Breve biografia de Karl Marx – Por Friedrich Engels

Texto que publicamos como introdução da nossa edição do Manifesto do Partido Comunista (Editorial Adandé, 130 páginas; 2023), escrito por Friedrich Engels [1820-1895] em junho de 1877, publicado orginalmente em alemão no anuário Volks-Kalender für das Jahr 1878, com tradução a partir da versão do Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética – PCUS.

Karl Marx, o homem que deu pela primeira vez uma base científica ao socialismo, e, portanto, a todo o movimento operário de nossos dias, nasceu em Tréveris, em 1818. Começou estudar ciências jurídicas em Bonn e Berlim, mas logo se entregou exclusivamente ao estudo da história e da filosofia e se preparava para concorrer, em 1842, a uma cátedra de filosofia quando o movimento político ocorrido após a morte de Frederico Guilherme III orientou a sua vida para outro caminho. Os caudilhos da burguesia liberal renana – os Camphausen, Hansemann, etc. – haviam fundado em Colônia, com sua cooperação, a Gazeta Renana (Rheinische Zeitung); e no outono de 1842, Marx, cuja crítica dos debates do parlamento provincial renano tinha produzido enorme sensação, foi colocado à frente do periódico. A Gazeta Renana foi publicada naturalmente, sob censura, que entretanto era impotente diante dela [1]. O jornal deixava para o fim quase sempre os artigos que lhe interessava publicar: começava-se entregando ao censor coisas sem importância para que as vetasse, até que ou cedia por si mesmo ou se via obrigado a ceder sob a ameaça de que o jornal não sairia no dia seguinte. Com dez periódicos com a mesma valentia da Gazeta Renana e cujos editores houvessem gasto alguns centos mais de táleres em custos de composição, teria sido impossível a censura na Alemanha já em 1843. Mas os proprietários dos jornais alemães eram pequeno-burgueses mesquinhos e covardes, e a Gazeta Renana lutava sozinha. Consumia um censor após outro até que, por fim, foi submetida à dupla censura, devendo passar, depois da primeira, por nova e definitiva revisão do Regierungspräsident [2]. Mas isto tampouco bastava e no início de 1843, o governo declarou que não era mais possível suportar este jornal e, sem mais explicações, proibiu-o a partir dessa data.

Marx, que se casara com a irmã de [Ferdinand Otto] von Westphalen, que mais tarde seria ministro da reação, mudou-se para Paris, onde editou com Arnold Ruge os Anais Franco-Alemães [3], nos quais iniciou a série de seus escritos socialistas com a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Depois, em colaboração com Friedrich Engels, publicou A Sagrada Família, ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes, crítica satírica de uma das últimas formas em que se havia extraviado o idealismo filosófico alemão da época.

O estudo da economia política e da história da grande Revolução Francesa deixava ainda tempo a Marx para atacar, de vez em quando, o governo prussiano; este se vingou conseguindo do ministério Guizot, na primavera de 1845 – e parece que o mediador foi o senhor Alexander von Humboldt – que ele fosse expulso da França. Marx transferiu sua residência para Bruxelas onde, em 1847, publicou em língua francesa A Miséria da Filosofia, crítica da Filosofia da Miséria de Proudhon, e, em 1848, seu Discurso sobre o livre-câmbio. Ao mesmo tempo teve oportunidade de fundar em Bruxelas uma associação de operários alemães, com o que entrou no terreno da agitação política. Essa agitação adquiriu ainda maior importância para ele ao ingressar, em 1847, juntamente com seus aliados políticos, na Liga dos Comunistas – associação secreta, que tinha já vários anos de existência. Toda a estrutura dessa organização foi radicalmente transformada; o que havia sido, até então, uma sociedade mais ou menos conspirativa, converteu-se numa simples organização de propaganda comunista – secreta tão somente porque as circunstâncias assim o exigiam – e foi a primeira organização do Partido Social-Democrata alemão. A Liga existia onde quer que existissem associações de operários alemães; em quase todas essas associações, na Inglaterra, na Bélgica, na Franca, na Suíça e em numerosas associações da Alemanha, os membros dirigentes eram filiados à Liga, que tinha uma considerável participação no nascente movimento operário alemão. Além disso, a Liga foi a primeira a ressaltar, pondo-o em prática, o caráter internacional de todo o movimento operário; entre seus membros figuravam ingleses, belgas, húngaros, poloneses, etc., e organizava, principalmente em Londres, reuniões operárias de caráter internacional.

