ALN — História e Desenvolvimento – Iuri Xavier 

Documento recuperado por nossa pesquisa para a Coleção Pensamento Marighella e publicado no livro Pensamento Marighella – Volume II, escrito pelo revolucionário Iuri Xavier Pereira em junho de 1971 para o debate interno e balanço da ALN. Foi publicado pela Ação Libertadora Nacional na íntegra e com apresentação da organização em setembro de 1972, como homenagem ao dirigente revolucionário assassinado pela ditadura militar fascista no “Massacre da Mooca” em 14 de junho de 1972, quando Iuri, Marcos Nonato da Fonseca, Ana Maria Nacinovic e Antônio Carlos Bichalho Lana foram surpreendidos por uma emboscada do DOI-CODI após saírem de uma reunião da coordenação regional da ALN realizada no restaurante Varella, no bairro da Mooca, em São Paulo. As quatro vítimas do “Massacre da Mooca” eram importantes combatentes da luta armada contra a ditadura, desempenhando papel fundamental na reorganização da ALN após os assassinatos pela repressão de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Iuri Xavier e Marcos Nonato foram metralhados na porta do local, Ana Nacinovic ferida e ensanguentada no chão, foi novamente atingida por uma rajada de fuzil à queima-roupa e Bichalho Lana conseguiria escapar mesmo ferido à bala. A fonte original é do Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano – ASMOB (CEDEM/UNESP).   

APRESENTAÇÃO

Esse documento foi elaborado pelo companheiro Iuri Xavier Pereira em junho de 1971. Nasceu de uma necessidade que sentia a Organização de um relato e de uma análise de sua história e desenvolvimento.

É certo que os ensinamentos só podem ser extraídos da prática, como é certo que só na prática podemos superar os nossos erros. Por outro lado, a prática da Ação Libertadora Nacional já contém ensinamentos importantes que algumas vezes, seja por deficiência de nossos combatentes ou seja por falta de uma consciente e bem executada transmissão de experiências, não são bem entendidos e aplicados, visando a melhoria de nossa atuação.

Sabemos que nossa prática não tem sido retilínea, embora, constante. A renovação de quadros tem sido muito grande, e devido a isso, são bem poucos hoje em dia os companheiros que viveram todos os momentos da Organização, desde o lançamento da guerra revolucionária até hoje. Perdemos muitos combatentes e se não aproveitarmos as experiências que esses combatentes nos deixaram, elas se perderão no tempo e no espaço, trazendo sérios prejuízos à ALN e ao movimento revolucionário brasileiro.

Iuri, neste documento, procura fazer um balanço da atuação da ALN, e, a partir daí, traçar algumas diretrizes a serem seguidas pela Organização. Buscava preencher um claro na teoria da Organização.

Era sua intenção que o documento fosse discutido e enriquecido pela Coordenação Nacional, para que não fosse publicado como uma contribuição sua, e sim, como palavra oficial da direção. Infelizmente, fomos surpreendidos pelo seu assassinato em 14 de junho de 1972, antes que esse seu desejo se realizasse. Decidimos então publicá-lo como uma contribuição sua, sem quaisquer alterações, já que sua participação na discussão seria indispensável.

Iuri Xavier Pereira, nasceu no Rio de Janeiro em 9 de agosto de 1948. Ingressou no PCB no início de 1965, onde sempre se destacou por sua dedicação à causa revolucionária. Foi membro do Comitê Secundarista, participando na preparação do VI Congresso do PCB. Saiu do PCB para a Ação Libertadora Nacional, tendo sido um dos responsáveis pela formação da organização na Guanabara (GB).

Em 1968 viajou para Cuba onde adquiriu novas e importantes experiências na sua vida de revolucionário, comunista e combatente. Retornou em 1970, passando a ter uma atuação constante em São Paulo, tendo já neste ano, participado de ações armadas. Em 1971 e 1972, participou da maioria das ações realizadas pela ALN, tendo sempre se comportado como um exemplo para os revolucionários.

Foi, ainda em 1968, um dos responsáveis pelo surgimento do jornal Ação Revolucionária na Guanabara. Sempre defendeu a criação de uma imprensa revolucionária que tivesse uma atuação constante. Participou ativamente de todos os números de “O Guerrilheiro” a partir de 1970. Colaborou na edição de “Venceremos”. Participou das discussões e deu colaboração para o documento “Política de Organização”.

Participou decisivamente no processo de luta política e ideológica na ALN em 1971, tendo sido um dos que mais se bateram pela unidade da Organização. Fez parte da Coordenação Nacional da ALN desde a morte do companheiro Joaquim Câmara Ferreira, até sua morte, sendo um dos responsáveis pela sobrevivência, unidade e crescimento da Organização.

Esses são, alguns aspectos da vida revolucionária do comunista Iuri Xavier Pereira.

“Que outras mãos se levantem para empunhar seu fuzil.”

Setembro de 1972 

Ação Libertadora Nacional – ALN

Veículo da Folha de São Paulo, que apoiou ativamente a ditadura militar fascista, incendiado por um comando guerrilheiro da ALN. 

O momento que atravessa a Organização e o movimento armado é realmente crítico, necessitam medidas enérgicas e firmes, mas também cuidado nos passos a dar.  

Em razão da situação presente há muitas dúvidas sobre o que fazer e como fazer; o que pensa a direção; qual a causa dos golpes sofridos. A teoria subestimada nos anos 1968/69, vai sendo exigência para explicar o que houve e indicar o que fazer.

Esta questão deve ser entendida no sentido de que, se a tendência que predominava dentro da Organização em 68-69 de alergia a documentos e teoria foi em certo sentido errônea e prejudicial, a de hoje, que é uma exigência ansiosa dos mesmos em alguns companheiros, pela situação que enfrentamos podem também levar a erros e prejuízos. Deve-se estar consciente que não vamos subordinar nossa atividade à elaboração dos mesmos. Que em definitivo não são eles a reposta ao momento nem quem nos levará adiante. Os documentos também tem sua hora e sua vez, devem surgir naturalmente de uma prática e serem elaborados visando uma prática. Devem ser não só explicativos, mas terem igualmente o caráter de levarem à ação.

Entretanto, é indiscutível que para superar este momento e levarmos eficazmente adiante a luta torna-se necessário dar um balanço na atividade passada da Organização. As dificuldades para isso são lógicas. O tipo de luta que travamos, a situação que enfrentamos ontem e hoje, dificulta quando não impedem o intercâmbio e o recolhimento de informações e experiências indispensáveis. A renovação de quadros imposta pela guerra, por exemplo, torna pequeno e disperso o número de companheiros que passaram por todo o processo da Organização (fundamentalmente o período 67-68).

Assim, este material procura informar e explicar, dentro de uma visão geral, o que foi a Organização até agora, seu papel e atuação. Esta parte estará inevitavelmente incompleta quanto a detalhes, em parte pelos motivos expostos anteriormente, e todos os companheiros devem contribuir para seu aperfeiçoamento.

