Apresentação do livro Minimanual do Guerrilheiro Urbano e textos da ALN

Em mensagem enviada às embaixadas norte-americanas no Rio de Janeiro e em Brasília em outubro de 1968, logo após o justiçamento do capitão do exército norte-americano e agente da CIA, Charles Rodney Chandler, que treinava torturadores para a ditadura militar fascista no Brasil, por um comando conjunto da organização que viria a ser batizada como Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o governo dos EUA, que já estava em alerta devido a explosão de uma bomba no Consulado Geral americano em São Paulo em março daquele ano, oferecia uma recompensa de 5 mil dólares por informações que levassem à captura de Carlos Marighella e “seu bando”, algo em torno de 20 mil cruzeiros novos na época, que hoje em valor corrigido, equivaleria a cerca de 185 mil reais. Em 1973, a recompensa pelo Comandante Clemente, Carlos Eugênio da Paz, o último comandante militar da ALN, era de 1 milhão de dólares. A captura e morte de Clemente era questão de honra para o regime fâmulo do imperialismo, não conseguiu. Retirado do país pela organização, Carlos Eugênio da Paz, sairia pela Argentina, passaria por Cuba, União Soviética e Tchecoslováquia, até exilar-se na França. Anistiado em 1982, Clemente sobreviveu, retornou ao país e se tornou um dos principais narradores da experiência revolucionária da ALN através de livros e depoimentos, até a sua morte em 29 de junho de 2019.     

A trajetória política da Ação Libertadora Nacional, principal organização revolucionária armada que enfrentou a ditadura militar brasileira, é apresentada neste livro por seus próprios protagonistas e combatentes, através de documentos, entrevistas, artigos e textos, até então inéditos em sua grande maioria no Brasil.

Do assassinato de Marquito, Marco Antônio Brás de Carvalho, o guerrilheiro operário, em 28 de janeiro de 1969 pela organização paramilitar fascista Comando de Caça aos Comunistas (CCC), primeiro comandante militar de um Grupo Tático Armado (GTA) da organização e metalúrgico que participou da famosa ação de tomada do palanque dos pelegos e expulsou o governador Abreu Sodré do 1º de Maio de 1968 na Praça da Sé, em São Paulo, até o assassinato bárbaro do Comandante Crioulo, Luiz José da Cunha, em 13 de julho de 1973, último dirigente político nacional da ALN, preso em uma emboscada do DOI-CODI, torturado até a morte e enterrado como indigente na Vala de Perus, a Ação Libertadora Nacional experimentou seu auge como organização revolucionária armada e sua completa destruição pelos organismos da repressão, construindo e desenvolvendo uma teoria e estratégia próprias da revolução brasileira e do caminho até o socialismo no país, que chamamos de Pensamento Marighella, e como batizamos esta coleção publicada pelo Editorial Adandé.

Neste segundo livro da coleção, onde apresentamos como texto principal a versão inédita original e recuperada do mítico “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”, estão presentes também todos os principais textos e entrevistas inéditas de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, o Comandante Toledo, além de documentos internos e artigos da Ação Libertadora Nacional, assinados principalmente por sua Coordenação Nacional e publicados em seu órgão central, o jornal “O Guerrilheiro”, cobrindo um período entre 1967, a partir da ruptura da “Ala Marighella” com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), até o ano de 1973, um pouco antes da ALN ser finalmente destroçada no início de 1974 pela repressão sanguinária da ditadura militar, auxiliada pelo imperialismo norte-americano e com o suporte do empresariado brasileiro.