A transformação da Liga teve lugar em dois congressos realizados em 1847, o segundo dos quais aprovou a redação e publicação dos princípios do partido, através de um manifesto que devia ser redigido por Marx e Engels. Assim surgiu o Manifesto Partido Comunista, publicado pela primeira vez em 1848, pouco antes da Revolução de Fevereiro [na França] e que foi depois traduzido a quase todos os idiomas europeus.

A Gazeta Alemã de Bruxelas (Deutscher Brussler Zeitung), em que Marx colaborava e onde eram postas a nu, implacavelmente, as glórias policiais da pátria, levou novamente o governo prussiano a tudo fazer para conseguir a expulsão de Marx, mas em vão. Quando, porém, a Revolução de Fevereiro provocou também em Bruxelas movimentos populares e parecia ser iminente na Bélgica uma mudança radical, o governo belga deteve Marx sem contemplações e o expulsou do país. Entretanto, o governo provisório da França, por mediação de [Ferdinand] Flocon, convidara-o a voltar a Paris, convite que foi aceito.

Em Paris, defrontou-se antes de tudo com o alarde criado entre os alemães ali residentes em torno do plano de organizar os operários alemães da França em legiões armadas para, com elas, introduzir na Alemanha a revolução e a república. De um lado, era a Alemanha que tinha de fazer por si mesma a revolução e, de outro, toda a legião revolucionária estrangeira que se formava na França nascia delatada pelos Lamartines do governo provisório ao governo que se queria derrubar, como ocorreu na Bélgica e em Baden.

Após a Revolução de Março [na Alemanha], Marx mudou-se para Colônia e aí fundou a Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung), que funcionou de 1º de junho de 1848 até 19 de maio de 1849. Foi o único periódico que defendeu, dentro do movimento democrático da época, a posição do proletariado, atitude que já tinha adotado, na verdade, ao abraçar sem reservas o partido dos insurretos parisienses de junho de 1848, o que lhe valeu a deserção de quase todos os acionistas. Em vão, a Gazeta da Cruz (Kreuzzeitung) assinalava a “insolência de Chimborazo” com que a Nova Gazeta Renana atacava tudo o que era sagrado, desde o rei e o regente do Império até os gendarmes, e isto numa fortaleza prussiana, que dispunha então de uma guarnição de 8 mil homens; em vão, clamava o coro de filisteus liberais renanos, novamente convertido em reação; em vão, o estado de sítio decretado em Colônia, no outono de 1848, suspendeu por muito tempo o periódico; em vão, o Ministério da Justiça do Império denunciava, de Frankfurt, ao censor de Colônia artigo após artigo a fim de que se instaurasse processo judicial; o jornal continuava a ser escrito e impresso tranquilamente, às vistas do corpo principal de guarda e sua difusão e sua notoriedade cresciam com a violência dos ataques do governo e da burguesia. Ao verificar-se, em novembro de 1848, o golpe de Estado da Prússia, a Nova Gazeta Renana incitava o povo, em suas primeiras páginas para que se negasse a pagar os impostos e respondesse à violência com a violência. Levado ao tribunal, na primavera de 1849, por esse e por outro artigo, o jornal foi absolvido duas vezes. Finalmente, após o esmagamento das insurreições de maio de 1849, em Dresden e na província do Reno, e ao iniciar-se a campanha prussiana contra a insurreição de Baden-Palatinado, através da concentração e mobilização de grandes contingentes de tropas, o governo julgou-se bastante forte para suprimir pela força a Nova Gazeta Renana. O último número – impresso em vermelho – apareceu em 19 de maio.

Marx transferiu-se novamente para Paris, mas poucas semanas após a manifestação de 13 de junho de 1849, o governo francês colocou-o diante da alternativa de mudar sua residência para Bretanha ou sair da França. Preferiu a última solução e foi para Londres, onde permaneceu desde então ininterruptamente.

A tentativa de continuar publicando a Nova Gazeta Renana em forma de revista (em Hamburgo, em 1850) teve de ser abandonada algum tempo depois, em face da crescente violência da reação. Imediatamente depois do golpe de Estado de dezembro de 1851 na França, Marx publicou O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (Nova York, 1852, segunda edição em Hamburgo, 1869, pouco antes da guerra). Em 1853, escreveu as Revelações sobre o processo dos comunistas em Colônia (obra impressa primeiramente em Basiléia, mais tarde em Boston e reeditada recentemente em Leipzig).