A partir disto procura traçar as perspectivas que deve levar adiante a Organização. Esta é a parte mais importante. A sua compreensão e a decisão de lavá-la adiante são decisivas. A importância da primeira parte está em que é preciso uma compreensão geral acertada de nossa atividade anterior e do momento atual para traçar orientações corretas para o presente e o futuro.  

Isto porque nossa pretensão não é elaborar a teria acaba da Revolução Brasileira, mas ter conhecimento indispensável do processo que nos permita melhor combater o inimigo, e naturalmente vencer.

Agora, desde já alertamos que ao escrevermos este material partimos de algumas premissas, que são:       

1 – Considerar justo o conceito de que a luta armada é o caminho da libertação de nosso povo.

2 – Igualmente acertada a estratégia da Organização.

3 – Que então o importante é ter esta estratégia clara e procurar corrigir os erros que cometemos em seu encaminhamento.

4 – Partir este encaminhamento desta estratégia e do material deixado por Marighella, que são sua expressão teórica.

Portanto, muita coisa que aqui não for abordada, ou for de maneira rápida e insuficiente, tem sua explicação nas premissas anteriores, devendo dar os companheiros a máxima importância ao estudo de materiais da Organização, estudo muito subestimado e conhecimento insuficiente em número enorme de combatentes  

I

Talvez ao golpe fascista de 1964 tenhamos que reconhecer certa paternalidade de nossa Organização. Até ele, a política mais “avançada” e que determinava o caráter das atividades da esquerda era sem dúvida a do PCB. Sua irrealidade e falsidade foram demonstradas pelo golpe e a não oposição popular organizada ao mesmo, além de sua não previsão ao menos como alternativa reacionária viável à situação existente.

Os anos 1964-65 caracterizaram-se então por um profundo marasmo nas atividades de massas e de resistência à ditadura pelo movimento popular. A situação criada não era prevista nos manuais da esquerda, que não estava preparada para responder a ela, portanto, a perplexidade e imobilidade dominaram neste período.

A partir do 1966 iniciou-se em seu meio, paralelamente a um começo de movimento de massas basicamente estudantil, uma intensa discussão em que a tônica foi pôr em dúvida tudo. A prática anterior ao golpe, as razões deste, as concepções que a partir dele deviam-se materializar, a estratégia, as táticas, a existência e importância do Partido, etc.

São frutos dessa época: “Porque resistir à prisão” de 1965; “A crise brasileira”; “Luta interna e Dialética”, “Carta à Comissão Executiva” (em que pedia o desligamento desta) de 1966; “Ecletismo e Marxismo”, artigo de debates de 1967. E outros.

Estes materiais são importantes para entender esta época, assim como a evolução política de Marighella, cujo resultado é a nossa Organização.

Este período que abrange fundamentalmente 1966-67 caracterizou-se assim por um teoricismo muitas vezes um tanto confuso sobre o que fazer, as primeiras cisões dentro da esquerda e a restauração do mínimo de organização e atuação dentro do movimento de massas.

Poderíamos inserir aí o caso de Caparaó, de onde Marighella extraiu muitos ensinamentos.

A variedade e diversidade deste processo deve ser ressaltada, pois irá dar resultados significativos no futuro. Ou seja, esta discussão e seu resultado adquiriram vários níveis e formas em função do setor, Partido, Movimento e inclusive região onde se davam. Que fatores influíam para isto? As classes e camadas da nossa sociedade, a diversidade de nossa formação histórica, econômica, política, social, cultural, nossa dimensão geográfica, etc.

Em outras palavras a crise, seu encaminhamento e solução não podiam ser os mesmos, por exemplo, entre o movimento brizolista no sul, o Partido Comunista no leste e as Ligas Camponesas no Nordeste.

É o que Marighella caracterizou mais adiante como o desenvolvimento desigual do movimento revolucionário em nosso país.

II

Em termos esquemáticos poderíamos situar a passagem 1967- 68 como período decisivo da crise. As divisões se davam em base simplesmente de divergências no binômio linha pacífica – linha armada, mas que mantinham as mesmas estruturas organizativas e tinham dificuldades em deixar os antigos métodos de atuação se revelam insuficientes e incapazes.

O movimento de massas, especialmente estudantil e já também operário travavam lutas com a ditadura que exigiam e ofereciam a oportunidade do romper com as formas de resistência até ali empregadas.

Mas, o que deveria ser feito? Para grande parte da esquerda isto já estava claro em forma geral. A Luta Armada. Entretanto, como deveria ser realizada, como sair do círculo em que se mantinha a luta? As discussões eram infindáveis.

Aí jogou decisivo papel, Marighella. Além de seu passado havia adquirido enorme projeção por sua participação na Conferência da OLAS. Com sua extraordinária capacidade, inteligência e decisão, compreendeu que a saída para aquela situação era uma só. A Ação. Sair dos intermináveis debates e da luta armada escrita e falada para a praticada.

Se devia haver partido, se a estratégia era socialista, se a luta deveria ser o foco rural, se a China e a URSS ajudavam ou impediam nossa luta, que estrutura deveria criar-se, onde começar, etc. Ou seja, as discussões infindáveis e estéreis que pareciam criar abismos intransponíveis entre cada um dos grupos, assim como a compreensão clara do movimento armado, só poderiam ser superadas com a Ação.

A Ação naquele momento, praticada por todos, em todas as partes, de todas as maneiras. Seria ela quem definiria organização, estrutura, estratégia, tática, unidade, etc.

Então, que tarefas práticas tinha um grupo seja do Nordeste, Rio, São Paulo, Minas, Goiás, Rio Grande? Agir. Recolher amas e munições. Treinar tiro e marcha. Aprender a lidar com explosivo e rádio. Acumular remédios e aprender enfermagem. Reconhecer áreas. E atuar

Estas orientações, já começava a difundir Marighella através das “Cartas de Havana” e “Mensagens de Cuba” de 1967. Só temos compromisso com a Revolução; O dever de Todo Revolucionário é fazer a Revolução; Não pedimos licença para ninguém para praticar atos revolucionários.

Eram os princípios que Marighella incansavelmente repetia por todas as partes. Sabia que o importante neste momento era lutar, livrar das amarras, dar total iniciativa. Assim desencadeava-se a luta. O resto viria depois.

Um documento importante deste período é o “Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo”, de alguma circulação e que saiu publicado em O Guerrilheiro de abril de 1968. Lá se dizia: “Com este documento queremos deixar clara nossa disposição de lutar agora…”. Nele definiam-se as tarefas concretas que os grupos revolucionários deviam executar para o começo da luta.

A partir de 1968 desencadeiam-se as ações guerrilheiras nas principais cidades brasileiras em ritmo cada vez mais intenso. Apesar da diversidade assinalada do pensamento e perspectivas havia unidade. A unidade de ação.