Para o trabalho de pesquisa e recuperação de documentos, jornais e textos utilizamos como fonte principal o arquivo do Projeto Brasil: Nunca Mais, fundamental iniciativa de memória das lutas sociais durante a ditadura no Brasil, mantido pela Arquidiocese de São Paulo, além do Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa, o CEMAP-UNESP, o arquivo do projeto DHnet – Rede Direitos Humanos e Cultura, o ASMOB – Archivio Storico de Movimento Operaio Brasiliano do Instituto Astrojildo Pereira e o CeDInCI – Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas. Parte dos textos inéditos que apresentamos aqui foram publicados no exterior ainda no final dos anos 1960 e início de 1970, com traduções principalmente em francês, espanhol, inglês, italiano e alemão, caso da coletânea de textos Guerriglia urbana in Brasile, publicada na Itália ainda em 1968, do livro Pour la libération du Brésil, antologia política de Carlos Marighella organizada pelo jornalista franco-belga Conrad Detrez, publicado na França em 1969 e que ganhou uma edição inglesa em 1971, Acción libertadora, livro da F. Maspero em espanhol, mas também publicado na França em 1970, mesmo ano em que os textos de Marighella aparecem em alemão com a publicação do Handbook des Stadtguerillero pela Fração do Exército Vermelho (RAF), Teoría y acción revolucionarias, outra coletânea em espanhol do Editorial Diogenes, publicada no México em 1971, a edição Escritos de Marighella. La guerrilla en Brasil, publicada no Chile em 1971 pela Prensa Latinoamericana e o livro Manual do guerrilheiro urbano e outros textos da editora portuguesa Assírio & Alvim, publicado em 1974, além de edições especiais da revista cubana Pensamiento Crítico, da Tricontinental (que publicou também o livro em espanhol “Carlos Marighella”, em 1970, em Cuba), da chilena Punto Final e de Les Temps Modernes, publicação francesa dirigida por Jean Paul Sartre.

O desconhecimento de boa parte dos textos originais de Marighella e da produção teórico-política da ALN no Brasil não é um acaso. O revolucionário baiano, alçado à condição de “inimigo número 1” da ditadura militar-empresarial, e a organização que fundou junto com milhares de combatentes e simpatizantes no Brasil, são referências políticas revolucionárias reconhecidas em todo o mundo, mas que foram mitologizadas ou abjuradas pela esquerda brasileira. Mesmo existindo algumas importantes pesquisas e obras, e que merecerem destaque o livro “Escritos de Carlos Marighella” do Editorial Livramento publicado em 1979, a fundamental biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo” (2012) de Mário Magalhães, o projeto “Rádio Libertadora, a palavra de Carlos Marighella” organizado por Iara Xavier e a pesquisa publicada em livro “Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN” (2018) de Maria Cláudia Badan Ribeiro, além das pouco conhecidas memórias de seus combatentes como os livros “Viagem à luta armada” (1996) e “Nas trilhas ALN” (1997) de Carlos Eugênio da Paz, o pensamento vivo de Carlos Marighella e a estratégia revolucionária e socialista da ALN historicamente nunca interessaram aos setores hegemônicos de uma esquerda que foi dominada e domesticada pelo reformismo, pelo liberalismo, pela conciliação com o inimigo, e finalmente, pelo transformismo, conceito utilizado pelo sardo Antônio Gramsci para descrever a traição de classe. Tomamos, portanto, como tarefa política e editorial refazer o caminho e intencionar a atualidade da contribuição fundamental ao pensamento revolucionário brasileiro que é a produção teórica e a formulação política corporificada pela Ação Libertadora Nacional durante a guerra revolucionária iniciada contra a ditadura dos gorilas serviçais do imperialismo norte-americano.      

A ALN, que se apresenta publicamente com esse nome apenas em janeiro de 1969, quando foi publicado o texto “Sobre problemas e princípios estratégicos”, presente também neste livro, foi fundada ainda como um embrião em um ato simbólico, e simplório devido às condições, em março de 1968, no bairro de Sumaré, na cidade de São Paulo, na casa do ex-deputado socialista Jéthero de Faria Cardoso, e contou com a presença de Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Cícero Silveira Viana, Rafael Martinelli, Osvaldo Lourenço, Farid Helou, João Adolfo Castro, Agonalto Pacheco e Ronaldo Frati. Estima-se que a saída de Marighella e outros dirigentes do PCB teria mobilizado pelo menos 8 mil militantes no país, sendo boa parte destes identificados com a “Ala Marighella” e que dariam origem ao Agrupamento Comunista de São Paulo, de um total de cerca de 40 mil comunistas que formavam o PCB naquela época. Após uma tentativa frustrada de unificação das dissidências através da chamada “Corrente Revolucionária” uma parte optaria por formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) com Mário Alves, Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender à frente, enquanto as dissidências internas também sairiam para dar origem à diversas organizações, como o Partido Operário Comunista (POC) no Rio Grande do Sul (em uma fusão com um setor da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária, a POLOP), o Comando de Libertação Nacional (COLINA), aderindo ao racha da POLOP em Minas Gerais e junto ao antigo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), além do primeiro MR-8, formado a partir da dissidência do Rio de Janeiro e de adesões à VPR em São Paulo, com o partidão perdendo cerca da metade da sua militância, que optou por formas diversas de luta armada, como já havia feito o PCdoB, fundado em 1962, e com a ala do PCB liderada por Luís Carlos Prestes, Giocondo Dias, Dinarco Reis e outros, que consumou um golpe burocrático no VI Congresso do partido em dezembro de 1967, permanecendo em sua defesa do pacifismo diante da ditadura, de um reformismo covarde e da frente ampla a reboque da burguesia.