Após a condenação dos membros da Liga dos Comunistas em Colônia, Marx retirou-se da agitação política e se consagrou, de um lado, pelo espaço de dez anos, a estudar a fundo os ricos tesouros encerrados na biblioteca do Museu Britânico em matéria de economia política e, de outro lado, a colaborar no New York Tribune, jornal que, até estourar a guerra norte-americana de secessão, não só publicou as correspondências assinadas por ele, mas também numerosos artigos editoriais sobre temas europeus e asiáticos saídos de sua pena. Seus ataques contra Lord Palmerston, baseados em minuciosos estudos de documentos oficiais ingleses, foram editados em Londres como folhetos de agitação.

Como primeiro fruto de seus longos anos de estudos econômicos apareceu em 1859 a Contribuição à crítica da Economia Política, cujo primeiro caderno se publicou em Berlim. Esta obra contém a primeira exposição sistemática da teoria do valor de Marx, incluindo a teoria do dinheiro. Durante a guerra italiana, Marx, através das colunas de O Povo (Das Volk), jornal alemão que se publicava em Londres [1959], combateu o bonapartismo, que então posava de liberal e libertador das nacionalidades reprimidas, e a política prussiana, da época que, sob o manto da neutralidade, procurava pescar em águas turvas. A esse propósito, foi obrigado a atacar também o senhor Karl Vogt, que fazia então agitação a favor da neutralidade e, mais ainda, denotava grande simpatia pela Alemanha, por incumbência do príncipe Napoleão [Plon-Plon] e a soldo de Luís Napoleão. Como Vogt lançasse contra ele as calúnias mais infames, evidentemente infundadas, Marx respondeu-lhe com o livro Senhor Vogt (Londres, 1860), onde desmascara Vogt e os demais senhores do bando bonapartista de pseudodemocratas, demonstrando com provas de caráter externo e interno que Vogt estava subornado pelo Império de Dezembro. Exatamente dez anos depois disso era confirmado: na lista das pessoas a soldo do bonapartismo, descoberta nas Tulherias em 1870 e publicada pelo governo de Setembro, aparecia na letra “V” a seguinte referência: “Vogt, foram-lhe entregues em agosto de 1859… 40.000 francos”.

Por fim, em 1867 apareceu em Hamburgo o primeiro tomo de O Capital – Crítica da Economia Política, a principal obra de Marx, em que são expostas as bases de suas ideias econômico-socialistas e os aspectos fundamentais de sua crítica da sociedade existente, do modo de produção capitalista e de suas consequências. A segunda edição dessa obra foi publicada em 1872 e o autor dedica-se atualmente à preparação do segundo tomo.

Entretanto, o movimento operário em diversos países da Europa voltara a fortalecer-se em tal medida que Marx pôde pensar em pôr em prática um desejo há muito tempo acalentado: fundar uma associação operária que abrangesse os países mais adiantados da Europa e da América e que devia personificar, por assim dizer, o caráter internacional do movimento socialista, quer perante os próprios operários, quer perante os burgueses e os governos, para animar e fortalecer o proletariado e atemorizar seus inimigos. A oportunidade para expor a ideia, que foi acolhida com entusiasmo, surgiu em um comício popular realizado no Saint Martin’s Hall de Londres, a 28 de setembro de 1864, a favor da Polônia, que voltava a ser esmagada pela Rússia. Fundava-se assim a Associação Internacional dos Trabalhadores [AIT]. Na assembleia foi eleito um Conselho Geral provisório sediado em Londres. A alma desse Conselho Geral, como dos que se seguiram até o Congresso de Haia, foi Marx. Ele redigiu quase todos os documentos lançados pelo Conselho Geral da Internacional, desde o Manifesto Inaugural de 1864, até a mensagem sobre a guerra civil na França em 1871. Pormenorizar a atuação de Marx na Internacional equivaleria a escrever a história dessa mesma associação que, de resto, vive na memória dos operários da Europa.

