Documento publicado como Capítulo IV das “Teses de Jamil – O Caminho da Vanguarda”, escrito por Jamil Rodrigues (Ladislau Dowbor) e datado de outubro de 1969, publicado na versão final em 1970 pela Vanguarda Popular Revolucionária – VPR. Com fontes do Arquivo Nacional (SIAN) e BNM.
Ao abrirmos aqui uma discussão mais ampla, temos consciência da dificuldade do debate, e da quantidade de pontos a serem reformulados. Cremos, no entanto, que não há meio de fugir a certas reformulações gerais sempre adiadas. Nesta reformulação entram os conceitos de “proletariado”, de “exército de reserva”, de “lumpemproletariado”, bem como novas estratégias que Marx não focalizou.
Nenhum destes termos pode per analisado isoladamente. Tentaremos partir de uma visão global, passando em seguida às implicações em diversos níveis.
O que queremos demonstrar, em poucas palavras, é que o proletariado não pode mais ser considerado como única classe com objetivos revolucionários. Não se pode considerar o resto da população como “exército de reserva”. A contradição fundamental do capitalismo, contradição entre o caráter social da produção e o caráter privado da propriedade dos bens de produção, ao tornar-se tais agudo, cria uma situação revolucionária. Esta situação revolucionária atinge hoje no Brasil a imensa maioria da população, em todas as camadas, opostas ao único inimigo, o imperialismo. A agudização da contradição fundamental no capitalismo se manifesta no fato de que cada vez novas camadas perdem interesse em colaborar com ele, e é criminoso não aproveitá-las todas na revolução, na medida mesmo em que a revolução brasileira só pode ser socialista. Qualificar hoje a nossa revolução de “proletária”, como se uma revolução proletária fosse mais radical que uma revolução anti-imperialista é crer no poder radicalizante das palavras. Explicar o apoio dos cubanos à revolução atribuindo esse apoio maciço a um “engano” do povo que não sabia se tratar de uma revolução socialista, já não pode nos satisfazer, se é que satisfaz algum marxista. Se a quase totalidade da população encontrou seus interesses individuais em uma revolução indissoluvelmente socialista, é que o socialismo era uma necessidade objetiva da quase totalidade da população. A importância do proletariado nacional reforça sem dúvida o nosso movimento revolucionário, mas proletarizar as palavras de ordem, manifestação do radicalismo pequeno-burguês, é a pior ajuda que poderíamos dar à própria classe operária, que deverá necessariamente agir dentro de uma frente.
A – O PESO DECRESCENTE DO PROLETARIADO
Toda análise de classe marxista deve partir da análise do nível e ritmo de desenvolvimento das forças produtivas. Mas o fio da meada que nos guia através da História, e explica por exemplo a existência da comuna inicial; o aparecimento do escravo é explicado pelo progresso das forças produtivas, pois se o homem não produzisse mais do que consumia, o escravo não teria aparecido. Este mesmo desenvolvimento das forças produtivas se acelera à medida em que o acúmulo inicial cresce e permite as especializações e investimentos.
Na mesma perspectiva, ao refazer o trabalho de Marx para a sua época, Lenin analisa o desenvolvimento das forças produtivas. Constata o aceleramento prodigioso da produção capitalista, e a consequente modificação da composição orgânica do capital. A composição orgânica do capital mudando leva, por sua vez, por um lado a gigantescos investimentos que somente podem ser efetuados por monopólios e complexos industriais (concentração econômica), e por outro lado a problemas de mercado que provocam a luta internacional para o domínio colonial. Assim, partindo da análise do nível das forças produtivas, Lenin delineava as características fundamentais de um novo estágio dentro do capitalismo, definindo o conceito de “imperialismo”, pedra angular da análise da época em que vivia. O mesmo caminho temos de seguir, sob pena de fazer um marxismo de burocratas e dogmáticos.
Ao analisarmos o nível de desenvolvimento das forças produtivas hoje, em 1969, percebe-se que o desenvolvimento industrial atingiu nível técnico fantástico, nesta constante substituição do homem pela máquina. A consequência deste processo é a modificação da composição orgânica do capital; hoje o capital constante incorporado num produto é de longe mais importante que o custo da mão-de-obra. A automação levou à utilização de maquinário caríssimo, que exige pouca mão-de-obra. Este fenômeno é um dado necessário ao capitalismo, pois o capitalismo não pode progredir sem “revolucionar as técnicas”. E revolucionar as técnicas significa sempre economizar mão-de-obra, numa tendência geral à automação.
Deixaremos aqui de lado as consequências deste processo, corretamente analisadas nos documentos oficiais da organização, quanto ao desenvolvimento da economia pelos trustes, únicos particulares a disporem de suficientes capitais e técnica, e quanto ao problema de mercado qualitativamente novo que o capitalismo enfrenta nos países subdesenvolvidos.
Interessam-nos aqui as consequências que incidem sobre o desenvolvimento da classe operária e que são as seguintes: 1) a parte do salário na composição do custo de um produto tende a se tornar menos importante; 2) o desenvolvimento da produção não provoca mais um aumento importante da mão-de-obra industrial.
Para fundamentar estes dois fatos, implícitos nas análises econômicas de Marx e de Lenin, pois são as consequências inerentes do desenvolvimento capitalista, basta-nos recorrer à experiência cotidiana das grandes empresas.
1 – Até há poucos anos atrás no conjunto da indústria, e até hoje nos setores atrasados como na indústria têxtil, a parte dos “salários” representa o item de maior importância nos custos de produção. A parte do capital constante, isto é, despesa com maquinário e matéria-prima, representava um item secundário. Assim, a forma mais importante da concorrência entre os capitalistas a se manifestar era a redução dos salários, o que reduzia imediatamente os custos e dava uma posição de luta melhor ao patrão. Hoje, nos setores mais avançados da indústria, a redução dos salários não mais representa uma redução importante nos custos do produto. Vemos para este fato uma série de razões:
a) A primeira razão é a redução do componente “salário” no custo de um produto. A tendência não é de hoje, por ser uma tendência essencial do capitalismo; em 1876, por exemplo, o gasto em salários por 1.000 cigarros produzidos era, nos EUA, de 96,4 cents. Em 1881, com a máquina de Bonsack este custo passa a 2 cents por 1.000 cigarros. É evidente que o cigarro também baixou de custo, mas mantém-se uma redução da proporção do capital variável (composição valor) no produto. A consequência importante para nós é a seguinte: quando o salário representa, por exemplo, numa indústria de fiação, 90% do custo do produto, baixar o salário em 10% significa reduzir os custos em 9%. Mas, se a parte do salário representa apenas 10%, uma redução idêntica de salários (diretamente ou por inflação) acarreta uma redução de 1% do preço de custo do produto, o que não modifica sensivelmente a sua competitividade. A título indicativo, podemos citar o setor automobilístico onde o salário representa cerca de 17% do custo, no ano de 1969.