Após a peregrinação organizacional de Marighella pelo país em 1968, o Agrupamento Comunista de São Paulo se transforma na Ação Libertadora Nacional, que em seu auge, na segunda metade de 1969, e mesmo na pior fase da repressão, estima-se que tivesse alguns milhares de militantes entre seus setores de apoio, simpatizantes e bases nas diversas frentes da organização e centenas de combatentes com formação político-militar, em todas as regiões do país. A forma de atuação clandestina da ALN e a lógica compartimentada não permitem chegar em números exatos, com relatos diversos sobre a quantidade de apoiadores e integrantes da organização, que compunham seu setor militar e logístico no Grupo de Trabalho Estratégico, responsável pelo planejamento da guerrilha rural, nos GTAs, os Grupos Táticos Armados, responsáveis pelas ações armadas nas cidades, ou no setor político e de massas, nos grupos de ação, que faziam o trabalho de massas da Frente de Trabalho Político, e nos grupos independentes, que formaram a Rede Logística de Apoio. Essa estrutura organizacional foi se modificando devido as necessidades da luta, baixas e quedas provocadas pela brutal repressão, sendo cada vez mais reduzida e voltada quase que exclusivamente para as ações armadas da Frente Guerrilheira até 1973, quando a ALN possuía entre 500 e 300 quadros e combatentes no país, boa parte concentrada em São Paulo, além de centenas de militantes presos, e muitos exilados, mortos ou desaparecidos. Entre os muitos simpatizantes da ALN no Brasil, estavam personalidades como a atriz Norma Bengell, o fundador do teatro do oprimido Augusto Boal, o cineasta Glauber Rocha e o tropicalista Caetano Veloso.

Cabe destacar também dois elementos importantes na ALN. Primeiro a presença das mulheres não apenas como apoio logístico, mas também nas ações armadas, sendo inclusive uma das exigências de Marighella no acordo de apoio e cooperação com Cuba, onde exigiu a participação das mulheres da ALN no treinamento de guerrilha rural, e o segundo, o perfil de classe da organização, muito representativo da formação social do povo brasileiro, que apesar de um considerável número de militantes provenientes das lutas estudantis e de trabalhadores intelectuais, tinha uma forte presença operária, além de ter sido ser fundada por um mulato baiano e ter como seu último líder político e comandante o negro pernambucano Luiz José da Cunha. 

A ALN não deu início ao processo de luta armada contra a ditadura no Brasil, iniciativas de resistência armada eram gestadas ainda no interior do PCB e também surgiram um pouco antes, como no primeiro Movimento Revolucionário Tiradentes, ligado às Ligas Camponesas, e logo após o golpe militar de 1964 com o brizolista MNR, mas foi o volume de ações, o tamanho e a influência da organização, além da relação prioritária com Cuba, que fizeram da Ação Libertadora Nacional a principal organização guerrilheira no país, constatação essa, que não faz de menor valor e importância as demais organizações e experiências de resistência revolucionária, com destaque para as Forças Guerrilheiras do Araguaia, as FOGUERA, impulsionadas pelo PCdoB com linha maoísta e composta por valorosos revolucionários, entre eles Maurício Grabois, Helenira Resende, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo, Dinalva Oliveira e Osvaldo Orlando da Costa, o guerrilheiro invencível Osvaldão, que teve seu processo de preparação iniciado em 1967 e sua destruição completa pela repressão em 1974, mas também organizações armadas que formariam com a ALN a “Frente Armada Revolucionária ”, uma coordenação revolucionária nacional que reunia o segundo MRT, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e o PCBR, cujo “Manifesto contra a Farsa Eleitoral” de 1970, também encontra-se nesse livro e é assinado por esta frente de organizações revolucionárias.