Foi neste processo que formou-se a Organização. Porque a princípio havia o grupo de São Paulo e o de Minas, algo na Guanabara e contatos em alguns outros estados. O que os unia? A Ação e o pensamento e a orientação de Marighella. A partir desta prática e da definição e encaminhamento de tarefas foi criando-se entre entes grupos a unidade e coesão em torno de objetivos comuns. Clarificando a estratégia, forjando táticas, surgindo estruturas.

É deste período (setembro de 1968) o material “Algumas questões sobre as Guerrilhas no Brasil”, em que Marighella definia as diferentes fases da luta revolucionária no Brasil, seu caráter e objetivos.

Conjuntamente, o movimento de massas aumentava enormemente, tendo com pano de fundo a crise econômica. Nos setores operários as reivindicações, protestos e greves cresciam em número. A insatisfação das classes médias desiludidas, era também gritante e tinha sua expressão máxima no movimento estudantil que adquiriu extrema combatividade, desdobrando-se praticamente em todo o país. A “Marcha dos 100.000” foi um marco nestas manifestações.

Esta situação repercutia inclusive entre o meio político tradicional, levando-o à crise do Congresso com o caso Márcio Moreira Alves.

A crise política da ditadura acentuava-se, estando cada dia mais isolada. A solução encontrada foi uma feroz repressão e o golpe de outubro de 1968. A transformação da crise política em crise militar acentuava-se.

A partir do momento em que a brutal repressão impedia e tornava improdutiva a resistência popular à ditadura em forma de greves pacíficas, passeatas ou protestos e ainda eleições e formas organizativas legais, a luta de pequenos grupos de homens armados tornava-se a principal, mostrando sua plena validade e eficácia.

III

Assim, o ano de 1968 era encerado com um otimismo justificado. A iniciativa estava com o movimento revolucionário.

As ações aumentavam em número e qualidade, diversificando-se e pondo em xeque a ditadura.

Afirmava-se nesta luta nossa Organização e outras mais, aspecto este inevitável pelas características, ditas anteriormente, de nosso processo.

Mas a unidade não era algo impossível. Se demorada e difícil, era desejada e necessária. “A mesa de conferência já não une os revolucionários brasileiros”, para nós “unidade é potência de fogo”. Marighella compreendia que fortalecendo a Organização, aumentava o número de ações, desenvolvendo-se a luta, atuando em conjunto, a conseguiríamos, sem pressa nem prazos.         

No decorrer do ano 1969 era visível o apoio popular que tinha e ia em aumento este tipo de luta nas cidades. Nelas ia-se tornando cotidiana a violência revolucionária. A Organização crescia e estendia sua influência de maneira espetacular.

Com este quadro e a partir da experiência já adquirida, Marighella elabora uma série de materiais: “Algumas Questões de Organização” (documento de fundamental importância ao analisar nossos princípios de organização e a mudança que a luta traz à nossa estrutura); “Sobre Problemas e Princípios Estratégicos”, “Operações e Táticas Guerrilheiras”; “Sobre a Organização dos Revolucionários”; etc.

Define estratégia, difunde táticas. Dá estrutura, nome e linha à Organização (Programa). Nasce a ALN (Ação Libertadora Nacional). São expoentes deste período o “Minimanual do Guerrilheiro Urbano” no aspecto operativo, a definição do nome o programa da Organização, no aspecto organizativo.

A entrevista à revista Front (dezembro de 1969) talvez represente a essência do seu pensamento naquele momento.

Conflagrada a cidade, em particular o triângulo de sustentação, devia-se dar o passo que representaria um novo e decisivo salto de qualidade, a deflagração da guerrilha rural. Não como um foco, um grupo de homens isolados no meio rural que a partir de sua própria ação inicial contra as forças repressivas desenvolveria a luta. Mas sim como resultado de um planejamento e estratégia global que havia dado seu primeiro passo, ou seja, a conflagração do triângulo de sustentação do inimigo.

Agora a partir dos preparativos que se vinha realizando em diversas áreas do interior, competia “levar o mesmo terror de esquerda e a mesma inquietação no campo”, conflagrar o interior com о mesmo método empregado nas cidades, a ação de pequenos grupos armados. Naturalmente as características destas ações seriam distintas as praticadas nas cidades. Mas visavam o mesmo objetivo: levar a inquietação e a subversão ao campo, criando as condições para o início da guerrilha rural e a formação do Exército Revolucionário.

Já em 1968 ele havia definido as etapas da luta e a importância da guerrilha rural no material “Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil”. Agora aprofundava e definia as características das ações rurais neste período em outro material de enorme importância, a “Alocução sobre a Guerrilha Rural”.

A partir de meados de 1969 volte-se principalmente para ela, contando com o apoio das cidades conflagradas, a definição de áreas e um grupo de companheiros especialmente preparados. “Este será o ano da Guerrilha rural”, proclamou.

Entretanto, a partir principalmente de setembro, a Organização começa a receber uma série de golpes duríssimos que se sucedem e prolongam-se até atingir o próprio Marighella, em novembro.

IV

A pergunta inevitável é o que levou a esta situação. Os golpes recebidos pela Organização são explicados de que maneira?

Porque não se trata unicamente da morte de Marighella como um fato isolado, os golpes haviam-se iniciado antes o prosseguiram ainda depois do 4 de novembro, levando-nos a uma situação em que além das perdas sofridos, éramos uma série de grupos espalhados pelo país sem contatos entre si, isolados, sem perspectivas imediatas e o comando desagregado (Toledo, por exemplo, achava-se no exterior).

Tentar esmiuçar todos os erros seria no mínimo falho e alongado, assim pouco produtivo. Seria um “mea culpa” próprio de elementos com outra perspectiva que não a nossa. Achamos que a partir da exposição de duas ou três de suas manifestações principais é possível, seguindo suas coordenadas, achar e compreender os demais.

Estas falhas foram o espontaneísmo, a falta de uma unidade política e a inexperiência da guerra.  

Para romper o círculo vicioso em que se estava, Marighella lançou a palavra de ordem da ação. Esta era a que poderia romper com velhos esquemas, criar uma nova realidade. Além do que, se ele fosse discutir em base a documentos, programas, estratégia, pouco conseguiria. No mínimo permaneceria as infindáveis discussões, em torno de milhões de discordâncias quanto a estas questões. Assim, ao conversar com as pessoas ou grupos, o que ele desejava saber não era como pensavam que deveria ser luta armada e que objetivos se propunha a cada passo após a tomada do poder, mas sim se estavam dispostos a lutar agora, neste momento, em torno à guerrilha rural anti-imperialista e anti-oligárquica, e que atividade poderiam realizar para tal.

Deste modo estimulava ao máximo a iniciativa revolucionária e a autonomia da ação. Os debates sobre outros problemas estavam subordinados a esta prática. Alertava igualmente para o perigo do burocratismo ao se criarem as novas estruturas. Esta contribuição de Marighella foi decisiva naquele momento.