b) A segunda razão é que a eficácia hoje depende cada vez mais da qualidade do trabalho, e não de sua quantidade: a redução do salário, gerando descontentamento, provoca acidentes de trabalho e descuidos cujos custos superam o custo de um aumento salarial. A quebra do ritmo de produção e as sabotagens inconscientes geram custos incomparavelmente mais importantes do que qualquer aumento. Por outro lado, a importância de ter operários qualificados e estáveis, acostumados a trabalhar com uma máquina específica, se evidencia cada dia melhor nas grandes empresas modernas que preferem pagar melhor um empregado que tenha estas qualidades do que ganhar alguns centavos sobre o seu salário. Donde o caminho atualmente seguido por estas firmas de assegurarem uma posição relativamente privilegiada ao operário. Não abordaremos aqui o problema do subconsumo, que foi até um determinante na modificação dos salários nos países desenvolvidos, pois não tem a mesma relevância num país pobre. Lembremos que aqui não analisamos a conjuntura da indústria, mas a tendência geral que deverá dominar o que hoje predomina apenas no setor industrial moderno. Devemos lembrar também que parte da miséria que vemos hoje no setor tradicional da indústria provém da política do governo imperialista que está decidido a eliminá-la.
2 – Este caminho se torna possível pelo segundo fato que queremos fundamentar, de que as empresas não precisam absorver mão-de-obra proporcionalmente ao desenvolvimento da produção. Não voltaremos aqui sobre a constatação estatística do fato. Os números citados por Celso Furtado, os levantamentos do Censo Industrial publicados no Anuário Estatístico de 1964, etc., são por demais eloquentes; por cada unidade do produto que sai, há menos pedido de mão-de-obra.
Vejamos bem esse ponto, que se reveste de importância crucial para nós: significa que hoje o imperialismo no Brasil cria mais miséria ao excluir faixas inteiras da população ativa da vida econômica, do que através de exploração de mais-valia propriamente dita.
Ao falar de revolução proletária, ao conclamar todos os proletários a se unirem, Marx via o levante da imensa maioria do povo contra a minoria cada vez mais restrita da classe dos capitalistas. Com efeito, Marx escreve durante uma fase de rápido desenvolvimento das forças produtivas, com o capitalismo proletarizando o povo, por um lado, o campesinato é gradualmente expulso do campo para aumentar e baratear a mão-de-obra disponível no mercado industrial. O exemplo examinado pelo próprio Marx é o movimento das “enclosures” na Inglaterra, com o camponês expulso das terras à medida em que estas eram transformadas em pastagens. O monstro em pleno crescimento devorava tudo o que aparecesse, inclusive mulheres e crianças. Por outro lado, com a gradual concentração de empresas exigida pelo desenvolvimento das forças produtivas, sumiam os “pequenos negócios”, os artesãos e as empresas mais débeis; a classe média se proletarizava.
A tendência era a da constituição de um povo proletário (“toda humanidade trabalhadora”, diria mais tarde Lenin), frente a uma minoria de capitalistas, numa polarização dialética que terminava com a negação de um dos termos. Podemos dizer hoje no Brasil, que o apelo ao proletário, conceito esse entendido como proletário industrial, engloba a “imensa maioria”?
Sabemos perfeitamente que a classe propriamente imperialista, no Brasil, tende a se restringir cada vez mais pelo próprio mecanismo de concentração econômica inerente ao desenvolvimento do capitalismo. O proletariado industrial, por seu lado, torna-se cada vez mais uma minoria em relação ao conjunto da população. Lançar o programa de uma ditadura do proletariado (não nos referimos às conotações históricas do termo) significava, para Marx, conclamar o povo a tomar o poder contra uma minoria insignificante. O que significa lançar o mesmo grito hoje no Brasil? Dogmaticamente presos a conceitos que recobrem uma realidade profundamente diferente, chamamos uma minoria a lutar contra outra minoria, esquecendo a imensa maioria do povo que vive no desespero, e cuja participação no processo revolucionário é cada dia mais entendida como indispensável. No Brasil, o capitalismo não cava sua própria cova por constituir um proletariado, mas por impedir a sua constituição. À medida em que o peso relativo do proletariado se reduz, representando hoje pouco mais de 3% e amanhã menos ainda, cresce a importância das massas economicamente marginalizadas.
Não se trata aqui tampouco de “inovação”. Marx previu e desenvolveu o problema, criando o conceito de “superpopulação relativa”. Se adotamos outro conceito é que não se trata, como nas análises de Marx, de proletários expulsos de seus postos do trabalho pela tecnologia, e sim de uma massa que nunca teve ou terá acesso à contradição proletária, mesmo se é ela que sofre o seu impacto com a máxima violência.
B – O PESO CRESCENTE DAS MASSAS ECONOMICAMENTE MARGINALIZADAS
Referimo-nos à imensa faixa da população em desemprego, ou subemprego, em pequenas ou micro propriedades agrícolas improdutivas, ou empregos de biscate, enfim, a toda população que o capitalismo monopolista exclui do processo econômico, e que somente poderá encontrar o seu lugar neste processo suprimindo o sistema. O capitalismo, ao transformar-se põe em movimento forças que não pode controlar. Deve obedecer ao próprio movimento criado. Nunca poderá voltar ao tempo de montagem manual para empregar a imensa maioria. O grande erro do PCB foi o de esperar que o capitalismo desenvolvesse no Brasil uma poderosa classe operária, quando o mínimo rigor na aplicação do instrumento marxista demonstra que os mesmos mecanismos que impediram a constituição de uma burguesia nacional deviam repercutir também sobre a constituição da classe operária. Esse desenvolvimento descontrolado de forças leva o capitalismo à seguinte transformação qualitativa: grande motor de mobilização da população ativa durante a fase de seu desenvolvimento e do início da fase imperialista, o capitalismo hoje entrou em fase de recesso no que toca à mão-de-obra, projetando camadas importantes da população no subemprego e no desemprego nos países capitalistas (que, no entanto, tem uma série de armas para enfrentar o problema) e mantendo a maioria da população ativa fora do processo econômico nos países subdesenvolvidos.
