Mensagem ao Povo Brasileiro – Carlos Marighella  

A “Mensagem ao Povo Brasileiro através da Rádio Havana” de agosto de 1967 faz parte da pesquisa da nova Coleção Pensamento Marighella. Utilizamos como fontes o áudio original da Rádio Havana, além das publicações “Mensagens de Cuba” (1967) e “Carlos Marighella – Textos” (1971), com edições originais publicadas respectivamente pelo Agrupamento Comunista de São Paulo e pela ALN.  

Carlos Marighella, Havana (Cuba), agosto de 1967.

Minha mensagem ao povo brasileiro é uma mensagem de confiança na capacidade revolucionária das massas. A vitória do povo brasileiro – estou certo disto – será pela revolução, pela luta armada, pela luta de guerrilha.

Nenhum patriota pode chegar a outra conclusão depois de examinar o que se passa no Brasil. Desde o golpe de abril de 1964, o Brasil está transformado numa base de operações dos Estados Unidos. As maiores empresas norte-americanas, como a General Motors, General Eletric, Firestone, Swift, Armour, ou bancos estrangeiros como o First National City Bank, detêm o controle estratégico da produção industrial e agrícola do país.

O governo do gorila Costa e Silva é uma ditadura militar, subproduto neofascista, cujo objetivo é servir totalmente aos interesses norte-americanos. A ditadura brasileira prepara suas forças militares para reprimir as guerrilhas e mandar tropas para combater fora do país em apoio às guerras de agressão dos Estados Unidos, como a do Vietnã, e inclusive para uma nova invasão armada contra Cuba.

Os oficiais da Escola Superior de Guerra são instrumentos de que se servem os Estados Unidos e sua Central de Inteligência Americana para dirigir os destinos da atual ditadura.

A Constituição brasileira atual, imposta ao povo depois da anulação da Constituição de 1946, é um código medieval, completado por mais duas leis fascistas: a Lei de Segurança e a Lei de Imprensa. O fascismo que impera no Brasil está confirmado pelo emprego do confinamento, ao molde dos países fascistas, como a Itália de Mussolini, e que agora está sendo usado no Brasil para reduzir ao silêncio os adversários do governo. O exemplo é o confinamento do jornalista Hélio Fernandes, na Ilha de Fernando de Noronha. No Brasil, não há liberdade de crítica, de opinião ou de organização. Os sindicatos dos trabalhadores não são livres, podendo ser ocupados pela polícia a qualquer momento que os gorilas desejem.

Os dois únicos partidos políticos existentes legalmente, se assim se pode dizer, a Arena e o MDB, são partidos consentidos pela ditadura, com o objetivo de fazer crer à opinião pública estrangeira que no Brasil há liberdade política. A verdade é que não há. Os partidos e organizações que defendem os interesses do povo estão na clandestinidade, como acontece com os comunistas e demais forças patrióticas.

O governo do gorila Costa e Silva prossegue a mesma linha de perseguições, policialismo e terror contra o povo, que foi posta em prática pelo seu antecessor, o falecido gorila Castelo Branco, de infeliz memória. Depois do golpe de abril, os comunistas e demais patriotas foram caçados à bala nas ruas. Gregório Bezerra, líder comunista camponês, foi arrastado pelas ruas do Recife, com uma corda no pescoço, e permanece encarcerado até hoje, já agora condenado, sob o governo do gorila Costa e Silva, a cumprir uma pena de 19 anos de prisão. Manuel Raimundo Soares, sargento do Exército, só porque era um patriota foi preso, torturado no cárcere e assassinado pela polícia e oficiais militares do Rio Grande do Sul, que o lançaram às águas do rio Guaíba, com os pés e as mãos amarrados.

Ainda nos dias de hoje, na vigência do governo do gorila Costa e Silva, o professor Bayard Boiteux, acusado de manter contato com os guerrilheiros de Caparaó, se encontra detido com algemas nas mãos, e o mesmo se passa com o capitão Jefferson Cardim e os guerrilheiros da fronteira sul, que permanecem algemados e encerrados na prisão, sem ao menos tomar banho de sol.