Mas se esta posição era justa em tal situação, com o decorrer da luta e a formação de nova realidade ela foi perdendo progressivamente seu valor (logicamente mantendo seu valor intrínseco). Isto porque já agora a luta criava necessidades e exigências que não se resolviam simplesmente com o fazer a guerra. Era preciso mais e mais entender e aplicar o como fazer a guerra de acordo aos objetivos que esta ia ajudando a clarificar.

Entretanto caímos, em certo grau, em um espontaneísmo em que os problemas eram resolvidos conforme apareciam e quase sempre que se tornavam inadiáveis.

Não se entendia que a uma mudança das condições objetivas e subjetivas deveria corresponder uma mudança na interpretação de uma série de palavras de ordem (não pedimos licença a ninguém para praticar atos revolucionários; o dever de todo revolucionário é fazer a revolução; etc.). Por medo ao burocratismo confundiu-se muitas vezes liberdade de ação e autonomia com indisciplina e não definição de estruturas e tarefas. Assim as coisas marchavam (ascendentes no período 1968-69), mas de um modo um tanto confuso e alimentadas principalmente pela decisão de lutar. O desejo do todos era participar de ações, houve certo culto ao guerrilheiro urbano (só considerado este o que participava do GTA), e as outras frentes eram pelo menos considerada de maneira bem secundárias e giravam quase que exclusivamente em torno do GTA (fato este visível em São Paulo, onde a Organização desenvolveu-se de forma mais ampla). Originou-se, por tais fatos, uma confusão e interpenetração enorme entre estes setores, reduzindo ao mínimo a compartimentação, o que veio causar graves prejuízos.

Deste espontaneísmo o ramo mais grave foi o não planejamento. Qualquer atividade humana pouco ou mais complexa exige programação para seu melhor avanço, mais ainda a realização de uma guerra. E planejamento onde se definissem objetivos e tarefas assim como prazos para sua concretização (prazos em guerra são sempre perigosos e flexíveis, mas em certa medida necessários para um efetivo controle), foi algo que em geral esteve ausente em nossa atuação. É claro que as dificuldades para tal saltam à vista quando se examina o processo de formação de nossa Organização e seu início de luta, mas poderíamos haver feito um maior esforço em tal sentido.

O trabalho rural do selecionamento de áreas e sua preparação também se ressentiu de um maior planejamento e controle. Onde iam surgindo possibilidades se procurava trabalhar, sem um escalonamento de importância. É lógico que isto devia-se à duas causas principais: nossa inexperiência neste terreno e em consequência a falta de quadros capacitados e o volume de recursos, sempre abaixo das necessidades, que a ele se destinavam, o que dificultava qualquer planejamento.

É verdade que Marighella tinha uma perspectiva global do processo e sabia em linhas gerais que caminhos devíamos percorrer entre cada etapa. Mas os comandos intermediários não tinham a mesma capacidade, nem ele conseguiu que sua visão fosse assimilada por eles. A situação evoluía de tal forma que a formação dos quadros era sempre insuficiente.

A unidade política deixou a desejar também. O núcleo principal de Organização tivera sua origem no PCB. Entretanto, mesmo entre este núcleo havia diferenças de perspectivas, já originadas na luta interna no PCB, que variavam de acordo com o setor e região de que provinham e a época em que ingressavam na Organização. Além disto, numerosos grupos e pessoas uniam-se a nós em diversos períodos e vindos das mais diversas origens. Este amálgama a princípio baseava sua unidade na ação e na orientação de Marighella. Contudo, ele não podia estar em todas as partes, as perspectivas da Organização devido às particularidades de nosso processo só iam-se criando uma mentalidade anti-teoria, em que (devido às estéreis discussões do período anterior), o estudo e a discussão política foram muito subestimadas, quase não existiram. E procurava-se reduzir esta preocupação a uma manifestação do espírito burocrático, que é verdade subsistiu de alguma maneira em nossa Organização, pois não só as boas virtudes foram trazidas para nós, de contrabando vieram também doses de burocratismo, formas esquemáticas de pensar e agir, etc.

Isto levou a que, quando começaram a sair, mesmo os materiais da Organização não fossem encarados com a devida importância. Mais que estudados, compreendendo-se e assimilando-os para sua aplicação, eram lidos quase como uma obrigação. Associou-se documentos com partidos burocráticos, sendo, portanto, praticamente incompatíveis com uma organização revolucionária armada (“o que importa é a ação”). Outra das frases levadas ao extremo e aplicadas à todas as situações, sem a menor flexibilidade e una compreensão mais ampla do que seria ação revolucionária. Ela servia para encerrar qualquer debate.

O resultado maior disto é que a formação política ressentiu-se bastante. Íamos desenvolvendo-nos militarmente, porém o aspecto político (indispensável para o quadro político-militar), não acompanhava este ritmo. E se tal coisa dava-se em uma mesma estrutura a da Organização, as diferenças entre as estruturas, separadas pela distância geográfica e origens, eram maiores ainda, naturalmente.

Também neste aspecto não compreendemos de maneira suficiente, que se em certo período foi correta a pouca importância dada a documentos e discussões que se baseavam não em uma prática, mas em teoria e que em teoria igualmente ficavam, e a mudança de situação originada pela luta armada oferecia e exigia tais elementos, logicamente subordinados às condições da luta.

Assim, como não podemos ter uma visão coesa em toda a Organização do que éramos, o que queríamos, e como queríamos, o trabalho desenvolvido apresentava desníveis de perspectivas nas diferentes estruturas (Rio, São Paulo, Minas, etc.).

Outro fator de muita importância foi nossa inexperiência militar em todos os seus aspectos, seja estratégico, tático ou técnico.

É verdade que se aprende a fazer a guerra, travando-a. Como em todas as atividades, é a sua prática quem ensina e transmite as indispensáveis experiências.

Mas para se travar uma guerra é necessário um mínimo de conhecimentos de sua arte e leis. E nossa inexperiência neste terreno era quase absoluta. Os métodos e princípios de atuação custaram-nos bastante caro em recursos e vidas para sua assimilação.

Igual acontecia quanto a parte técnica da mesma (conhecimento e manipulação de armamentos, equipamentos, explosivos, etc). Esta ignorância era a causa da importância enorme dada por Marighella ao Centro de Aperfeiçoamento Guerrilheiro. Infelizmente os critérios de selecionamento para a aquisição da tais conhecimentos não foram dos melhores.

Ademais a guerra que começávamos a travar tinha um caráter específico, ou seja, era uma guerra revolucionária. Uma luta em que um punhado de homens propunha-se a derrubar um governo e regime infinitamente mais poderosos, mobilizando para tanto as classes e camadas sensíveis a seus objetivos, organizando-as e criando um Exército Popular Revolucionário. Uma luta em que, se impossível ser levada à vitória por um pequeno número de pessoas, devia ter cuidado em seu avanço e crescimento numérico, que poderia representar (dentro do cerco estratégico inimigo), um alvo mais fácil para a repressão.