Na medida em que o capitalismo não pode inverter o processo do seu desenvolvimento, podemos dizer que as camadas marginalizadas são objetivamente revolucionárias. O critério de marginalização econômica que define para nós uma classe revolucionária deve ser acrescentado aos critérios de exploração pela mais-valia. O proletariado é definido como classe pela sua forma de participação na produção. As massas marginalizadas não são um elemento “extra”, mas um elemento necessário do desenvolvimento imperialista atual, e como tal participam como classe dos efeitos do sistema.
Deixamos provisoriamente de lado algumas implicações teóricas evidentes às quais voltaremos, constatando apenas desde já que os conceitos de “lumpemproletariado” e de “exército de reserva” não podem mais ser utilizados no mesmo sentido, por serem reanalisados. Queremos aqui fixar a importância da população englobada pele conceito de “marginalização econômica”.
Sofrem de marginalização econômica todos os desempregados latino-americanos: na última reunião sobre problemas latino-americanos que levou os especialistas burgueses a Madri, Felipe Herrera, presidente do Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso, gente que em geral peca por otimismo, apresentou, segundo relato no “Le Monde Diplomatique” de maio de 1969, estatísticas extremamente alarmantes que acabam de ser confirmadas pelo último relatório da ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio). Todos os especialistas latino-americanos insistem no crescimento do desemprego. O exército dos desempregados atinge atualmente 18 milhões de homens e mulheres, mais de um quarto da população ativa do subcontinente latino-americano.
O critério de marginalização econômica permite-nos também explicar em grande parte o caráter revolucionário de movimentos como o estudantil, vagamente justificados pelo “acesso à ciência marxista”. Ora, todo liberal tem acesso à ciência marxista, sem por isso se interessar por ela. Porque é que a classe (no sentido profissional) estudantil aproveita esse acesso e o transforma em força política? O imperialismo somente se interessa pelo que contribui em seus lucros; não lhe interessa o psicólogo, mas o técnico capaz de estudar as motivações de compra. Não lhe interessa o sociólogo, apenas o pesquisador de mercado. Não lhe interessa o advogado, pois precisa de poucos e sem escrúpulos. Não precisa de jornalistas, pois a UPI (United Press International) faz o trabalho para o mundo inteiro; bastando-lhes moleques de recados para colher dados locais, logo se transformados em um corpo reduzido de redatores. Precisam, é claro, de médicos; mas de duas classes distintas. Os seus, que serão poucos, bons, ricos e simpáticos. Os outros serão sustentados por verbas e trabalharão em condições revoltantes. Não precisam de urbanistas, mas de “artistas” que saibam construir palacetes particulares e monumentos oficiais glorificando a espécie. Para as casas do povo basta o modelo padrão utilizado pelo BNH de norte ao sul do país.
O país necessita cada dia mais de soluções globais aos seus problemas, e para este trabalho o universitário é indispensável. No entanto, só há emprego para as exigências imperialistas. O sociólogo não pode deixar de ver que o país precisa dos seus serviços, mas não encontra emprego e vive de biscates. Quantos universitários trabalham fora das profissões para as quais se formaram? Vemos no Jornal do Brasil (19.09.69), que: “Só no Rio, esclareceu o Dr. Alexandre Cataglini, representante do sindicato dos médicos, há cerca de 5 mil médicos exercendo outras atividades devido à saturação do mercado de trabalho, que tende a agravar-se com a criação de novas faculdades”.
A camada menos atingida pela concentração econômica é, por enquanto, a comercial, na medida em que o progresso técnico neste ramo não acompanhou o desenvolvimento industrial (as indústrias enfrentam mais diretamente a concorrência mundial que o comércio). No entanto, vemos um exército de vendedores espremendo as últimas gotas do poder aquisitivo popular, quer com laranjas, quer com chaveiros ou qualquer outra bugiganga. O fato é que, apesar de tudo, o setor comercial absorve uma multidão em comparação com a indústria, na medida em que as técnicas modernas ainda não foram introduzidas. Em compensação, a exploração desta camada é das mais violentas, seu trabalho dos mais cansativos e bestificantes, pelo próprio fato de que o comércio se apresenta como tábua de salvação a todos os emigrantes rurais que não encontram trabalho nas cidades e a tantos jovens que chegam ao mercado de trabalho ano após ano.
Na medida em que o comércio se moderniza – e isto também é uma tendência necessária do imperialismo – novas camadas serão projetadas deste semi-desemprego para o desemprego total. A situação atual dos feirantes e dos ambulantes é característica.[1]
Esta marginalização econômica atinge com violência máxima a mulher na cidade; as prostitutas não são no Brasil a camada com função específica descrita por Marx e Engels no Manifesto. Trata-se de um genocídio no qual morrem após poucos anos de prostituição, em geral de doenças contagiosas controláveis, dezenas de milhares de mulheres e adolescentes, geralmente aterrorizadas demais pela polícia para sequer procurarem um médico. E o que dizer desta outra forma de subemprego que é a “empregada doméstica”, geralmente prostituída pela parte masculina da casa burguesa, sem direito a vida própria que não o namoro de portão, despedida se se permitir ter um filho.[2]
Esta falta de perspectiva na cidade deve ser vista no pano de fundo rural, onde a transformação de imensas zonas de plantio em pastagens (política agropecuária do governo) em todo o centro Brasil, expulsa a mão-de-obra, pouco necessária na criação. A solução imperialista, através da modernização e mecanização de fazendas escolhidas, não resolverá em nada a situação do campesinato brasileiro que é hoje um nômade em seu país, passando de região em região, segundo a safra, ou se mantendo num isolamento total de autoconsumo miserável. Não é à toa que a cidade se torna um escoadouro de massas desesperadas. Voltaremos mais além à situação do campo.