A queda da Comuna de Paris colocou a Internacional numa situação impossível. Viu-se empurrada para o primeiro plano da história europeia, num momento em que, por toda a parte, estava afastada a possibilidade de uma ação prática bem-sucedida. Os acontecimentos que a elevaram à sétima grande potência impediam-na, ao mesmo tempo, de mobilizar e pôr em ação as suas forças de combate, sob pena de levar a uma derrota infalível o movimento operário e de contê-lo por vários decênios. Além disso, lutavam em toda parte, para se colocarem nas primeiras filas, elementos que tentavam explorar, por razões de vaidade ou de ambição pessoal, a reputação da Associação, que tão subitamente crescera, sem compreenderem a verdadeira situação da Internacional ou se preocuparem com ela. Era necessário adotar uma decisão heroica e foi Marx, como sempre, quem a tomou e assegurou a sua vitória no Congresso de Haia. Numa decisão solene, a Internacional desvinculou-se de qualquer responsabilidade pelas manobras dos bakuninistas, que eram o núcleo daqueles elementos insensatos e pouco honrados; em seguida, diante da impossibilidade de cumprir também, frente a reação geral, as exigências redobradas que lhe eram feitas e de manter de pé sua plena atividade, a não ser através de muitos sacrifícios, que necessariamente iriam sangrar o movimento operário, a Internacional retirou-se provisoriamente de cena, transferindo para a América do Norte o Conselho Geral. Os acontecimentos posteriores vieram comprovar o acerto dessa decisão, tantas vezes criticada na época e mesmo depois. Por um lado, foram cortadas pela raiz, e continuaram a ser cortadas no futuro, as possibilidades de organizar em nome da Internacional inúteis intentonas e, por outro lado, as constantes e estreitas relações entre os partidos operários socialistas dos diferentes países demonstravam que a consciência da identidade de interesses e da solidariedade do proletariado de todos os países, despertada pela Internacional, chega a impor-se mesmo sem o enlace de uma entidade internacional formal que, no momento, se convertera em um entrave.

Depois do Congresso de Haia, Marx voltou a encontrar, por fim, tempo e sossego para reiniciar seus trabalhos teóricos, e é de esperar-se que num espaço de tempo não muito longo possa entregar a publicação o segundo tomo de O Capital.

Entre as numerosas e importantes descobertas com que Marx inscreveu o seu nome na história da ciência, só duas queremos destacar aqui.

A primeira é a revolução que realizou em toda a concepção da história universal. Até aqui, toda concepção da história baseava-se no pressuposto de que as causas últimas de todas as transformações históricas deviam ser procuradas nas transformações que se operam nas ideias dos homens, e de que entre todas as transformações, as mais importantes, as que regiam toda a história, eram as políticas. Não se perguntava de onde vinham aos homens as ideias nem quais as causas motrizes das transformações políticas. Só na escola moderna dos historiadores franceses, e em parte também dos ingleses, se impusera a convicção de que, pelo menos desde a Idade Média, a causa motriz da história europeia era a luta da burguesia em desenvolvimento contra a nobreza feudal pelo poder social e político. Pois bem, Marx demonstrou que toda a história da humanidade, até hoje, é uma história das lutas de classes, que todas as lutas políticas, tão variadas e complexas, giram unicamente em torno do poder social e político de umas e outras classes sociais; por parte das velhas classes, para conservar o poder e, por parte das novas classes, para conquistá-lo. E o que dá origem e existência a essas classes? As condições materiais e tangíveis, em que a sociedade de uma determinada época produz e troca o necessário para o seu sustento. A dominação feudal da Idade Média apoiava-se na economia fechada das pequenas comunidades camponesas, que cobriam por si mesmas quase todas as necessidades, menos a troca, e as quais a nobreza guerreira prestava apoio contra o exterior e dava coesão nacional ou, pelo menos, política. Com o surgimento das cidades e, assim, de uma indústria artesanal e dissociada e um tráfico comercial, primeiro interno e em seguida internacional, desenvolveu-se a burguesia urbana e conquistou, lutando contra a nobreza, ainda na Idade Média, sua incorporação a ordem feudal, como estrato também privilegiado. Mas com a descoberta dos territórios não europeus, a partir de meados do século XV, a burguesia obteve uma zona comercial muito mais extensa e, portanto, um novo estímulo para a sua indústria. A indústria artesanal foi deslocada nos ramos mais importantes pela manufatura de tipo já fabril e esta, por sua vez, pela grande indústria, que haviam tornado possíveis as invenções do século passado, principalmente a máquina a vapor e que, por sua vez, repercutiu sobre o comércio desalojando, nos países atrasados, o antigo trabalho manual e criando, nos mais adiantados, os modernos meios de comunicação, os barcos a vapor, as ferrovias, o telégrafo. Desse modo, ia a burguesia concentrando em suas mãos, cada vez mais, a riqueza e o poder social, embora tardasse bastante a conquistar o poder político, que se achava nas mãos da nobreza e da monarquia, apoiada naquela. Mas ao atingir certa fase – na França, desde a grande Revolução – conquistou também o poder político e se converteu, por sua vez, em classe dominante frente ao proletariado e aos pequenos camponeses. Situando-se nesse ponto de vista – sempre e quando se conheça suficientemente a situação econômica da sociedade em cada época; conhecimentos de que, certamente, carecem por completo nossos historiadores profissionais – são explicados de modo mais simples todos os fenômenos históricos, assim como são explicados com a maior simplicidade todos os conceitos e as ideias de cada período histórico, partindo das condições econômicas de vida e das relações sociais e políticas desse período que, por sua vez, se subordinam àquelas. Pela primeira vez erigia-se a história sobre sua verdadeira base; o fato palpável, mas totalmente despercebido até então, de que o homem precisa em primeiro lugar comer, beber, ter um teto e vestir-se e, portanto, trabalhar antes de poder lutar pelo poder, de fazer política, religião, filosofia, etc.; esse fato palpável passava a ocupar, enfim, o lugar histórico que naturalmente lhe cabia.