Nos textos que seguem neste livro, e que se complementam com os que foram publicados no primeiro livro “Marighella: Estratégia e Revolução”, seguimos uma linha do tempo iniciada com as entrevistas, cartas e mensagens de Marighella em Cuba, em 1967, e textos que produziu até sua morte em novembro de 1969, onde se fundamenta a estratégia, as táticas e os princípios da ALN, rompendo não apenas com o pacifismo e o colaboracionismo do PCB, mas também com o teoricismo e o burocratismo típicos da esquerda brasileira. O revolucionário soteropolitano propõe a ação revolucionária como elemento primordial da organização de novo tipo, onde não existe uma contradição entre a linha político-militar e a linha de massas, pelo contrário, elas necessariamente devem se complementar em uma estratégia revolucionária que tem por base a aliança operária-camponesa, com o apoio de setores médios urbanos radicalizados, sendo iniciada pela atuação tática e intensa de pequenos grupos armados, compartimentados e com liberdade de ação nas grandes cidades, com centralidade no triângulo econômico e burocrático-militar do regime – Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte – para debilitar e desmoralizar o sistema de repressão da ditadura e de dominação imperialista norte-americano no país, com a guerrilha urbana realizando ataques relâmpagos e evitando os choques diretos com as forças de repressão, completando a luta armada com ações de agitação e propaganda e o trabalho político de mobilização operária e estudantil, recrutamento e formação política e militar de quadros. Após os textos de Marighella, seguem-se a entrevista e textos inéditos de Joaquim Câmara Ferreira publicados até sua morte em 1970, e uma parte importante dos artigos e documentos produzidos pela Coordenação Nacional da ALN até a última edição do jornal “O Guerrilheiro”, em 1973.    

A ALN deu seguimento e aperfeiçoou o pensamento formulado por Marighella e reafirmado por Toledo, quando este assumiu a condição de dirigente máximo da organização. Os combatentes da ALN deviam convencer também pelo exemplo, demonstrando decisão, firmeza e determinação, para comprovar na prática a viabilidade e a necessidade da luta armada contra a ditadura, com relativa autonomia para os grupos de fogo da organização, que deveriam abrir caminho com a guerrilha urbana para as colunas móveis da guerrilha rural, como segundo degrau da guerra revolucionária, até a formação de um exército revolucionário de libertação, a criação das condições de tomada do poder pelo povo armado e a formação de um governo popular revolucionário, processo este que não seria dirigido apenas pela ALN, pois a organização negava a visão sectária da condição de vanguarda auto eleita e sempre foi vista por seus próprios militantes como uma etapa organizacional provisória, que deveria avançar segundo as condições impostas pela luta de classes e pela guerra revolucionária.

A queda de Virgílio Gomes da Silva, Jonas, em 29 de setembro de 1969, logo após comandar o sequestro do embaixador norte-americano na ação conjunta com a DI-GB (a Dissidência Interna da Guanabara, que viria a partir dessa ação reivindicar o nome do antigo MR-8) e a emboscada montada a partir da prisão e tortura dos freis dominicanos da base da ALN que levaram ao assassinato de Marighella, em 4 de novembro do mesmo ano, frustraram o início da guerrilha rural. A coluna guerrilheira no campo, que tinha sua logística pronta e era vista pela ALN como segunda etapa da guerra revolucionária, iria ser iniciada ainda no fim de 1969 na região entre o sul do Pará e Goiás, cabendo destacar o importante papel militante de Zilda Xavier na logística da ALN. Antes de sua morte, Marighella se preparava para uma viagem ao Mato Grosso com a mesma tarefa de preparação da área estratégica. O planejamento, em parte perdido, seria assumido por Toledo com a restruturação da ALN, mas agora a perspectiva da guerrilha rural seria compartilhada com as organizações que se coordenavam na Frente Armada e partilhavam a perspectiva estratégica da necessidade de iniciar a luta armada no campo. O comando militar da iniciativa rural estaria agora com o capitão Carlos Lamarca, comandante da VPR reconstruída, após o racha na VAR-Palmares que havia fundido a VPR e o ex-COLINA.