Mas do fato dele ser indispensável para libertar as forças produtivas, não podemos pular ao fato de que ele as libertará, fazendo a revolução. Senão deveríamos concluir que os países africanos, como a Guiné Portuguesa, nem Cuba, onde existia uma minoria operária nas cidades, poderiam fazer a revolução[3]. Ao dizer que a burguesia, abrindo a sua cova, criava também os seus coveiros, Marx e Engels explicavam corretamente uma situação histórica que era a deles, quando o conjunto da população era efetivamente levado à proletarização. Assim, a missão histórica e a missão estratégica do proletariado cresciam paralelamente. A primeira mantém-se hoje idêntica, pois decorre da essência do capitalismo. A segunda, no entanto, sofreu indiscutivelmente uma profunda modificação. Desta distinção tiraremos as conclusões.
1 – O que se apresenta de imediato, é que não se trata de rever o papel ideológico do proletariado na revolução. O capitalismo funcionou como funcionará até à extinção da luta de classes segundo as leis descritas em “O Capital”, e o proletariado como classe que toma o lugar da burguesia no leme econômico do país mantém o seu papel.
Com a mesma evidência aparece a impossibilidade do proletariado se proclamar dono da revolução, pois não tem a força de fazê-la. E somente com as outras classes é que poderá tomar o poder, sendo que desempenha o papel fundamental de fornecer o cimento ideológico em torno do qual o conjunto da população encontrará a sua unidade revolucionária, ao lutar por ideais socialistas.
Somos um movimento no qual participa a vanguarda proletária como força, e no qual domina exclusivamente a ideologia proletária. Na medida em que nos inspiramos de ideais proletários para lutar por um programa socialista, e na medida em que não somos um instrumento de luta do proletariado, podemos dizer que somos vanguarda proletária, mas não vanguarda do proletariado. E na medida em que lutam por ideais proletários, não somente o proletariado, mas a imensa maioria da população, diversas camadas, e por razões diferentes, sem sentirem a contradição proletária, e sem verem a luta de classes em termos proletários, pelo simples fato de não ocuparem a posição do proletariado no modo de produção capitalista, diremos que somos uma vanguarda socialista.
2 – A segunda consequência desta distinção é que, se os ideais socialistas constituem um objetivo efetivo para a imensa maioria do povo, as palavras de ordem ligadas à própria luta proletária somente têm sentido para a minoria que representa o proletariado. As outras classes podem compreender a ideologia proletária (o socialismo), mas não podem adquirir a sua consciência de classe. Aprofundaremos um pouco mais o problema, pois deverá guiar a nossa propaganda; quando um panfleto é dirigido às massas em geral, é errado mostrar o nosso radicalismo com termos objetivamente compreensíveis apenas pelo proletariado.
As camadas objetivamente revolucionárias compreendem, hoje no Brasil, uma população incomparavelmente maior do que as camadas presas na contradição proletário-burguês. Na época de Marx, havia uma coincidência que deixou de existir: na medida em que todo o povo é proletarizado (“o movimento operário é o movimento espontâneo da imensa maioria”, diz o Manifesto), o proletariado é efetivamente a “única classe realmente revolucionária”. Hoje existem camadas revolucionárias, que lutam por objetivos socialistas, sem entender as razões da luta específica do proletariado.
Assim devemos distinguir as palavras de ordem que se prendem ao ideal socialista por um lado (direito ao emprego, direito à educação, liberdade política e social, etc.), e por outro lado, as palavras de ordem cuja finalidade é fazer progredir a consciência de classe proletária. Não adianta agitar a palavra “proletário” diante dos milhões de marginalizados, porque eles nunca estiveram dentro da contradição proletária. Gritar “Abaixo a burguesia!” fora dos bairros operários não tem sentido a não ser como chavão, e não poderá, em todo caso, constituir uma palavra de ordem compreensível. Não se dá consciência de classe proletária a quem não é proletário. Queremos unificar um movimento revolucionário nacional em torno da ideologia do proletariado – o socialismo – que cedo ou tarde deveremos levar à imensa maioria, e não em torno da luta proletária e dos problemas específicos relativos à sua estratégia.
Um exemplo talvez deixe mais claro o que queremos exprimir: as massas lutam efetivamente contra o imperialismo, único inimigo existente e devem para libertar-se e atingir os seus interesses de classe, derrubar o mesmo inimigo contra o qual o proletariado luta, mas a única classe capaz de entender esta burguesia imperialista como burguesa (caráter de classe) é o proletariado, que é a classe chamada a substituí-la. Entende-se o caráter de classe da burguesia adquirindo consciência de classe. O proletariado, na sua luta pelo produto do seu trabalho, adquire com relativa facilidade esta consciência. Mas não é o caso das massas marginalizadas mais pobres ou mais ricas. Tentar levá-las a compreender a situação de classe do proletariado é um erro profundo. É preciso, isto sim, mostrar-lhes que os seus próprios interesses exigem o socialismo. A volta constante aos termos “proletariado”, “luta de classes” e “ditadura do proletariado”, denota somente um resquício de transposição da situação histórica em que o proletariado era a “única força revolucionária” (é a situação russa), e quando em consequência as palavras de ordem táticas destinadas a desenvolver a consciência de classe proletária atingiam todos os revolucionários objetivos e eram as únicas realmente revolucionárias.
Nosso objetivo é implantar o socialismo e não fazer com que todos sintam proletários. O proletário luta pelo socialismo por sua situação de classe específica. Mas não é necessário ser proletário para se ter interesse no socialismo. O erro do PCB foi o de sempre julgar que, por Marx ter deduzido o advento do socialismo da existência do proletário, deve-se esperar o povo ser transformado em proletário para que queira o socialismo. De tanto lutar para desenvolver o movimento operário, esquecem que o nosso objetivo é o socialismo, e não o movimento operário em si.
C – O PAPEL ESTRATÉGICO
É evidente que não queremos imaginar aqui um proletariado que inexiste como força revolucionária. Tentamos, isto sim, analisar a modificação de sua posição estratégica face à existência da marginalização econômica criada pelo imperialismo moderno. Podemos dizer que os argumentos que levaram os marxistas a atribuir força revolucionária ao proletariado podem ser resumidos nos cinco pontos seguintes:
1. Seu peso numérico: a classe proletária representa a quase totalidade da população.
2. Sua miséria: se bem que a qualificação de “proletário” obedeça ao critério de posição no processo de produção e não do nível de vida, a concorrência levava o proletariado a se tornar a camada mais miserável da população. O proletário não tem nada a perder senão as suas cadeias.
