A Concepção da Guerrilha Urbana – Fração do Exército Vermelho (RAF)  

Primeira parte do documento Das Konzept Stadtguerrilla, publicado em abril de 1971 pela Rote Armee Fraktion (RAF).

“Devemos traçar uma linha divisória bem clara entre nós e o inimigo.”

Mao Tsé-tung

“Ser atacado pelo inimigo não é uma coisa ruim, mas sim uma coisa boa. […] Sustento que é ruim, no que nos diz respeito, se uma pessoa, um partido político, um exército ou uma escola não é atacado pelo inimigo, pois nesse caso isso definitivamente significaria que nos afundamos ao nível do inimigo. É bom se nós somos atacados pelo inimigo, na medida em que isso prova que traçamos uma linha de demarcação entre o inimigo e nós. É ainda melhor se o inimigo nos atacar furiosamente e nos pintar como os maus e sem nenhuma virtude; isto demonstra que não só traçamos uma linha de demarcação bem clara entre o inimigo e nós, ainda que alcançamos um grande êxito em nosso trabalho.”

Mao Tsé-tung, 26 de maio de 1939.

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1. RESPOSTAS CONCRETAS PARA QUESTÕES CONCRETAS

“Insisto em sustentar que, a menos que se tenha investigado, não se deve pretender o direito de opinar.”

Mao[1]

Alguns camaradas possuem um julgamento pronto sobre nós. Para eles é uma “demagogia da imprensa burguesa” relacionar este “grupo anarquista” ao movimento socialista em geral. Na medida em que a utilizam de forma falsa e acusatória, essa concepção do anarquismo não difere daquela da imprensa de Springer[2]. Não queremos debater com ninguém em um nível tão baixo.

No entanto, numerosos camaradas desejam saber o que pensamos sobre a questão. Nossa carta de maio de 1970 ao 883[3] era demasiadamente genérica. A gravação de Michèle Ray[4], cujos trechos foram publicados na Der Spiegel, não era autêntica de forma alguma e procedia apenas de conversas privadas. Ela queria escrever um artigo independente utilizando a gravação como fonte. Ela nos enganou ou nós a superestimamos. Se nossa prática fosse tão precipitada quanto algumas das formulações ali, já teríamos sido parados. A Der Spiegel pagou mil dólares a Michèle Ray por isso.

É evidente que quase tudo que os jornais escrevem sobre nós – e a forma como escrevem – não passa de mentira. Os planos de sequestro de Willy Brandt que nos atribuem têm como objetivo nos apresentar como imbecis políticos; a comparação que fazem entre nós e aqueles que sequestraram uma criança pretende nos equiparar a criminosos sem escrúpulos na escolha dos métodos. Chegam ao ponto de mencionar “detalhes de fonte segura” na konkret [nº 5, maio de 1971], detalhes insignificantes misturados de forma grosseira para cumprir este objetivo. Que entre nós haveria “oficiais e soldados”; alguns de nós seriamos “escravos”, outros teriam sido liquidados; aqueles que nos abandonaram nos temeriam, que nós, de armas em punho, teríamos invadido apartamentos ou roubado passaportes; exerceríamos um “terrorismo de grupo”: tudo isto não passa de ficção.

Quem imagina uma organização ilegal de resistência armada segundo o modelo dos Freikorps e da Corte Sagrada[5] defende o próprio pogrom. Adorno e Horkheimer, em A Personalidade Autoritária, e Wilhelm Reich, em Psicologia de Massas do Fascismo, mostraram a conexão entre o fascismo e os mecanismos psicológicos que produzem tais projeções. O caráter revolucionário coercitivo é uma contradictio in adjecto – uma contradição que não funciona. Uma prática política revolucionária nas relações de dominação vigentes – ou mesmo em todos os casos – pressupõe a integração permanente do caráter individual e da motivação política, ou seja, a identidade política. A crítica e a autocrítica marxistas têm pouco a ver com a “autolibertação”, e muito a ver com a disciplina revolucionária. Aqueles que “só queriam fazer manchetes” não eram certamente de qualquer organização de esquerda, que fariam isso de forma anônima, mas a própria konkret, cujo editor-chefe está promovendo sua imagem como uma espécie de Eduard Zimmermann[6] em uma versão de esquerda, produzindo um conteúdo masturbatório para seu nicho de mercado estudantil e contracultural.