Para que depois o Ministro Magalhães Pinto, em tão má hora servindo de espoleta do gorila Costa e Silva, não venha dizer que é mentira, é bom que se acrescente algo também sobre os estudantes. Os estudantes brasileiros, que mantêm lutas incessantes nas ruas, combatendo a ditadura e os acordos MEC-USAID, estabelecidos entre o governo do Brasil e dos Estados Unidos, são massacrados diariamente, reprimidos a tiros em suas manifestações em recinto fechado ou nas ruas, e mandados ao cárcere.

O governo Costa e Silva não tem nenhuma força moral, pois além de prender, matar, espancar, estimula a corrupção e a desonestidade, que crescem nos setores da administração pública, estendendo-se às negociatas com dólares, ainda que a ditadura tenha sido implantada sob o pretexto de moralizar.

No que diz respeito aos interesses das massas, o governo fez congelar os salários dos operários, enquanto os aluguéis, os preços das passagens e dos gêneros de primeira necessidade não param de subir e a moeda brasileira se desvaloriza todos os dias em relação ao dólar norte-americano.

Os latifundiários e a polícia continuam assassinando os camponeses, o desemprego prolifera no campo, afetando principalmente os trabalhadores da cana, no Nordeste e em São Paulo. Além do desemprego, os trabalhadores rurais se veem a braços com o atraso no pagamento de seus, já em si, miseráveis salários. Há trabalhadores do campo que não recebem pagamento há mais de três, quatro e até seis meses. Milhões de camponeses continuam sem terra, escravizados ao vale e aos armazéns dos grandes proprietários. Enquanto isso, os “Voluntários da Paz” norte-americanos, missionários e outros enviados dos Estados Unidos andam pelo interior do Brasil explorando o terreno em busca de minerais atômicos e realizando experiências anticoncepcionais com as camponesas brasileiras, sob o pretexto de deter a explosão demográfica, como se tal coisa dissesse respeito aos imperialistas yanques, e o nosso povo fosse um bando de cobaias desses gringos.

A ditadura existente no Brasil só pode ser derrubada pela violência. O Brasil faz parte do plano global de domínio do imperialismo norte-americano e não se pode esperar que uma pretendida e enganosa redemocratização venha a solucionar os problemas do povo. Tal redemocratização é uma fórmula encontrada pelos oportunistas para desviar a atenção do povo e amortecer seu espírito de luta, numa tentativa de frear a revolução. É também impossível lograr qualquer modificação na situação atual através da propalada Frente Ampla do líder fascista Carlos Lacerda, cuja ideia foi apoiada por oportunistas incorrigíveis, ocupando postos na liderança do partido.

Na realidade, a manobra de Lacerda com a Frente Ampla é para encontrar um novo caminho de colaboração com os Estados Unidos e criar uma base para sua ascensão ao poder.

A via eleitoral não tem sentido no Brasil. Que as eleições são mais do que uma farsa, prova-o o sucedido em outubro do ano passado, quando o Presidente da República e os governadores dos Estados foram eleitos em pleitos indiretos, ou melhor, quando foram nomeados descaradamente pela ditadura. Pelo caminho do voto, o povo brasileiro jamais conseguirá sua libertação.

A ditadura foi implantada no Brasil, porque a direção comunista e as demais forças que atuavam como vanguarda da luta do povo tiveram ilusões de classe e desenvolveram uma política a reboque da burguesia. A política de apoio à luta pelas reformas de base, levada a cabo através da via pacífica, e sob a direção da burguesia, conduz inevitavelmente à derrota das massas. O que decide é contar com forças armadas do povo para conquistar o poder pela via revolucionária, e não esperar que a burguesia entregue o poder pacificamente ao proletariado. A experiência brasileira é uma lição. No Brasil, a direção comunista confiava nos generais e em um dispositivo militar burguês capaz de reprimir o golpe, o que não aconteceu.