3. Na medida em que se proletariza a classe média, as forças políticas do país se polarizavam entre o proletariado, por um lado, e a classe capitalista, por outro, sem classes intermediárias. O proletariado, ao mesmo tempo em que se reforça, vê o seu inimigo definido com mais clareza e adquire consciência de classe.
4. Sua facilidade de organização: o capitalismo, ao destruir a pequena produção, concentra os operários em grandes fábricas. Coloca assim as armas na mão do proletariado, pois a fábrica permite o contato e a organização das massas e a construção da sua força.
5. Sua posição estratégica: o proletariado tem nas suas mãos a “máquina do dinheiro” da burguesia, e sua luta pela paralisação das fábricas, por exemplo, atinge a burguesia no seu ponto mais vulnerável. É a posição estratégica do proletariado dentro do processo econômico do imperialismo.
Esses argumentos devem ser reexaminados:
1. O primeiro é certo ainda nos países capitalistas, se nos ativemos estritamente ao conceito de “proletarização” (o que não significa por si só aumento ou redução de nível de vida); no sentido do assalariado. Neste sentido, a evolução da estrutura de classes nos mostra que os assalariados passaram, nos EUA, de 62% da população ativa em 1880 a 73,9% em 1920 e a 84,2% em 1960. Na Alemanha, a mesma evolução mostra 57% em 1882, 68,8% em 1925 e 80,6% em 1967. Na França representam em 1967 cerca de 75% da população ativa (dados de Ernest Mandel, em Tratado de Economia Marxista, pág. 208). Apesar de serem números que concernem aos assalariados em geral (o número dos operários industriais, na França, em 1968, atingia 38%, da população ativa). A desproporção com o peso numérico do proletariado brasileiro, que é de 8,6% da população ativa, é evidente.
A evolução do emprego industrial no Brasil não acompanha mais a evolução da população urbana. Os números do “programa estratégico de desenvolvimento” (1968/70) do Ministério do Planejamento são bem significativos: “Enquanto a população economicamente ativa crescia a uma taxa de 2,85% ao ano entre 1949 e 1959, o emprego industrial o fazia a 2,95%, isto é, apenas superando a oferta de mão-de-obra, fato compensado parcialmente no período 1959/64, quando ambos cresceram respectivamente a 3,1% e 3,8% ao ano, o que resultou na limitada participação do emprego industrial na população economicamente ativa de 8,26%.” Note-se que “população ativa” não é população empregada, nas sim capaz de trabalhar.
Em números absolutos, os resultados são os seguintes: a) população economicamente ativa total: 1949 – 16 milhões; 1959 – 22 milhões; 1964 – 25 milhões (podemos calcular hoje cerca de 30 milhões); b) emprego industrial total: 1949 – 1,5 milhões; 1959 – 1,75 milhões; 1964 – 2,1 milhões (note-se que o aumento de 1,75 milhões para 2,1 milhões, em 1964, é devido em grande parte à inclusão, nos cálculos, do emprego estimado para empresas de menos de 5 pessoas ocupadas, que não era incluído em 1959); c) a percentagem do emprego industrial na população ativa total representa: 1949 – 7,86%; 1959 – 7,96%; 1964 – 8,26%.
Se consideramos que o último número se acha parcialmente inflado pelo acréscimo de emprego “industrial” ou indústria de menos de 5 empregados, veremos que a proporção é quase estável, sem aumento sensível.
Tudo isso deve ser aprovado com um grão de sal, pois as estatísticas são fracas, no Brasil. Mas o progresso delas deve levar a um melhor cadastramento de empregos, refletindo-se como aumento de empregados. A fonte dos números acima, utilizada pelo Ministério do Planejamento, é do Registro Industrial. Os números do IBGE revelam uma participação industrial mais elevada, mas declinante: seria de 9,8% da população ativa, em 1959, e de 9,1% em 1960. O próprio Ministério surpreende-se com este imprevisível declínio da participação da mão-de-obra industrial na população ativa (pág. 80). Com sua sabedoria ministerial, o documento conclui que uma predominância do desenvolvimento desse emprego “pareceria mais adequada”. Deve-se acrescentar que, como o fenômeno se deve ao desenvolvimento das forças produtivas, manifesta-se como modo de produção imperialista, pode ser observado nos outros países da América Latina.
Assim a percentagem do emprego industrial no total da população ativa evolui nos outros países da seguinte maneira: Chile – 1925 (21%), Argentina – 1925 (20%); Chile – 1950 (19%), Argentina – 1950 (23%); Chile – 1960 (17%), Argentina – 1960 (21%). Esta reviravolta mostra que o fenômeno não é devido a um atraso do imperialismo e sim ao próprio modo de industrialização do imperialismo. Isto foi confirmado e bem analisado por A. Barros de Castro: “o que há de novo na situação vista em perspectiva é, antes de mais nada, o fato de que até recentemente, as condições do mercado de trabalho tendiam a se deteriorar, na medida em que a economia entrasse em crise. Ora, daqui por diante é o próprio avanço que tende a agravar o problema (…), o movimento no sentido da modernização implica em regra, no entanto, na substituição do trabalho por capital. E de trabalho não qualificado por qualificado.” (Op. cit; pág. 159)
Citarmos ainda o Peru, com a porcentagem de trabalho industrial evoluindo de 18% em 1925 para 16% em 1960; bem como a Colômbia, que apresenta respectivamente as porcentagens de 17%, 14% e 15% para as mesmas datas.
Finalmente devamos lembrar que, quando o Ministério do Planejamento diz que a população economicamente ativa cresceu em ritmo anual de 2,85%, e o emprego industrial em ritmo de 2,95%, “apenas superando a oferta de mão-de-obra”, estão adoçando a pílula: em termos absolutos isto significa um aumento de cerca de 1 milhão de pessoas no lado do mercado de trabalho, enquanto a indústria abre apenas 3% de 2 milhões, isto é, 60 mil empregos anuais, deixando perspectivas de trabalho a apenas 6% da mão-de-obra que aflui ao mercado de trabalho anualmente.
A necessidade de mobilizar camadas mais amplas, aparece então como vital. Lembremos aqui que se é o proletariado russo, sem dúvida alguma, foi quem dirigiu politicamente a revolução, nunca teria derrubado efetivamente o regime e feito a revolução sem a utilização do campesinato revoltado pela guerra.