Marighella e Lamarca, e por sua vez a ALN e a VPR, tiveram uma relação marcada pela solidariedade e pelo conflito. Marighella havia intermediado a retirada da família de Lamarca do país, que seguiu para Cuba. Em janeiro de 1969 a célula da VPR baseada no Quartel de Quitaúna (SP) teria que realizar com urgência a ação de expropriação de armas, pois alguns dirigentes da VPR envolvidos na ação haviam sido presos na preparação do caminhão que tiraria cerca de 400 fuzis, metralhadoras, morteiros e munição do 4º Regimento de Infantaria. A VPR, sob o comando do ex-sargento Onofre Pinto, o Ari, que havia vencido a disputa interna na organização entre o setor intelectualizado e o mais ávido pelas ações armadas, preparava um plano audacioso, batizado inversamente à data histórica de “Noite de São Bartolomeu”. Em 26 de janeiro de 1969, Lamarca, o sargento Darcy Rodrigues e outros ex-militares da VPR realizariam a grande ação de expropriação de armas, enquanto outros comandos guerrilheiros bombardeariam o Palácio Bandeirante, sede do governo paulista, e o Quartel-General do II Exército, no bairro do Ibirapuera. A Academia Militar de Polícia iria desmoronar com a explosão de cem quilos de dinamite e o Campo de Marte seria ocupado por outro comando para controlar e confundir o sistema aéreo paulista. Em seguida os guerrilheiros da VPR seguiriam para o campo com a tarefa de iniciar a formação da coluna de guerrilha rural.

Marighella apresentou profunda divergência ao plano da VPR, que tinha como objetivo criar um clima de guerra civil e avançar ainda mais na militarização da situação política do país, em consonância com a lógica guevarista da dialética da ação e repressão. O recuo da ALN e a queda de quadros da VPR antecipou a deserção de Lamarca para o dia 24 de janeiro, com menos de 1/5 do arsenal planejado. Fortemente abalada pelas quedas, prisões e delações a VPR nem mesmo teria uma estrutura para a nova condição de clandestinidade de Lamarca, que coube a outra organização, o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). As armas conseguidas na ação de urgência ficariam sob a guarda da ALN, e apenas após mediações de Toledo, Marighella concordou em ceder metade do arsenal à VPR. Não sem motivos, pois Marquito, comandante militar do GTA havia caído por conta das prisões e deleções de militantes da VPR. Marighella sempre mantivera um nível de desconfiança em relação a ex-militares, o que explica em parte a ida de Lamarca para a VPR e não para a ALN. Sua desconfiança irá, mais tarde, se confirmar de forma trágica para a VPR, com o episódio do agente duplo “cabo Anselmo” e o “Massacre da Granja São Bento”, ocorrido em janeiro de 1973, e que vitimou seis dirigentes da organização, incluindo a guerrilheira Soledad Barret, a “heroína de três pátrias”.

O debate sobre o papel estratégico da guerrilha rural como a etapa a ser atingida foi de certa forma consensual entre as organizações revolucionárias brasileiras, mesmo que a prática concreta fosse de ações armadas nas cidades, que garantiam também a sobrevivência de centenas de militantes clandestinos. Essa linha estratégica tinha, além da análise da realidade feita pelas organizações, uma influência decisiva da Revolução Cubana por um lado, nas organizações da “Frente Armada”, e por outro, do maoísmo no PCdoB e no processo do Araguaia. No caso das formulações de Marighella, pesou também suas vivências na China e depois em Cuba, além da luta política anterior ainda dentro do PCB e a influência de Ho Chi Minh e da luta de libertação vietnamita, ao lado do pensamento de Mao Tsé-Tung e de sua decisiva orientação castro-guevarista.

Nesse sentido, é interessante a pergunta do jornalista cubano feita para Joaquim Câmara Ferreira na entrevista publicada pela Prensa Latina e Pensamiento Crítico, que também inserimos neste livro. Dando o exemplo da eficácia da guerrilha urbana como linha estratégica e citando especificamente o caso do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLM) no Uruguai, o entrevistador pergunta para Toledo por que a ALN e outras organizações brasileiras insistem sobre o papel estratégico da guerrilha rural em detrimento da função tática da guerrilha urbana, e em que pese as grandes diferenças entre Brasil e Uruguai naquele momento, é uma indagação importante.