Em consequência das ilusões nos generais e no dispositivo militar da burguesia, não houve nenhuma preparação para a luta armada. Os golpistas venceram sem dar um tiro e sem encontrar qualquer tipo de resistência por parte dos comunistas ou qualquer outra força, sem exceção. Além disso, o trabalho que se fazia com os sindicatos, com a classe operária e povo em geral era um trabalho de cúpula e nunca um trabalho pela base O povo não era alertado para a gravidade do momento, não era chamado a preparar-se, a combater. O que se dizia era que os dirigentes dos sindicatos e dos partidos políticos, especialmente a direção do Partido Trabalhista e de outros partidos burgueses, juntamente com os generais e os oficiais nacionalistas, tudo resolveriam, sobretudo porque o governo estava ao lado do povo. O que há de mais grave, porém, é o desprezo da direção comunista pelo trabalho entre a massa camponesa. Isto só ocorre quando não se reconhece que o camponês é o aliado fundamental do proletariado. A falta da aliança operário-camponesa é a causa principal dos fracassos cíclicos a que os revolucionários brasileiros são conduzidos de 10 em 10 anos, sobretudo a partir da insurreição armada de 1935, até a derrubada de João Goulart e os dias de hoje.

Não se pode organizar a violência das massas para derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo, conquistando o poder para o povo, se não se reconhece que o camponês é o fiel da balança, e se a luta revolucionária não é deslocada para o campo. Deslocar a luta revolucionária para o campo significa que a direção política e revolucionária deve ser trasladada à área rural, e que ali deve ser desencadeada a luta armada, ou seja, a luta de guerrilhas. A área urbana é a área reservada à luta complementar, ao apoio logístico, à ação de retardamento da mobilização das forças reacionárias e repressivas. A ditadura e o imperialismo devem saber que atacar a guerrilha no campo é desguarnecer as cidades rebeladas, onde a ação e a iniciativa revolucionárias crescem com uma audácia cada vez maior. Conservar suas forças de repressão concentradas nas cidades, para impedir a rebelião permanente e imprevisível, é deixar a área rural livre para a expansão da guerrilha. Dividir as forças da reação entre a cidade e o campo, enfraquecerá a repressão tanto numa área como na outra. Assim, o desencadeamento da guerrilha no meio rural é a premissa da vitória do povo, dada a impossibilidade em que se encontrarão a ditadura e o imperialismo e suas forças armadas profissionais e convencionais para deter uma luta não convencional, conduzida com vigor e combatividade pelos revolucionários que se deslocam de armas na mão.

O principal meio com que o povo brasileiro precisa contar para destruir seus inimigos é aprender a atirar. Cada patriota deve saber manejar sua arma de fogo. Sem isso, qualquer ação combativa no Brasil atual está destinada ao fracasso.

A época em que vivemos é a época da organização da guerra justa e necessária contra o imperialismo dos Estados Unidos. Esta guerra deve ser organizada pela base, de baixo para cima. E deve contar com o desenvolvimento de uma grande iniciativa por todos e cada um dos que nela participam. Para que a iniciativa produza resultados é imprescindível que cada qual saiba empregar sua arma com habilidade e eficácia. Organizar a guerrilha, partindo da aprendizagem do tiro e da hábil e decidida organização do fogo, é a tarefa fundamental de cada comunista, é a tarefa fundamental de cada revolucionário, de cada patriota. Por sua vez, a luta de guerrilhas é o cerne da organização da guerra justa e necessária contra o imperialismo norte-americano.  O imperialismo dos Estados Unidos não respeita as fronteiras da América Latina, organiza a invasão armada dos vários países de nosso continente, manda seus assessores militares à toda parte, transforma os governos latino-americanos em seus títeres. Assim, não devemos ficar à espera de que a revolução brasileira não venha a ser reprimida. Estejamos certos de que as forças armadas norte-americanas acompanhadas das demais forças de repressão dos gorilas do hemisfério sul, o farão. É um dever revolucionário, internacionalista proletário, estabelecer desde já a solidariedade entre os povos latino-americanos empenhados na mesma luta de libertação, considerar a revolução latino-americana uma só revolução, e compreender que esta revolução já está começada. Quem iniciou a Revolução Latino-Americana foi a Revolução Cubana. Esta é que é a revolução pioneira. Nosso papel no Brasil é dar continuidade à Revolução Latino-Americana, tal como já fazem os países que desencadearam a luta de guerrilhas.