2. O proletário que não tem nada a perder senão suas cadeias, tende a se tornar mais raro. Queremos dizer que o proletário vive bem? Nosso papel não é proclamar a miséria, a fim de satisfazer nossa consciência revolucionária, mas ver objetivamente as tendências que se manifestam:
a) o operário é objetivamente mais explorado na medida em que o capitalista está aumentando a mais-valia relativa: o progresso das forças produtivas reduz sensivelmente o tempo de trabalho em que o operário trabalha para as suas necessidades (tempo necessário) e torna relativamente maior a parte do produto de que se apropria o capitalista. Nesse sentido, podemos dizer que o operário é cada vez mais explorado. No entanto, esta realidade somente se torna aparente à luz da análise marxista. Subjetivamente, o operário se guia por dois fatos: a variação de seu salário no tempo (se está aumentado ou baixando) e a evidência da miséria maior que a dele, em outras palavras. Nesta perspectiva, vemos que, se conjunturalmente o seu salário pode estar sendo reduzido em setores retardatários da economia brasileira, mas pela evolução estrutural do imperialismo devemos prever que o fenômeno já descrito por Lenin, da corrupção de amplas camadas do proletariado, deverá se manifestar com grande força aqui. Paralelamente à corrupção, aparece como fator negativo o desenvolvimento das camadas desempregadas e mais miseráveis que o próprio proletariado, e que indiscutivelmente enfraquece a sua disposição para a luta.
Por outro lato, a apreciação do fato deve ser feita diferenciando os setores da indústria. A tendência mais importante de marginalização econômica e transformação do proletariado em classe reduzida e relativamente privilegiada, que quisemos evidenciar neste documento, pressupõe que o modo de produção imperialista no país seguirá o caminho das grandes firmas internacionais (Volkswagen, por exemplo) e que implica em concentração econômica e grande progresso da mecanização. Como tal descrevemos uma tendência, pois é indiscutível que a maioria das firmas no Brasil (especialmente no setor alimentar e no setor têxtil) ainda não se viu afetada por este processo, utilizando uma mão-de-obra numerosa e miserável, na medida mesmo em que quer competir com a eficiência maior da concorrência que aqui se instala.
Assim devemos distinguir na realidade que se apresenta o que é conjuntural e o que representa a tendência do sistema no qual deveremos lutar amanhã: vemos então que a economia tende a passar às mãos de grandes corporações, que trabalham para enfrentar o nível de competição internacional. Nesta conjuntura crescem as dificuldades econômicas de todas as fábricas que não estão aparelhadas, conforme evidencia o número assustador de falências de 1964 para cá. Para enfrentar estas dificuldades, estas firmas reduzem efetivamente os seus salários, projetando uma maioria de proletariado numa profunda miséria. Mas esta miséria é fruto de uma reestruturação da produção industrial no país, e a nova estrutura que surge nos deixa prever menos operários e mais desempregados, por um lado, e o operariado empregado mais privilegiado.
Um exemplo deixará isto mais claro: a nova indústria petroquímica que o governo lançou com tanto alarde representa um gigantesco investimento de fontes mistas, e deverá criar “milhares” de empregos, segundo a propaganda dos gorilas. Se voltarmos um século na história lembraremos que 100 empregos na Inglaterra representavam 100 mil desempregados na Índia. É um pouco do processo que devemos esperar aqui, diante da inundação do mercado por produtos têxteis de baixo custo e que utilizem na sua produção reduzidíssima mão-de-obra; o que acontecerá a centenas de milhares de empregados no setor têxtil algodoeiro, desde a tecelagem até o plantio e a colheita? O capitalismo não pode viver sem revolucionar se forças produtivas.
Devemos salientar que o setor tradicional que emprega ainda o grosso de mão-de-obra industrial se vê numa crise acelerada, no que concerne à utilização da mão-de-obra, já que à mecanização se superpõe o declínio mundial do setor tradicional.
Assim, o setor tradicional empregava no Brasil, em 1919, 80% da mão-de-obra industrial, passando a 67% em 1949, e 49% em 1966. Na França o INSEE informava em junho de 1969 (Economie et Statistique) que o emprego operário no setor têxtil declinou, entre 1954 e 1962, em 15,2%. No setor de confecções, declinou 19,3%, no setor de couros e peles, declinou em 27% (Le Monde, 25/09/1969).
3. A polarização dialética prevista por Marx se realizou: “Nossa época, escreviam Marx e Engels, (…) distingue-se pela simplificação dos antagonismos de classe. A sociedade inteira se divide em dois vastos campos inimigos, em duas classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”. Esta polarização deu-se no início do século, mas o proletário não venceu a batalha. A história cria as condições objetivas da revolução, mas não faz a revolução. Na medida em que a capitalismo superou esta fase sem ser derrotado, evoluiu para novos modos de produção.
Marx previu na sua época, a proletarização da pequena-burguesia, fenômeno que completava a simplificação da estrutura de classes: “as pequenas classes médias de antigamente, artesãos e camponeses, caem no proletariado, por um lado, porque os seus fracos capitais não lhes permitem empregar os processos da grande indústria e sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas; e por outro lado, porque sua habilidade técnica perde valor pelos novos métodos de produção. Assim o proletariado é recrutado em todas as classes da população. Este processo de eliminação gradual da pequena-burguesia, isto é, dos proprietários de parcelas de bens de produção economicamente não viáveis, continua até hoje. Na conjuntura atual no Brasil, podemos dizer até que o processo se acelerou prodigiosamente, sendo que a regra não é mais a sua “proletarização”, mas a sua marginalização econômica.
Paralelamente, no entanto, devemos ver o aparecimento de uma nova classe média destinada a servir de lastro à burguesia, que é a classe média dos assalariados superiores (técnicos, pessoal qualificado, pessoal de escritórios, engenheiros, e, cada vez mais, operadores especializados de máquinas determinadas, bem como todo o pessoal que encaminha indiretamente o produto do proletário através da rede de comercialização, publicidade, etc., no chamado setor terciário), os também chamados “colarinhos brancos”. Se bem que seja necessário distinguir aqui duas camadas perfeitamente distintas: há “empregados” não operários, cujos salários variam em torno de 350 novos e que representam uma camada de violência explosiva. Os registros de salários mostram, acima desta camada, um vácuo, pulando diretamente para um tipo de empregado de um novo nível, que ganha em torno de 800 novos (são esses os “quadros” do imperialismo).