Para a ideia socialista, essa nova concepção da história possuía uma importância decisiva. Demonstrava que toda história, até hoje, havia-se desenvolvido sobre a base de antagonismos e lutas de classe, que houve sempre classes dominantes e dominadas, exploradoras e exploradas, e que a grande maioria dos homens esteve sempre condenada a trabalhar muito e a aproveitar pouco. Por quê? Simplesmente porque em todas as fases anteriores do desenvolvimento da humanidade, a produção se encontrava ainda num estado tão incipiente que o desenvolvimento histórico só podia transcorrer nessa forma antagônica e o progresso histórico achava-se, em linhas gerais, nas mãos de uma pequena minoria privilegiada, enquanto a grande massa se encontrava condenada a produzir, trabalhando, o seu mísero sustento e a aumentar cada vez mais a riqueza dos privilegiados. Mas essa mesma concepção da história, que explica de modo tão natural e racional o regime de dominação de classe vigente até nossos dias – que só poderia ser explicado de outro modo através da maldade dos homens – leva também à convicção e que as forças produtivas, tão gigantescamente incrementadas, dos tempos modernos, desaparece, pelo menos nos países mais adiantados, até o último pretexto para a divisão dos homens em dominantes e dominados, exploradores e explorados; de que a grande burguesia dominante já cumpriu sua missão histórica, de que já não é capaz de dirigir a sociedade e se converteu mesmo num obstáculo para o desenvolvimento da produção, como demonstram as crises comerciais, e sobretudo a último grande crise e depressão da indústria em todos os países; de que a direção histórica passou para as mãos do proletariado, uma classe que, por toda a sua situação dentro da sociedade, só pode emancipar-se pondo fim por completo a toda dominação de classe, toda sujeição e exploração; e de que as forças produtivas da sociedade, que crescem até escapar das mãos da burguesia, só estão esperando que o proletariado organizado tome-as sob seu poder para que se crie um estado de coisas que permita a cada membro da sociedade participar não só na produção, mas também na distribuição e na administração das riquezas sociais e que, mediante a direção planificada de toda a produção, incremente de tal modo as forças produtivas da sociedade e seu rendimento, que se assegure a cada qual, em proporções cada vez maiores, a satisfação de todas as suas necessidades razoáveis.