Sem querer, nos limites deste texto de apresentação, cravar uma crítica histórica acerca da leitura sobre a realidade brasileira que faziam as organizações armadas, e precisamente que fazia a ALN, é importante observar que a luta guerrilheira nas cidades foi proporcionada pela dinâmica insurgente que tomou o movimento de massas no país a partir de 1968, com as combativas lutas protagonizadas pelos estudantes e as greves operárias daquele ano. Isso não aconteceu no campo, onde as lutas foram arrefecidas desde o golpe de 1964, e por isso, talvez a pergunta do jornalista cubano faça muito sentido para um balanço histórico da linha política e do programa da ALN. A leitura da guerrilha urbana como elemento estratégico naquele momento da luta de classes no Brasil, como de uma forma ou outra propôs a VPR com a “Noite de São Bartolomeu”, poderia ter produzido, como efeito, o avanço das condições do biênio insurgente de 1968/69 nas cidades, quando a ditadura foi abalada pela luta armada e de massas ao ponto do imperialismo norte-americano admitir a queda do regime, possibilitando um cenário para que as lutas sociais no campo e as contradições objetivas e subjetivas da luta de classes produzissem o momento para avançar com a guerrilha rural, dando o passo fundamental na escalada da guerra revolucionária e criando, dessa forma, as condições para a construção de um exército revolucionário de libertação através da unidade operária e camponesa, para derrubar com a violência revolucionária do povo em armas o regime dos generais e abrir caminho ao socialismo no Brasil.

Após as quedas de Marighella e Toledo, a ALN seguiu heroicamente sua saga guerrilheira até 1974, havia perdido também Eduardo Collen Leite, o Bacuri, que entrou para ALN após dissolver a REDE (Resistência Democrática) e tinha sido responsável pelas ações de captura do cônsul do Japão Nobuo Okuchi (em conjunto com a VPR e o MRT) e do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben (em conjunto com a VPR), no primeiro semestre de 1970. Preso em agosto, Bacuri foi assassinado em 8 de dezembro de 1970, após mais de 100 dias de resistência heroica no calvário dos centros de tortura da ditadura.

Na terceira e última fase da ALN destacam-se nomes como Ana Maria Nacinovic, Carlos Eugênio da Paz, Aurora Furtado, Amparo Araújo, Ronaldo Mouth Queiroz, Marcos Nonato da Fonseca, Antônio Carlos Bicalho Lana, Alexandre Vannucchi Leme, Iuri Xavier, Luiz José da Cunha e muitos outros combatentes. Esses dois últimos seriam responsáveis por importantes balanços e formulações da ALN, incluindo o documento “Política de Organização”, que recuperamos para incluir neste livro. É uma fase marcada também pelo esforço de coordenação e solidariedade entre as organizações, que tentavam sobreviver mesmo sob uma repressão brutal. Além da experiência da Frente Armada, em um exemplo de iniciativa para superar o sectarismo e a fragmentação que marcaram o período, a ALN sob o comando militar de Clemente fez diversos esforços para apoiar as Forças Guerrilheiras do Araguaia e manteve um acordo de cooperação com o PCdoB, que iria incorporar, por sua vez, a Ação Popular Marxista-Leninista (APML). No fim de 1970, a Frente Armada planejou a chamada “Quinzena Marighella”, um conjunto de ações armadas que incluía um múltiplo sequestro para libertar 200 revolucionários presos e marcar 1 ano do assassinato de Marighella, mas sofreria a baixa de seu comandante, Toledo. O “Velho”, como também era conhecido Joaquim Câmara Ferreira, era o principal articulador da Frente, foi assassinado em uma emboscada do DOPS em 23 de outubro de 1970, e a quinzena acabou não acontecendo. A VPR então, assume sozinha a captura do embaixador suíço Giovanni Bucher, e sob comando de Lamarca, a “Operação Joaquim Câmara Ferreira” na virada para o ano de 1971, consegue libertar 70 presos políticos que seguem para o Chile. Mas a partir daí, a tática dos sequestros havia se esgotado. As organizações que vinham se coordenado através da Frente e realizando dezenas de ações conjuntas, incluindo o campo de treinamento no Vale do Ribeira, no interior de São Paulo, também com o comando de Lamarca, além de diversas expropriações, sequestros, propaganda armada e justiçamentos, inclusive inovadoras ações de expropriação para a distribuição de mantimentos em favelas e o justiçamento de Henning Albert Boilesen em 1971, pela ALN e MRT, vão tendo seus quadros e dirigentes sequestrados e assassinados pela repressão, a exemplo de Mário Alves (PCBR), Devanir José de Carvalho, Aderval Alves Coqueiro e Joaquim Seixas (MRT), a “Chacina de Quintino” contra a VAR-Palmares e a Operação Pajussara na Bahia, que mataria Iara Iavelberg e depois Lamarca e Zequinha Barreto, já então no MR-8, em setembro de 1971, além de milhares de presos e exilados, e a partir de 1972 boa parte das agrupações armadas vão deixando de ter capacidade operativa e algumas deixam de existir, em paralelo, outros grupos vão iniciando um processo de “autocrítica” da luta armada, como a Ala Vermelha, saída do PCdoB. A ALN lutou até o último combatente e deixou de existir de fato só em 1974, quando também caía a Guerrilha do Araguaia, mas a ditadura ainda seguiria matando revolucionários, como na Chacina da Lapa, em dezembro de 1976, que vitimou parte do Comitê Central do PCdoB, e até mesmo o PCB, que manteve sua posição contra a luta armada, teria dez dos integrantes do seu Comitê Central assassinados entre 1974 e 1975.   

