em versos. As suas poesias de estudante têm como constante a crítica. Critica o estabelecimento em que estudava, professores, organização colegial. É sempre irreverente e cáustico, igual a um Gregório de Matos estudantil. Procura, através dos seus versos fazer a crítica social do mundo estudantil.

Os seus versos posteriores podem ser divididos em três níveis que se completam: a) revolucionários; b) evocativos e c) líricos. No primeiro nível, podemos destacar alguns poemas entre os quais encontram-se os escritos na prisão, como Liberdade, elaborado quando se encontrava no Presídio Especial de São Paulo, em 1939, o Urubu, também escrito no mesmo presídio, A prece dos escravos, Rondó da Liberdade, Muralha, escrito quando estava preso na Colônia de Dois Rios e Castro Alves, para citarmos apenas alguns. Nesses poemas Marighella expõe as suas ideias políticas, muitas vezes aproveitando-se de aspectos da vida social para exprimi-las como no Urubu ou A prece dos escravos. Outras vezes o discurso político é direto como no soneto Liberdade. Usa desde o verso livre até o rígido soneto clássico metrificado e rimado como Liberdade. Em todos eles, porém, há a chama revolucionária inspirando-o e dando-lhe a conotação fundamental. Nessas poesias, inflamadas de ardor revolucionário, Carlos Marighella não cai, contudo, no panfletário, mas conduz o tema dentro de uma visão poética, o que o descarta daqueles que pensam fazer poesia revolucionária através do panfleto. Não. Marighella usa de vários recursos para escapar deste defeito e a sua visão de revolucionário é refletida nas suas poesias através de uma linguagem poética.

Nas poesias evocativas ele recria um universo baseado na memória, especialmente nas recordações da Bahia, terra onde nasceu. Marighella lembra o Cais do Porto e escreve poemas como Visão da Cidade do Salvador no mar em uma viagem de saveiro, Canto para atabaque no qual valoriza a sua ascendência africana dizendo:

Minha avó era nega haussá,

ela veio foi da África,

num navio negreiro.

Interessante é assinalar-se que os haussás eram um grupo étnico africano célebre pela sua participação nas revoltas escravas ocorridas em Salvador no século XIX. Aqui se nota como o poeta faz questão implícita de ligar a sua ascendência africana à sua consciência revolucionária. E diz mais, no mesmo poema:

Quem fez o Brasil

foi o trabalho do negro,

de escravo, de escrava,

com banzo, sem banzo,

mas lá na senzala

o filão do Brasil

veio de lá foi da África.

Preocupado sempre com as suas raízes étnicas e telúricas, o poeta volta sempre a recordar Salvador e os seus costumes, como nos poemas A Rainha do Mar e outros de igual teor. O poeta Carlos Marighella, no entanto, tinha a sensibilidade aberta às outras paisagens e realidades, escrevendo também sobre o Rio de Janeiro, Fernando de Noronha (este um poema evocativo mas, também revolucionário), Visão da cidade de São Paulo amanhecendo sobre o cemitério da Consolação, Pão de Açúcar e outros poemas diversificados. Mas, sempre fiel às suas raízes telúricas, Carlos Marighella volta a cantar os temas baianos, como em Capoeira, quando ele aproveita-se do assunto para dizer:

Luta africana

que o mestiço encampou,

que os guerreiros da mata

quilombos, Palmares,

souberam jogar.

Que o angolano nos trouxe,

que o mestre Pastinha nos soube ensinar.

Zum, zum, zum,

capoeira mata um.

Por fim, a sua parte lírica. É aquela na qual o poeta mais se despoja e aparece na sua vivência existencial, abrindo o seu interior e revelando os possíveis segredos do seu ser. Há todo um leque de variações líricas neste plano da sua produção poética, chegando até ao amoroso sensual. Poesias como A vaga, Morena, Balada do amor, Despedida, Seios, bem demonstram como ele estava impregnado do sentimento amoroso. Em Exortação, por exemplo, diz sensualmente:

Ao ver-te os lábios súplices abertos,

na ânsia de pedir mais outros beijos,

possa eu com os lábios sequiosos

exaurir a seiva do teu ser.

Esgotemos um ao outro a taça do viver.

E depois de mortos de amor

possamos pelo amor de novo reviver.

Ou, então, neste poema Seios.

Eram dois seios lindos, provocantes

assomando-lhe do busto venusino,

como dois irmãos gêmeos abraçados

presos no ergástulo da blusa de cetim.

E eram como os tinha imaginado:

duas taças cheias

que eu sorvi extasiado, delirando

qual viajante sedento no deserto

ante uma fonte de água cristalina.

Esta produção lírico-amorosa e por vezes sensual de Carlos Marighella vem desmentir a tese daqueles que dizem ser o revolucionário um ser sem interioridade e sem sensibilidade existencial. O que ela mostra, pelo contrário, é que o poeta revolucionário ou o revolucionário poeta se completava no romântico lírico. Depois de se ler os seus versos ninguém mais poderá dizer que os revolucionários não são, igualmente, grandes amantes.

Do conjunto da obra conclui-se pela riqueza e complexidade da personalidade de um dos maiores revolucionários que o Brasil já teve em todos os tempos e a sua permanente preocupação com a beleza e com a significação da poesia. O saldo dos seus versos – sem entrarmos em considerações de avaliação de crítica literária – é revelador de uma personalidade desafiadora em todos os ramos de atividade, de uma instigante figura de homem que, pela sua natureza desafiadora deu a sua vida como último poema que escreveu em defesa da dignidade humana: um legado de beleza heroica.

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