Todos nós, brasileiros, devemos nos preparar para combater, elaborar nossos planos na base de uma luta prolongada. Preparar quer dizer: acumular reservas, ou seja, armas, roupas, remédios, alimentos, calçados. Devemos estudar nosso terreno, conhecer os que nos acompanham, fortalecer nossa convicção revolucionária e não querer de nosso lado os vacilantes, os insinceros, os aproveitadores. Revolução é sacrifício, é abandono de comodidades.

No período anterior de nossa luta, nosso povo foi muito deseducado pela linha pacífica e pela submissão que se pregou abertamente à ideologia da burguesia. Urge corrigir tudo isso.

Líderes experimentados irão surgindo dentro do país à medida que se for organizando a luta revolucionária, a luta armada, a luta de guerrilhas. É o momento de trabalhar pela base, mais e mais pela base, que é também uma maneira de acabar com o sistema de trabalho de cúpula, que predominou no período anterior. Ninguém deve abandonar uma organização de base que já esteja disposta a lutar, por menor que seja esta organização. O importante não é organizar cúpulas, fazer grandes organizações, criar novos partidos comunistas. Já temos organizações demais. O que não temos é o trabalho miúdo, pela base, o trabalho revolucionário, real, de preparo da guerrilha. E é da guerrilha que sai afinal a verdadeira organização revolucionária de vanguarda. Façamos pequenas tarefas, chamemos os nossos amigos mais dispostos, nossos familiares desejosos de sair da situação de opressão em que vivemos. Tenhamos decisão, mesmo que seja enfrentando a morte. Porque, para viver com dignidade, para conquistar o poder para o povo, para viver em liberdade, construir o socialismo, o progresso, vale mais a disposição de ir até o sacrifício da vida.

Quem melhor pode ajudar a luta do povo brasileiro são os jovens e as mulheres. Nossa luta é para criar o núcleo do Exército de Libertação, partindo da aliança armada de operário e camponeses. Nosso lema é unir as forças revolucionárias, sem nenhum sectarismo. Nosso ponto de partida é desencadear a luta de guerrilhas. Para atingir tão importantes objetivos é necessário o concurso de todos. Daí a razão da obrigatoriedade da participação dos jovens e das mulheres. Na luta revolucionária, não há homem que queira retroceder, quando na vanguarda encontra lutando os jovens e as mulheres. Os jovens estão se incorporando, adestrando-se fisicamente, aperfeiçoando-se na arte de atirar. A mulher brasileira também se junta a essa luta, pois será enfermeira, saberá transportar tudo o que seja necessário, aprenderá a disparar e a pelejar pela igualdade dos direitos políticos e sociais, assegurando sua presença na revolução brasileira, como uma combatente de armas na mão.

O processo revolucionário brasileiro está praticamente iniciado, em que pese a oposição dos oportunistas e reformistas, a exemplo de grupo direitista da Guanabara, que se arvora em direção do Partido e fala em derrota pacífica da ditadura.

Agora, é seguir para a frente. O conteúdo essencial de nossa luta é a emancipação nacional, a expulsão do imperialismo, a derrota da ditadura pela violência das massas, a conquista do poder pelo povo, a conquista do progresso e do pleno desenvolvimento econômico e social através do socialismo. Mais do que nunca é preciso destruir o aparelho burocrático militar do Estado e substituí-lo pelo povo armado.

Contamos já, neste momento, com uma estratégia global latino-americana, para nos opormos à estratégia global do imperialismo norte-americano. A Conferência da OLAS, que acabou de realizar-se vitoriosamente em Cuba, território livre da América, apontou o caminho. Façamos com que a luta dos brasileiros corresponda à esperança e à confiança dos povos irmãos da América Latina. E repitamos com a OLAS e a Segunda Declaração de Havana: “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução.”

Fragmentos da versão em áudio da “Mensagem ao Povo Brasileiro através da Rádio Havana” foram utilizados pelo grupo Racionais MC’s na música e videoclipe “Mil faces de um homem leal (Marighella)”, de 2012.   

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