Por muito pouco, a ALN não conseguiu efetuar o que seria o ato de justiça mais simbólico desse período, o carniceiro e delegado do DOPS, Sérgio Paranhos Fleury, foi atingindo por um tiro de raspão na orelha dado pelo Comandante Clemente, em 1971, após descobrir uma armadilha malsucedida tramada pelo “cabo Anselmo” em um ponto para uma suposta conversa entre a ALN e a VPR. Fleury morreria em um 1º de Maio, alguns anos depois, em 1979. O legado da ALN ficou registrado também em sua impressa clandestina, com publicações diversas, como o seu órgão central “O Guerrilheiro”, que tem todos os seus textos principais publicados aqui, o jornal de massas “Venceremos”, a publicação da ALN da Guanabara “Ação”, o jornal “Guerrilha Operária”, entre outros. O internacionalismo foi outra marca importante da ALN, com uma rede guevarista de militantes realizando tarefas entre a América Latina e a Europa, e uma relação intensa de apoio e conflito com o governo revolucionário de Cuba, que desenvolveu com a organização de Marighella e Toledo uma política oficial de apoio no Brasil, ou mesmo em um processo inicial de relação com a República Popular Democrática da Coreia, que não chegou a vingar pelas dificuldades logísticas. A organização também enviaria militantes para contatar o Partido dos Panteras Negras, nos EUA, que tinha em Marighella e no “Minimanual” uma importante referência. Além da atuação brutal da repressão, a ALN também enfrentou processos internos mais ou menos tensos, da organização saíram agrupamentos menores e rachas, como o M3G (Marx, Mao, Marighella e Guevara) no Sul, a Frente de Libertação do Nordeste, a Tendência Leninista no exterior e o Movimento de Libertação Proletária (MOLIPO), a partir da ruptura de um setor universitário que fez treinamento militar em Cuba. O que a ALN, seus mártires e sobreviventes, assim como, o curto, mas efervescente período de guerra revolucionária no Brasil nos ensina, é principalmente a necessidade da decisão revolucionária, da dedicação plena à causa da libertação e da emancipação popular. O profundo anti-imperialismo da ALN tem uma atualidade fundamental nessa etapa em que os EUA agoniza e afunda, mas mantém sua condição de inimigo principal da humanidade. Desse livro que dedicamos à trajetória da organização e seu fundador, Carlos Marighella, o “Preto”, como era carinhosamente chamado pelos combatentes, podemos tirar como conclusão a vigência e atualidade do programa da ALN e sua estratégia para a revolução brasileira, além  dos ensinamentos para os novos tempos de barbárie capitalista e do neofascismo que impõem novas formas de acionar revolucionário sobre os escombros da política de conciliação, do reformismo e do liberalismo que domesticaram e acovardaram a esquerda brasileira. A ALN nos ensina que uma linha de massas combativa e revolucionária deve ser necessariamente acompanhada por uma linha político-militar adequada em cada período da luta em nossa realidade necessariamente dialética, e que precisamos novamente ter a clareza que só haverá socialismo com revolução e que nenhuma organização é realmente revolucionária até que se coloque e resolva os problemas do aspecto violento e militar de sua prática política.      

Por fim, queremos agradecer especialmente pelo apoio ao longo trabalho de pesquisa desse livro ao companheiro Ivan Akselrud Seixas, ex-preso político e guerrilheiro do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), ao querido e sempre solicito Mário Magalhães, ao veterano da ALN e professor Wilson do Nascimento Barbosa, a professora Maria Cláudia Badan, ex-companheira do saudoso Comandante Clemente e que desenvolve a mais importe pesquisa sobre a ALN, a também professora e pesquisadora da ALN e da VPR, Oriana Fulaneti, a equipe do Projeto Brasil: Nunca Mais (BNM) e todas as demais pessoas que nos ajudaram na edição deste livro.

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