Trazia-nos, portanto, alguns problemas particulares: como coordenar as exigências militares com as necessidades políticas? Que formas de organização e atuação eram corretas e seguras para ganhar e integrar na luta um número cada vez maior de pessoas?

As respostas a essas interrogações não eram fáceis, seja pelo nosso desconhecimento do como fazer a política através da guerra, seja pelos hábitos, preconceitos, sectarismos e burocratismos que em maior ou menor grau trazíamos de nossa prática anterior e que, como vícios, tínhamos dificuldades de nos livrar, transportando-os em parte à nova realidade, deformando-a.

V

Esta conjuntura no impediu o avanço do movimento armado (determinado por outros princípios), mas realizou-se em bases de pouca sustentação orgânica. Com o incremento das ações sobre estas bases, perdeu-se (aproximadamente de meados de 1969 em diante) o pulso da situação. O controle sobre as ações (não as ações em si como operações, mas de seu momento, caráter e objetivos), realizadas pelos grupos armados tornou-se difícil. Demos passos para os quais ainda não estávamos preparados.

Não se aplicou o princípio desenvolvido por Marighella, segundo o qual, após uma ação de grande envergadura ou um número razoável de ações é necessário dar um balanço das atividades realizadas. O desenvolvimento da infraestrutura não estava no mesmo diapasão do ritmo de ações.

No caso específico de São Paulo, o GTA passou a considerar-se a vanguarda e o ponto de referência de todas as coisas. Todos os outros setores (massas de sustentação principalmente) da Organização deviam estar a ele subordinados, levando na prática a que estes setores não tivessem uma perspectiva própria. Ainda que tivéssemos uma interpretação errônea do conceito de Marighella de que “para nós o fundamental é primeiro a ação e a estratégia” e que, portanto, “a Organização é consequência disso e surge simultaneamente com a ação revolucionária. A Organização surge pela base e não pela cúpula.” (“Sobre a organização dos revolucionários”). Não vimos (subestimamos como tal) primeiro que o trabalho das frentes de massas e sustentação é também ação revolucionária. E segundo se entendeu ser a “Organização como consequência da ação” como um processo espontaneísta em que bastava o detonante (a ação) para realizar o restante (a Organização). Assim, algumas teses estranhas à nossa estratégia começaram a ser desenvolvidas.

Marighella, cujo objetivo naquele momento era a deflagração da guerrilha rural, pensava ser o momento de uma pausa nas atividades destes grupos, aproveitando o volume de ações já realizadas e finalizando os preparativos na área rural. Quanto aos problemas com o GTA de São Paulo enviou uma carta, a “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, que deve ser estudada, pois suas premissas mantêm-se válidas. A origem desta carta foi que GTA estava criando alguns problemas de estruturas, perspectivas e atuação. Marighella, não podendo se deslocar para São Paulo no momento, enviou tal carta.

VI

Do lado inimigo, em linhas, o que sucedia? Encurralado pelas crises políticas de 1968, desorientado pelas ações revolucionárias armadas que iam em crescente ritmo, decretam o Ato Institucional nº 5 (AI-5), tornando ainda mais feroz a repressão.

A luta de pequenos grupos de homens armados, em 1969, assume indiscutivelmente a vanguarda na resistência à ditadura. 0 volume de ações seguia em aumento e mantínhamos a iniciativa.

Dois motivos principais concorriam para tal situação, apesar de nossas deficiências ditas acima. O primeiro, que esta forma de luta encontrava receptividade e absorvia a insatisfação popular na área urbana contra a ditadura. O segundo, o quase total despreparo da ditadura para enfrentar-nos, suas falhas políticas (não possuíam, por exemplo, instrumento político de consideração) e técnicas (insuficiência do armas, equipamentos, treinamentos, seus órgãos de segurança tendo atuação em separado), leva-os ao desespero e estupefação.

Acostumados à uma repressão dirigida aos movimentos de massas pacíficos ou às Organizações de esquerda tradicionais de pouca periculosidade em métodos e estruturas conhecidas, ao ver-se enfrentando formas de atuação novas no cenário revolucionário brasileiro, mostrando-se de uma primorosa ineficácia. Estes métodos, vinham a romper as regras de um jogo que bem gostariam de manter de forma indefinida.

Sua carência de informações era praticamente total. Mas o inimigo não permaneceu inativo. Buscou adotar as medidas que lhe permitissem recuperar a iniciativa. Para uma situação crítica tomaram as necessárias medidas drásticas. Fecharam o Congresso e cassaram mandatos, intensificaram a censura, aumentaram as prisões, redobraram a repressão e a tortura como política intimidatória.

Não descuidaram da parte técnica, incrementando o treinamento policial e aperfeiçoando seus métodos de investigação, tomando aí uma medida fundamental que é a centralização do controle da informação e repressão, criando a OBAN em São Paulo e o CODI na Guanabara. Aumentou sua potência de fogo e melhorou seu equipamento. Consequentemente o seu volume de informações e capacidade de reação e resposta, foram aumentando gradativamente.

Assim chegamos ao período final em 1969, onde os dois oponentes atingiram um clímax, expressado pelo sequestro do embaixador americano, mas em bases diferentes.

Enquanto o nosso não tinha como fruto uma infraestrutura que suportasse uma atividade brutal e eficiente da repressão, e permitisse como consequência um novo avanço na luta (naquele momento expressado no binômio: incremento e diversificação das ações urbanas – deflagração da guerrilha rural), o regime estava maduro para sua tarefa (cujo sinal evidente foi a troca de ditadores).

O resultado foi a sequência de quedas que atingiram um impressionante número de combatentes e pontos de apoio, chegando inclusive ao próprio Marighella.

Todas as quedas têm sua expressão técnica (falhas nas medidas de segurança), que julgamos importante divulgar e debater a fim de evitar, tanto quanto possível, sua repetição. Quanto as suas expressões políticas e organizativas, o quadro acima nos parece oferecer os dados para sua compreensão.

VII

Ao darmos um balanço neste período vemos que o principal aspecto positivo foi o desencadeamento da ação revolucionária.

“Solicitando demissão da atual Executiva – como o faço aqui – desejo tornar público que minha disposição é lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança.” (Carta à Executiva, dezembro de 1966)

O início da ação armada rompeu com o burocratismo, o convencionalismo e a estagnação que marcavam a atividade da esquerda no Brasil (com todos os seus matizes de momento).

Ela originou necessariamente una mudança de qualidade nas forças revolucionárias, propiciou a oportunidade de formação de um novo tipo de quadro revolucionário.

Obrigou a ditadura a um nível repressivo mais intenso, desmascarando-a ainda mais e desempenhando papel decisivo na transformação da crise política em crise militar.