 Muitos companheiros também tem espalhado mentiras sobre nós. Se congratulam afirmando que teríamos vivido em suas casas, que teriam organizado nossas viagens ao Oriente Médio[7], que estariam informados sobre nossos contatos e locais, que teriam feito coisas por nós, quando não fizeram nada. Alguns apenas querem demonstrar que estão “por dentro”. Foi isso mesmo que possibilitou a detenção de Günther Voigt, que havia se gabado para o jornalista suíço Dürrenmatt de ser um dos libertadores de Baader e teve que se arrepender quando os policiais chegaram. Desmentir algo, ainda que expresse a verdade, não é tão fácil assim. Alguns querem demonstrar com essas mentiras que somos estúpidos, idealistas e irresponsáveis ou que estamos loucos, para assim colocar as pessoas contra nós. Na realidade essa gente é irrelevante para nós. São apenas consumidores. Não queremos qualquer relação com esses charlatães tagarelas, para os quais a luta anti-imperialista não passa de uma conversa de café. Existem muitas pessoas que não falam, mas que compreendem a resistência, que estão suficientemente revoltadas e arruinadas para nos desejar sorte, que nos apoiam porque sabem que se ajustar e se adaptar por toda a vida não vale, existem muitos. 

O apartamento na Knesebeckstrasse 89, onde Mahler foi preso, não foi descoberto por negligência de nossa parte, mas por uma traição. O informante era um de nós. Por outro lado, não há garantia para quem faz o que fazemos; não há garantia contra traidores. Não existe garantia que contra o fato de que camaradas podem ser liquidados pela polícia, que alguém não possa resistir ao terror que o sistema utiliza contra aqueles que realmente estão o combatendo. Os porcos não teriam o poder se não tivessem as ferramentas.

Apenas nossa existência tem colocado sobre algumas pessoas uma pressão insuportável para se justificarem. Para evitar a discussão política conosco e a comparação de suas práticas com as nossas, distorcem até mesmo os menores detalhes. Por exemplo, ainda circula o rumor de que Baader só deveria cumprir mais três, nove ou doze meses de condenação quando foi libertado[8], embora o período correto de sua condenação seja fácil de determinar: três anos por incêndio criminoso nas lojas de departamento de Frankfurt, outros seis meses de liberdade condicional e aproximadamente seis meses por falsificação de documentos, com o julgamento ainda em aberto. Desses 48 meses, Andreas Baader cumpriu 14 em diferentes prisões de Hesse – nove transferências por mal comportamento, como organização de motins e resistência. Reduzir os 34 meses restantes para apenas três, nove ou doze meses é um cálculo que tem como objetivo anular a justificava moral da ação de libertação de 14 de maio. É assim que alguns camaradas tentam racionalizar seu medo das consequências pessoais que uma discussão política conosco poderia ter.

A pergunta que nos fazem frequentemente, se teríamos realizado a ação de libertação de Baader mesmo sabendo que o bibliotecário George Linke seria baleado, só pode ser respondida negativamente. A questão do que “haveríamos feito se…” é, no entanto, ambígua – pacifista, platônica, moralista e indefinida politicamente. Quem pensa seriamente na libertação dos prisioneiros não pergunta sobre isso, mas encontra a resposta por si mesmo. Com estas perguntas, as pessoas querem saber se somos as bestas que a imprensa de Springer pinta, como num interrogatório nas aulas de catecismo. É uma tentativa de banalizar a questão da violência revolucionária, colocando a violência revolucionária e a moralidade burguesa no mesmo campo, o que não leva a lugar algum. Considerando todas as possibilidades e circunstâncias do plano de fuga, não havia razão para acreditar que um civil poderia intervir. Ficou claro para nós que os policiais não teriam qualquer tipo de misericórdia. A ideia de realizar um resgate de prisioneiro desarmado é suicida.

Em 14 de maio os policiais atiraram primeiro, assim como em Frankfurt, quando dois de nós fugimos, pois não deveríamos deixar que nos prendessem. Os policiais sempre disparavam para matar. Algumas vezes nem mesmo atirávamos e, quando fizemos, não disparamos para matar. Em Berlim, em Nuremberg, em Frankfurt[9]. Isso é facilmente verificável porque é a verdade. Nós não “usamos armas de fogo de forma imprudente”. O policial que se encontra na contradição entre si mesmo como um “pequeno homem” e um servo do capitalismo, como um empregado mal pago e um funcionário do capital monopolista, não é obrigado a seguir ordens. Apenas devolvemos os disparos quando somos alvejados. Também vamos poupar o policial que nos deixar escapar.

É correto quando se afirma que o imenso aparato mobilizado para nos capturar coloca também toda a esquerda socialista na República Federal [da Alemanha] e em Berlim Ocidental em sua mira. A pequena quantidade de dinheiro que dizem termos roubado, os poucos roubos de carros e documentos pelos quais estão nos investigando ou a tentativa de homicídio que estão tentando nos atribuir, não justificam todo o circo armado. O medo penetrou à pele das classes dominantes, que acreditava ter o controle do Estado e sobre todos os habitantes, classes e contradições em todos os ínfimos aspectos: reduziu os intelectuais em suas revistas, trancou a esquerda em seus círculos, desarmou o marxismo-leninismo, desmoralizou o internacionalismo. Ainda assim, por mais vulnerável que pareça agora, a estrutura de poder não é tão facilmente abalada. Não devemos cair no erro de subestimarmos esses melindrosos por todo esse barulho midiático que estão fazendo.