A segunda descoberta importante de Marx consiste em haver esclarecido definitivamente a relação entre capital e trabalho; em outros termos, em haver demonstrado como se opera dentro da sociedade atual, com o modo de produção capitalista, a exploração do operário pelo capitalista. Desde que a economia política assentou a tese de que o trabalho é a fonte de toda a riqueza e todo o valor, era inevitável essa pergunta: como se concilia isso com o fato de que o operário não recebe a soma total do valor criado por seu trabalho, mas tenha que ceder uma parte dele ao capitalista? Tantos os economistas burgueses como os socialistas esforçam-se para dar a essa pergunta uma resposta científica sólida; mas, sempre em vão, até que por fim apareceu Marx com a solução. Essa solução é a seguinte: o atual modo de produção capitalista tem como premissa a existência de duas classes sociais; de um lado, os capitalistas, que se acham na posse dos meios de produção e subsistência e, de outro lado, os proletários que, excluídos dessa posse, tenham apenas uma única mercadoria a vender: sua força de trabalho; mercadoria que, portanto, não tem outro remédio senão vender, para entrar na posse dos meios de subsistência mais indispensáveis. Mas o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário invertido em sua produção e, também, portanto, em sua, reprodução; por conseguinte, o valor da força de trabalho de um homem durante um dia, mês e ano é determinado pela quantidade de trabalho plasmada na quantidade de meios de vida necessários para o sustento dessa força de trabalho durante um dia, mês, ano. Suponhamos que os meios de subsistência para um dia exijam seis horas de trabalho para a sua produção ou, o que vem dar no mesmo, que o trabalho contido nele represente uma quantidade de trabalho de seis horas; nesse caso, o valor da força de trabalho durante um dia se expressará numa soma de dinheiro na qual se plasme também seis horas de trabalho. Suponhamos, além disso, que o capitalista para quem nosso operário trabalhe e pague essa soma, isto é, o valor integral de sua força de trabalho. Pois bem, se o operário trabalha seis horas do dia para o capitalista, terá reembolsado a ele integralmente o seu desembolso: seis horas de trabalho por seis horas de trabalho. Claro está que desse modo nada restaria para o capitalista; por isso, ele concebe a questão de um modo completamente diferente. Diz ele: não comprei a força de trabalho desse operário por seis horas, mas por um dia completo. Portanto, faz com que o operário trabalhe, segundo as circunstâncias, oito, dez, doze, quatorze ou mais horas de tal sorte que o produto da sétima, da oitava e das horas seguintes é um produto de um trabalho não pago, no momento embolsado pelo capitalista. Por onde se conclui que o operário a serviço do capitalista não se limita a repor o valor de sua força de trabalho, que lhe é pago, mas que, além disso, cria uma mais-valia que, no momento, é apropriada pelo capitalista e que, em seguida, é repartida segundo determinadas leis econômicas entre toda a classe capitalista. Essa mais-valia constitui o fundo básico de onde derivam a renda da terra, o lucro, a acumulação do capital; numa palavra, todas as riquezas consumidas ou acumuladas pelas classes que não trabalham. Comprovou-se, desse modo, que o enriquecimento dos atuais capitalistas consiste na apropriação do trabalho alheio não pago, nem mais nem menos que o dos escravocratas ou dos senhores feudais, que exploravam o trabalho dos servos, e que todas essas formas de exploração só se distinguem pelo modo diverso de apropriar-se do trabalho não pago. E com isso caiu por terra todas essas retóricas hipócritas das classes possuidoras de que, sob a ordem social vigente, reinam o direito e a justiça, a igualdade de direitos e deveres e a harmonia geral de interesses. E a sociedade burguesa atual se desmascarava, não menos do que as que a antecederam, pela sua forma bem montada para a exploração da imensa maioria do povo por uma minoria insignificante e cada vez mais reduzida.

Esses dois importantes fatos servem de base ao socialismo científico. No segundo tomo de O Capital são desenvolvidas essas e outras descobertas científicas não menos importantes relativas ao sistema social capitalista, com o que se revolucionam os aspectos da economia política que não haviam sido abordados ainda no primeiro tomo. O que se deve desejar é que Marx possa logo entregá-los à publicação.


[1] O primeiro censor da Gazeta Renana foi o conselheiro de polícia Dolleschall, o mesmo que em certa ocasião vetara na Kölniche Zeitung (Gazeta de Colônia) um anúncio da tradução da Divina Comédia de Dante [Alighieri], por Philalethes (que mais tarde seria o rei João da Saxônia), com a observação: “Com as coisas divinas não se deve fazer comedias”. [Nota de Engels]

[2] Na Prússia, representante do poder central na província.

[3] Deutsch-Französische Jahrbúcher, revista editada em alemão na França por Karl Marx e pelo radical burguês Arnold Ruge, cujo único número duplo circulou em fevereiro de 1844.

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