Deu ao movimento revolucionário a perspectiva de se tornar uma alternativa real de poder e criar uma prática verdadeiramente brasileira, não saída dos manuais.

O principal aspecto negativo foi o espontaneísmo em nossa atividade. Ele levou a uma distorção em muitas de nossas concepções, a marcar nosso trabalho organizativo pela dispersão e a falta de planificação.

A formação política foi subestimada, ao atribuir em alguns instantes à ação armada um caráter absoluto.

Para estes termos contribui a prática anterior que tivemos, viciada, formal e sem imaginação.

Romper esta mentalidade representava sacrifícios e dificuldades, pelo costume e origem de classe de muitos dos que tivemos atuação neste momento.

O desconhecimento da guerra, e em consequência, de seus métodos de ação e de organização também contribuíram em nossos erros.

Igualmente a falta de unidade e dispersão de forças revolucionárias, mesmo sendo inevitáveis, tornou-se um fator de fraqueza para nós. Nossos golpes não tiveram a potência que poderiam encerrar.

VIII

Que caracterizou o ano de 1970? De nossa parte, sensível declínio nas atividades armadas e uma confusão no aspecto organizativo causados pelos golpes sofridos.

Além do número enorme de prisões, e em consequência, muitos setores e pessoas perderam-se da Organização, outros ficaram longo tempo desconectados.

A inexperiência no recebimento de golpes nesse nível e a falta de medidas de precaução quanto aos mesmos, dificultaram a reativação da luta.

O inimigo retomou a iniciativa, e a partir do alívio que consegui nas pressões econômicas, políticas e revolucionárias, além do número de informações que acumulou, as quais lhes proporcionaram um quadro do que éramos, quem éramos e o que queríamos, pode concentrar seus ataques de maneira eficiente no movimento armado.

Assim nossa atividade voltou-se para dois objetivos, a sobrevivência e a organização, num caráter essencialmente defensivo. Tais objetivos mostravam-se obsoletos e difíceis, devido às circunstâncias em que tínhamos de realizá-los.

Entramos em um círculo vicioso ao atingirmos determinada estabilidade (bastante relativa, logicamente), sofríamos novos golpes que impunham novas modificações em nossa estrutura e perspectivos, em círculos que pareciam repetir-se em períodos de intervalos bastante curtos.

Não conseguíamos obter um período mais longo em que uma estabilidade maior da Organização permitisse definição de tarefas e estruturas, e a retomada de um trabalho planejado.

Apesar destes fatos, lentamente íamos nos reestruturando, baseados nos núcleos antigos, nos setores recontatados e nas novas forças que vinham incorporar-se à luta.

Esta reestruturação permitiu que estabelecêssemos determinada estrutura no triângulo (Rio, São Paulo, Belo Horizonte) e pudéssemos terminar os preparativos em una área rural, o Pará, visando o desencadeamento de ações rurais que ofereciam a oportunidade de um salto de qualidade na situação que atravessávamos.

No entanto, a traição fez com que prestes a desencadearem-se as ações no campo, caísse Toledo, a figura de maior expressão de nossa Organização.

Se do ponto de vista organizativo, devido às experiências já acumuladas, sua queda não representou o mesmo que a de Marighella, é evidente que os planos tinham que sofrer alterações.

IX

Ao analisar a situação do movimento revolucionário, temos de entender algo básico sob pena de nossa análise perder muito de sua amplitude e eficácia.

Ou seja, se o processo que esmiuçamos e as tarefas e perspectivas que traçamos são os de nossa Organização, temos de compreender que de uma maneira ou de outra, variando as particularidades em função de suas características próprias, as dificuldades se apresentam em todas as organizações revolucionárias armadas.

A mudança na situação do movimento revolucionário não é algo que diga respeito, portanto, a uma só organização, nas ao conjunto de organizações.

É claro que a maneira como enfrentamos e resolvemos nossos problemas particulares muito ajudará (ou não, em função dos resultados obtidos), à situação como conjunto.

Mas ela por si só não resolverá o problema. A unidade e cooperação das forças revolucionárias continua, assim, na ordem do dia. É esta visão que devemos ter ao encaminhar as tarefas futuras.

* * * * *

A

Em linhas gerais, quais são as características da situação atual? Conseguiu a ditadura solucionar seus principais problemas, mostrou a luta armada seu desacerto como estratégia de libertação?

A ditadura, entre 1968-69 foi obrigada a tomar uma série de medidas para responder às dificuldades que enfrentava.

No aspecto político dissolveu o Congresso e cassou mandatos, debilitando a “oposição” e depurando a Arena, que começavam a demonstrar por demais incômodos. Realizou mudanças na sua equipe no poder. Estabeleceu a censura oficial e nomeou os governadores, ampliou a repressão e institucionalizou a tortura.

Seus objetivos visavam principalmente o movimento revolucionário. Procurava debilitá-lo e evitar sua união, mediante o terror intimidatório, com as aspirações mais amplas do povo. Isto porque este, as ver bloqueadas e reprimidas suas reivindicações, tendia a se identificar com as ações armadas nos seus desejos de protestos.

Obtendo êxito no combate ao movimento revolucionário, que se havia tornado em seu principal problema, a ditadura conseguiu as condições necessários para a formulação posta em prática de suas soluções no campo econômico, político e militar.

 Através do terror policial e dos golpes dados aos movimentos armados, conseguiu paralisar as formas pacíficas de protesto e neutralizar o apoio às ações armadas.

Não tivemos condições de canalizar de maneira profunda e organizada a insatisfação popular, e a massa vendo com receio os golpes por nós recebidos, não nos dá de forma decidida seu apoio ativo.

Se a ditadura sabe não poder trazer para seu lado o povo, procura neutralizá-los, tornar a luta uma disputa entre as organizações revolucionárias e forças repressivas, onde estas últimas devido ao seu número e potência de fogo, naturalmente sairiam vencedoras, mais cedo ou mais tarde.

No campo econômico-social, os principais problemas estruturais, a ditadura (enquanto instrumento de dominação de classe e imperialista), não pode resolver. A solução destes problemas tem como condição e consequência sua própria extinção.

Mediante uma série de medidas nos planos creditícios, fiscais e administrativos, entre outros, que possibilitaram um planejamento e definição de políticas setoriais, e uma injeção fabulosa de investimentos estrangeiros, vê-se hoje no Brasil o que o regime alardeia como o “milagre econômico” brasileiro.

As características principais deste desenvolvimento, quais são? A mais importante é que tal desenvolvimento capitalista é condicionado por uma profunda penetração e dominação imperialista.

O controle por este exercido, vai se fortificando e alastrando por todos os setores da economia. A oligarquia nacional participa como sócia menor, usufruindo da parcela do bolo e servindo de carcereira.