Eficientes puxa-sacos de pastinha e gravata, longe de sofrerem com a miséria do país, são admiradores do “sucesso” e da “técnica” americanas e representam a única classe pró-imperialista que numericamente tem algum peso no país. Veremos, ao analisar o problema do “aliado tático”, a importância de ganhar indivíduos desta camada, pois ocupam postos vitais no sistema imperialista. Mas não é isto que nos interessa aqui. Interessa-nos ver que entre a burguesia e o proletariado não há mais campo vazio pronto para se tornar campo de batalha, mas uma escadinha suficientemente branda para que muito operário prefira tentar resolver os seus problemas individualmente do que como classe. Não podemos mais raciocinar em função de “dois campos inimigos”, duas classes diametralmente opostas.
4. Os itens 4 e 5 são itens que indiscutivelmente evoluíram favoravelmente para o proletariado. Não insistiremos nestes pontos, já que não concerne a uma análise de “massas propriamente dita”. Com relação ao item 4 consideramos que:
a) O contato e a organização dentro das fábricas permitem a transformação do operário em força. Temos que considerar, no momento, que o inimigo já está tomando providências quanto a esse aspecto, e que há “militarização” dentro das fábricas, o que tende a tornar esse trabalho mais difícil.
b) As grandes empresas já conhecem a luta de classes e na medida em que podem se permitir meios de comunicação próprios, constrói usinas longe das cidades, do apoio popular, em descampados que parecem mais quartéis do que as tradicionais empresas de bairro.
c) Tem importância crescente a utilização dos “meios de comunicação” aos quais Marx e Engels já davam tanta importância, pois permitiam um alastramento contagioso dos movimentos operários. Hoje, a informação sobre outros países já tem efeito mobilizador sobre as massas, especialmente através da televisão (ver os efeitos do Maio parisiense e o efeito cumulativo das manifestações contra a visita de Rockfeller). A “liberdade burguesa” na imprensa, permitindo às massas assistir a luta de operários, estudantes, etc., em toda América Latina, torna-se de primeira importância entre as reivindicações táticas.
5. O fato de o operário ter entre as mãos os bens de produção se transforma hoje na sua fonte principal de força, em consequência da própria evolução das forças produtivas. Essa evolução se traduz numa socialização da produção e especialização tão avançadas que a paralisação de um setor paralisa a máquina capitalista por inteiro. Paralelamente, conforme vimos, a substituição do operário se torna difícil na medida em que se transforma em elite qualificada. O operário adquire assim uma posição de força: vimos, por exemplo, nos EUA, a greve de cerca de 300 mecânicos de aviação paralisar todo um setor do país. O imperialismo no estágio atual trabalha de forma tão integrada que a paralisação de uma parte forma um gargalo de estrangulamento que afeta o conjunto da indústria. Esta tendência deverá tornar-se mais e mais marcante com a evolução das forças produtivas e deve levar-nos a prever uma crescente militarização da indústria e abolição definitiva, nos países imperialistas, do direito de greve (quanto mais nos países subdesenvolvidos se desenvolve uma indústria crescente, mas integradíssima). Este fato que transforma cada dia mais a greve em ato político mais do que econômico, deve ser analisado e aprofundado. É evidente que a greve não afeta mais apenas o patrão dos grevistas, mas o conjunto da burguesia, com efeitos tão devastadores que logo a burguesia não poderá mais permiti-las.
Paralelamente, devemos lembrar que a mesma evolução que confere ao operariado esta força, reduz o seu peso numérico no país, e transforma gradualmente o movimento puramente operário em “putschismo”. As sugestões de que nos dirigimos ao campo somente por questões estratégicas (militares) – é “bom para formar o exército” –, denotam falta de análise de classes.
D – O PAPEL DAS MASSAS ECONOMICAMENTE MARGINALIZADAS: O SEU PESO EXPLOSIVO
Consideramos errada a aplicação para estas camadas dos conceitos de “lumpemproletariado” e “exército de reserva”, etiquetas com que os marxistas tem resolvido comodamente o problema teórico que a nova realidade apresenta. O “exército de reserva” existe nos EUA e em outros países imperialistas; no entanto, não atinge mais de 5% da população ativa e constitui efetivamente um elemento conjuntural utilizado como arma da classe dominante, instrumento de luta da burguesia para conter a pressão do proletariado. No Brasil, não é um elemento conjuntural, mas estrutural, fruto necessário do desenvolvimento imperialista. Continua é claro a desempenhar o papel de arma da burguesia. Mas este papel cada dia mais desaparece diante do imenso potencial político que esse exército representa, a ponto da burguesia tudo fazer para ocupá-lo, de medo que ele se torne exército do proletariado.
Da mesma forma, ninguém pode negar a existência no Brasil desta “podridão” inerte das camadas mais baixas – o lumpemproletariado – só quem viu Recife sabe que ela constitui a maioria esmagadora da população. Diziam Marx e Engels que “suas condições de vida o levam a se vender, favorecendo manobras reacionárias”. Nunca os nossos reacionários poderão comprar essas massas, pois não se trata de nenhum fenômeno marginal e sim um fenômeno mundial da miséria do Terceiro Mundo. Por outro lado, não tem as características ideológicas de que os nossos marxistas se acostumaram a chamar de “lumpemproletariado”, os favelados (quantos milhões nas cidades entre favelas, subúrbios e pensões), longe de formarem uma camada de indivíduos desmoralizados, são na maioria gente do interior, à procura de uma solução milagrosa para a sua miséria, que traz consigo toda a submissão, é verdade, mas também toda a firmeza moral do camponês. E a sua submissão vem mais do fato de se sentir forasteiro numa cidade que não é a sua do que da sua “podridão moral”. Já vimos que este marginalizado não encontra solução dentro do imperialismo. O imperialismo nas cidades não tem mais a lhe oferecer senão alguns empregos temporários para o chefe de família e a prostituição para as filhas. É conhecidíssimo o fenômeno de aglomeração de tios, primos, cunhados, etc., em torno de um membro da família que trabalha. No Recife é comum mulheres de operários “trabalharem” na prostituição enquanto os maridos trabalham e vizinhas cuidam dos filhos. O que o imperialismo lhes oferece no campo? O progresso imperialista no campo se dá através da mecanização e da transformação de zonas de agricultura de subsistência em gigantescas fazendas de criação de gado. Senão vejamos:
– No Nordeste, a política do imperialismo, por um mecanismo necessário para enfrentar o mercado mundial cada vez mais estreito no setor primário, visa a racionalização da produção de cana e algodão através da concentração e da eliminação dos mais fracos e “antieconômicos”. O que só pode levar a uma melhor utilização do terreno, para os produtos de exportação e a expulsão da “mão-de-obra” improdutiva. O imperialismo é coerente, precisa de eficácia.