Afirmamos que organizar grupos de resistência armada na República Federal [da Alemanha] e em Berlim Ocidental neste momento é algo correto, possível e justificável. Que fazer a guerrilha urbana aqui e agora é correto e se justifica. Que a luta armada como “a forma mais elevada do marxismo-leninismo” (Mao) pode e deve começar agora, que sem ela não pode haver luta anti-imperialista nas metrópoles.

Não estamos dizendo que organizar grupos clandestinos de resistência armada pode substituir as organizações proletárias legais ou que ações individuais podem substituir as lutas de classes, nem que a luta armada pode substituir o trabalho político nas fábricas e nos bairros. Apenas afirmamos que o progresso e o sucesso de uma coisa depende da outra. Não somos blanquistas ou anarquistas, embora consideremos Blanqui[10] um grande revolucionário e não desprezemos o heroísmo individual de muitos anarquistas.

Nossa atividade prática nem sequer completou um ano. O tempo ainda é muito curto para extrair conclusões. No entanto, a grande publicidade feita pelos os senhores Genscher, Zimmermann e cia. nos oferece a oportunidade de realizar uma propaganda das nossas posições. Como disse Lenin, “se quer saber como pensam os comunistas, olhe para suas mãos e não para suas bocas”.


[1] Citação do presidente Mao Tsé-tung em Prefácio a Investigação no Campo, de 17 de março de 1941.

[2] Refere-se ao empresário Axel Springer e sua corporação editorial de mesmo nome, fundada na Alemanha em 1946 e responsável pela publicação do jornal sensacionalista, anticomunista e conservador Bild.   

[3] O Agit 883 56 51 foi um jornal anarquista e anti-imperialista publicado em Berlim Ocidental entre 1969 e 1972.

[4] Michèle Ray-Gravas, jornalista independente francesa que entrevistou membros da RAF logo após a fuga de Andreas Baader, vendendo depois a entrevista para a revista liberal Der Spiegel. Entre 1966 e 1967 fez coberturas especiais da “Guerra do Vietnã” e da morte do comandante Che Guevara na Bolívia, em 1971 foi sequestrada pela organização anarquista OPR-33 enquanto cobria as eleições uruguaias e seu marido, o cineasta Costa-Gravas, preparava o longa-metragem “Estado de Sítio”.   

[5] Os Freikorps foram grupos paramilitares formados após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial que atuaram durante a República de Weimar. Sob às ordens do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) os Freikorps prenderam e assassinaram Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 15 de janeiro de 1919, esmagando também a República Soviética da Baviera. Mais tarde, os Freikorps formariam a base das milícias e tropas de assalto nazistas. A Liga da Corte Sagrada, Vehmgericht (Feme ou Sainte-Vehme) foi o tribunal medieval na região da Vestfália que realizava julgamentos secretos e executava supostos criminosos, pendurando os corpos em árvores após os assassinatos.        

[6] Editor-chefe do programa XYZ da ZDF (televisão pública alemã), um programa policial que tinha como objetivo converter a população da Alemanha Ocidental (RFA) em colaboradora dos organismos de repressão e delatar, inclusive, membros da RAF. 

[7] Refere-se a viagem ao campo de treinamento do Al-Fatah, em Amã, capital da Jordânia, onde a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) ofereceu treinamento militar para militantes da RAF entre 8 e 21 de junho de 1970. 

[8] Ação armada de libertação de Andreas Baader realizada em 14 de maio de 1970 no Instituto de Estudos Sociais de Berlim Ocidental em que participaram Gudrun Ensslin, Ingrid Schubert, Irene Goergens, Peter Homann e Thorwald Proll, aos quais se somaria Ulrike Meinhof.

[9] Se refere aos enfrentamentos com a polícia alemã dos militantes da RAF, Horst Mahler em Berlim, Heinrich Jansen em Nuremberg, Thorwald Proll e Manfred Grashof em Frankfurt. 

[10] Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), foi um teórico e revolucionário republicano socialista francês que fundou o blanquismo, defendendo a organização secreta e conspirativa dos revolucionários para a tomada do poder através da luta armada e a instauração do comunismo. Participou ativamente da Revolução de Julho de 1830 e da Revolução de 1848 na França, foi condenado à morte três vezes e passou 37 anos da sua vida na prisão. Integrou a “Sociedade das Estações” e fundou a “Sociedade Republicana Central”, segundo Marx, Blanqui foi “o cérebro e a inspiração do partido proletário na França”.

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