Buscam também atrair para seu lado camadas de classe média, tanto nas cidades, onde incentivam o crescimento de uma camada de funcionários e técnicos visando ampliar o mercado interno, como no campo, onde tendo o mesmo objetivo atraem e auxiliam pequenos e médios produtores na ampliação e modernização da produção visando seu controle.

Nunca, como agora, foi tão grande a espoliação de nosso país pelo imperialismo e a exploração do povo visando a aferição de ganhos fabulosos pela grande burguesia e os senhores de terra.  A distribuição de riquezas do país mantém-se inalterada.

Em tal quadro alguém deve pegar esses privilégios. É a maioria do povo trabalhador, explorado e obrigado a formar com seu suor, o bolo a ser dividido pelo imperialismo, a oligarquia e seus asseclas menores.

Os operários têm seus salários reais diminuídos constantemente (os produtos a serem exportados, por exemplo, devem sair da mão de obra baratíssima, para poderem competir com as vantagens industriais e políticas que usufruem os monopólios internacionais concorrentes).

O número de desempregados é alarmante. A miséria é hoje tão comum e intensa nas cidades que nos ameaça de insensibilidade. No campo, a filosofia que orienta o regime, significa um número crescente de camponeses sem trabalho, sem terra.

Os quadros que por vezes transbordam o cinturão da censura e do desconhecimento, como os apresentados na seca, não são produtos de conjunturas climáticas ou econômicas, mas sim frutos permanentes de uma exploração desumana, expressões de um regime de propriedades e relações de produção caducos.

Assim, não podendo resolver os problemas estruturais de nossa sociedade, procura a ditadura encontrar soluções para que o imperialismo, a grande burguesia e os senhores de terras mantenham seus privilégios, de um lado, e de outro, que o povo participe com a sua cota (o trabalho e a exploração) para tal.

Desencadeou também uma imensa campanha publicitária, apoiando-se na vitória do campeonato mundial de futebol. A difusão de slogans “patriotas” importados da matriz é intensa. O aspecto “nacionalista” é demonstrado com uma série de medidas (as 200 milhas marítimas, entre outras). Sua “face humana” é visível por sua “preocupação” com a miséria do Nordeste e o abandono da Amazônia, sendo a solução encontrada a construção da Transamazônica, que transferirá a miséria e facilitará a exploração dos minérios da Amazônia pelas companhias estrangeiras (agora já estão realizando o levantamento aerofotogramétrico da região, a fim de melhor localizarem “nossas riquezas”). Os projetos de impactos, que em nada melhorarão as condições do povo, são evidências da “atenção do presidente” para com as classes trabalhadoras.

Seu objetivo aí também está claro, busca ganhar a neutralização e o apoio de parcelas da classe média, fundamentalmente. E, na verdade, não podemos dizer que não obteve êxitos.

Limpo o terreno político tradicional, bem definidas as regras do jogo, permitem a realização de eleições parlamentares. Apesar do alto número de abstenções, votos nulos e brancos, e da votação obtida pela “oposição” em alguns grandes centros urbanos, considera-se a ditadura vitoriosa nas urnas. A “vitória” do partido do governo (tão esmagadora que se sente preocupado com a sobrevivência da “oposição”), demonstra o “apoio popular” de que desfruta.

Outras medidas de “descompressão” no setor político estão condicionadas à evolução da situação e ao comportamento dos partidos oficiais.

No plano militar, que objetivos pretende? A ditadura tem consciência de que lhe é impossível exterminar o movimento armado nas cidades. Procura, entretanto, com golpes seguidos dados a este, mantê-lo em um nível para sua estrutura político-militar. Que não se torne uma real ameaça, canalizando e organizando o descontentamento e protesto popular.

Seu segundo grande objetivo é que tais golpes nos impeçam de levar a luta no campo, realizar a guerrilha rural, que integrará uma força potencialmente explosiva e esquecida no processo, о camponês.

B

Nesta situação, nosso objetivo geral é a retomada da iniciativa. Desenvolver tal atividade, que os passos dados na guerra e às medidas tomadas pela ditadura sejam condicionados pelo alcance de nossas perspectivas. E estas quais são?

“Em nossa maneira de pensar, a revolução no Brasil é a guerra revolucionária, em cujo centro se encontra a luta de guerrilhas. A tarefa estratégica fundamental da guerrilha brasileira é a libertação do Brasil, com a expulsão do imperialismo dos Estados Unidos. Falando em termos de guerra, essa tarefa estratégica fundamental consiste em aniquilar as forças do inimigo, compreendendo-se como tal não só as forças militares do imperialismo dos Estados Unidos, como as forças militares convencionais dos ‘gorilas’ brasileiros. […] A luta de guerrilhas não se desenvolve jamais de um só jato, isto é, desde quando se inicia até quando termina, com a vitória ou o fracasso. Pensar que isto pudesse ser assim significaria considerar a guerrilha como uma luta improvisada e arbitrária e não como uma luta de classes que se desenvolve segundo as leis da guerra. Ainda que seja um prolongamento da política, a guerra tem suas leis específicas. Quando estamos em guerra, devemos saber que sua lei básica é a preservação de nossas próprias forças e o aniquilamento das forças do inimigo. Nenhuma destas duas coisas pode se obter de uma só vez, e é obrigatoriamente necessário passar por um certo número de fases para atingir os objetivos previstos.” (Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil, outubro de 1967)

Continua Marighella, desenvolvendo as relações a características das fases de uma guerra, e as condições de passagem de uma fase a outra. Depois:

“Assim, na luta guerrilheira no Brasil distinguem-se três fases fundamentais.

A primeira é a do planejamento e preparação da guerrilha. A segunda é a do lançamento e sobrevivência da guerrilha. A terceira é a do crescimento da guerrilha e sua transformação em guerra de manobras.

O tempo de duração de todas ou de cada uma dessas fases não importa, como ensina a história, pois os povos que lutam pela libertação jamais se preocupam com o tempo de duração de sua luta.” (Idem)

Discorrendo sobre a primeira fase, coloca como requisitos básicos, “a existência de um pequeno núcleo de combatentes, surgido em condições histórico-sociais determinadas. Esse requisito constitui uma regra geral. […] Não se deve, entretanto, empreender a guerrilha sem um plano estratégico e tático global, com base na realidade objetiva. Tal plano é necessário para que a guerrilha não venha a ser uma iniciativa isolada, desligada dos grandes objetivos patrióticos perseguidos por nosso povo, e sem a imprescindível visão do processo de aniquilamento das forças do inimigo.” (Idem)

Termina dizendo que são necessários ainda a preparação e a adestramento da guerrilha.