– Nas grandes propriedades que se dedicam à agricultura de alimentação (que absorve muita mão-de-obra), o imperialismo procura criar grandes unidades modelo, bem aparelhadas e mecanizadas, contribuindo para eliminar os tão improdutivos “minifúndios”. O exame da política do crédito agrícola do Banco do Brasil e dos bancos particulares não deixa dúvida a respeito: os créditos são concentrados em poucas e grandes unidades, já bem desenvolvidas, sempre latifúndios, numa imitação aproximada das gigantescas e eficientes fazendas norte-americanas. O camponês sabe o que esperar daí: três meses de trabalho de safra e nove meses de nomadismo desempregado.
– Todo o Mato Grosso menos o norte, a totalidade do estado do Goiás, a quase totalidade de Minas Gerais e a maior parte do Estado de São Paulo criam gado para satisfazer à demanda da Wilson, Armour, Swift e outros. O processo é o mesmo: numa extensão de dois mil quilômetros, o camponês só tem o direito de tirar uma ou duas safras, pagando por este privilégio com a obrigação de queimar e desmatar a propriedade, deixá-la limpa e plantada com capim-colonião, após ter tirado a sua safra, abandonando a propriedade à pecuária que exige uma mão-de-obra mínima. Esta expulsão do camponês de todo o centro do Brasil se evidencia no fato de que a densidade de população é maior na beira das matas amazônicas (onde a queimada é possível) do que em todo o centro do país.
Não é pela sua política agrícola que o imperialismo encontrará uma solução para esta massa marginalizada. A outra solução é evidentemente a da realização de grandes obras de infraestrutura rural que exigem muita mão-de-obra, pouco investimento e pouca qualificação: estradas, canais de irrigação, saneamento e drenagem, habitações populares, seguindo o exemplo tão eficaz da China. No entanto, esta política não pode existir em um país capitalista, se não há uma entrada de divisas correspondente ao montante de salários distribuídos para estas obras. Caso contrário, como estas obras não se traduzem num aumento de bens de consumo disponíveis para o mercado em futuro próximo, o desequilíbrio entre o poder aquisitivo e a quantidade de bens disponíveis se traduz numa inflação descontrolada. A inflação, por sua vez, dificulta a integração do país no sistema imperialista, desorganiza a economia e leva inevitavelmente as camadas assalariadas a lutar pela recuperação dos salários reais, abalando o fundamento da política imperialista no país. Por outro lado, a entrada de divisas é limitada, pois o imperialismo não pode sustentar o desenvolvimento do mundo subdesenvolvido (imaginando-se que o quisesse).
Sem esperanças no campo, sem esperanças na cidade, para onde ela aflui perigosamente, esta massa é objetivamente anti-imperialista, se bem que não sofra a exploração capitalista de forma direta, e não conheça fisicamente o seu inimigo. É objetivamente anti-imperialista na medida em as forças da repressão são o seu inimigo pessoal mais bem identificado, repercute profundamente entre eles o nosso combate e a luta da vanguarda pode se transformar para eles num símbolo de esperança. Mas não é a classe que entra diretamente em choque com a burguesia pela posse da mais-valia, e não é a classe que domina o setor vital da economia; não é a classe destinada a libertar o homem economicamente desenvolvendo a indústria. É tão impotente sem a ideologia proletária, como o proletariado é impotente sem a sua força. E devemos lembrar que o problema de frente que caracteriza indiscutivelmente o nosso movimento revolucionário, coloca-se não somente para fazer a revolução, mas para construir o socialismo, pois o proletariado não poderá se desenvolver numericamente; numa fase inicial as reformas principais se darão no sentido de utilização de toda mão-de-obra atualmente marginalizadas para desenvolver a infraestrutura no campo, utilizando camadas urbanas sem função nas cidades para o enquadramento e organização das obras para o desenvolvimento da agricultura alimentar.
[1] “No setor de serviços, a criação de oportunidades que acompanham o processo de urbanização da vida social, chocar-se-ia com o impacto negativo derivado do avanço tecnológico de ramos até o presente marcado por formas tradicionais de operação. A introdução de novos métodos de administração e controle, a difusão das formas modernas de comercialização nos centros urbanos de média expressão, subúrbios das grandes cidades, etc., são movimentos em pleno ascenso que deverão elevar-se nos próximos anos.” (Antônio Barros de Castro, em Sete Ensaios sobre Economia Brasileira, Editora Forense, pág. 159)
[2] O mesmo Barros de Castro comenta que “a população economicamente ativa deve estar passando por um período de aceleração de seu ritmo de crescimento, não apenas pela aceleração demográfica (…), mas sobretudo pela crescente integração da mulher no mercado de trabalho. A taxa de atividade feminina no Brasil em 11,5%, era inferior à metade da média mundial, de 27% (ONU, 1960, Demographic Aspects of Manpower).
[3] Veremos em outra análise que, por não ter indústria, estes países não deixam de ter proletariado, pois têm burguesia, que é o imperialismo internacional, com seus eventuais representantes locais; e a sua população – excluindo-se as camadas que servem ao imperialismo, e com ele tem interesses convergentes – é “proletária”, pois é explorada por essa burguesia internacional ou então “jogada na rua”, por ser desnecessária, para empregar a expressão de Marx. Em outras palavras, o trabalhador subdesenvolvido, mesmo quando não trabalha num indústria local, entra na definição de Marx de proletariado – “assalariado que produz o capital e o faz frutificar” – pois é exatamente o que o subdesenvolvido faz, mesmo se se trata de produzir o capital para uma burguesia internacional.
Panfleto do Comando Juarez Guimarães de Brito da VPR distribuído na comunidade de Brás de Pina, na zona norte do Rio de Janeiro, após a VPR expropriar um depósito de gêneros alimentícios para distribuição na favela carioca em janeiro de 1970. (Fonte: Arquivo BNM)