Após a primeira fase viria a segunda, “a do lançamento e sobrevivência da guerrilha, e se destina a converter uma situação política em situação militar. Com esta segunda fase, as tarefas políticas convencionais propostas pelos direitistas, como sejam eleições, ‘frente ampla’, luta pacífica, etc., caem no descrédito público. Surgem métodos de luta revolucionários e de apoio à guerrilha, com a finalidade de aniquilar as forças do inimigo. Esta mudança é muito violenta e produz um impacto em todos os setores da luta.” (Idem)

Ao final de 1969, a área urbana especialmente o triângulo, estava conflagrada e preparávamo-nos para o início das ações no campo. O impacto de que falava Marighella era notório, pois a repressão inimiga havia atingido, desarticulado e praticamente anulado as mais variadas formas de organização e protestos pacíficas. A ação de pequenos grupos de homens amados transformara-se na forma principal de luta contra a ditadura.

A situação atual é diferente? A resposta só pode ser não. O regime intensifica barbaramente a repressão e qualquer veleidade de protesto pacífico a legal sofre as suas consequências, apesar das esperanças de “descompressão” que, em doses de conta-gotas e periodicamente, exprime.

O dado mais importante do momento presente é nossa incapacidade de responder, no mesmo nível, à atuação inimiga. Os golpes que recebemos non impediram de passar à outra fase da luta e nos obrigaram a diminuir o ritmo e intensidade das ações revolucionárias.

Mas, apesar destas mudanças ocorridas na situação, para nós continuam válidas estas premissas expressadas por Marighella.

Portanto, como perspectiva estratégica estamos na fase de planejamento e preparação da guerrilha, e a atuação da Organização deve ser condicionada por tal objetivo.

Nesta fase, nossa atividade deve ser intensificar a luta urbana, estabelecer os eixos guerrilheiros e preparar as áreas de atuação, assim como, o selecionamento e treinamento dos combatentes.

C

A guerrilha urbana está destinada a jogar um importantíssimo papel em nossa luta de libertação. O número de concentrações urbanas de consideração cresce dia a dia, devido a uma constante e crescente êxodo rural. Logo, os revolucionários devem ter o máximo carinho e dar a devida importância no desenvolvimento e intensificação da guerrilha urbana.

Marighella já definiu qual o seu papel enquanto complemento na guerrilha rural. Nosso objetivo é abalar o poder econômico, político e militar do inimigo, que se concentra nas cidades e particularmente no triângulo (Rio – São Paulo – Belo Horizonte) de sustentação da burguesia.

Desorganizar suas comunicações, aumentar gradativamente os distúrbios na área urbana, a fim de que as tropas do regime não possam deixar sem preocupações as cidades. Intensificar a agitação e a intranquilidade social, com o fim de enfraquecer a ditadura. Ter a própria luta como escola de preparação de combatentes.

Os três anos que acumulamos de guerra nos podem transmitir ricas e importantes experiências. O balanço em nossos erros e acertos e na atuação inimiga nos devem servir de ponto de partida para o desenvolvimento do trabalho.

É fundamental aplicar o planejamento como método de trabalho, a todos os níveis e em todas as questões. Planejamento, execução e controle.

Tal é o caminho que necessita seguir nossa ação. O planejar significa definir os objetivos de um setor, dar um balanço nos recursos que ele dispõe e a partir daí estipular metas a alcançar. O controle deve ser aplicado periodicamente, com o fim de dar um balanço, de maneira que possamos ver o que alcançamos, onde erramos e realizar as necessárias mudanças.

Em uma guerra revolucionária a situação evolui permanentemente e, portanto, não podemos ser rígidos e inflexíveis nos objetivos e prazos traçados. Deve-se ter muito cuidado na avaliação das forças de que dispomos, para não traçarmos metas impossíveis de cumprir, ou que mesmo ao alcançá-las signifique prejuízo e abandono de outros setores ou graves infrações de segurança.

Porém, tais coisas não devem impedir ou desestimular o emprego, no limite máximo de tensão de nossas forças, assim como a aplicação do planejamento-execução-controle procurando harmonizar e conjugar no possível, a atuação de toda a Organização.

O planejamento das perspectivas a desenvolver precisa ser realizado em todos os escalões e todos os companheiros, em seu nível, devem dele participar.

Nenhuma guerra, portanto também a luta urbana, pode ser eficazmente travada sem a montagem de uma infraestrutura sólida, profunda a extensa, que abranja a todos os setores possíveis. Ela deve estar intimamente ligada aos grupos de ação, e ser como eles fragmentária. Não pode constituir um corpo único, para dificultar a atuação inimiga e impedir golpes fatais.

Em sua constituição jogam papel importante, o dinheiro, a motorização, armas e munições. Devemos trabalhar incansavelmente para solucionar o problema médico, cuja falta ou inconsistência já nos trouxe sérios prejuízos.   

A informação pode ter um destacado papel em nossa atividade. Ela foi muito subestimada anteriormente. Devemos organizar o seu recolhimento, seleção e análise. Tal sistemática permitirá uma atuação mais segura e diversificada de nossa parte.

A documentação é algo vital na guerrilha urbana, principalmente para os guerrilheiros procurados pela repressão. Ela precisa ser constantemente desenvolvida e aprimorada, visando penetrar nos mais variados setores e garantir nossa segurança.

A imprensa é algo fundamental para o complemento da agitação e propaganda guerrilheiras, explicando à população quais são nossos objetivos e como deve organizar-se. É importante também, para a publicação do material destinado ao aprimoramento da consciência e da capacidade política-ideológica do combatente.

Locais onde possamos fabricar e consertar armas, preparar explosivos e granadas, são decisivos para o aumento de nossa potência de fogo. Os aparelhes que servem de depósito, de esconderijo para o procurado e de cárcere para o sequestrado são a espinha dorsal da infraestrutura guerrilheira. A montagem dessa estrutura deve ser prioritária no setor urbano, para ela.

Em um tipo de luta como a que travamos, a superioridade inimiga no tocante a armamento é constante. Porém, ainda assim, nossa potência de fogo é muito pouca, pequena até para lográramos na maioria dos casos uma superioridade tática, e que nos restringe muito em nossa capacidade combativa. Aumentar o efetivo e potência de nossas armas é tarefa urgente, e necessitamos recorrer à sua compra, fabricação ou expropriação. O explosivo deve ser integrado a ela, na forma de bombas, granadas e coquetéis molotov.

A formação do guerrilheiro urbano necessita ser constantemente aprimorada. E ela possuí estes aspectos principais: 

Um, a formação política. Para melhor combater o inimigo, é o que primeiro distingue um e outro lado, o guerrilheiro precisa aprofundar incessantemente seu conhecimento sobre o porquê da luta, seus objetivos e métodos. Fortalecer a decisão de luta é condição básica para o choque com a repressão, além de propiciar ao combatente melhores condições para desenvolver sua atividade de organização, forjando uma mentalidade crítica para constantemente corrigir seu trabalho. É preciso estimular o estudo sob dois ângulos básicos: um que seja amplo, abrangendo estudo de nossa história, a estruturação da sociedade brasileira, as experiências do movimento revolucionário mundial, etc. A base de tal estudo deve ser o marxismo-leninismo, cujo conhecimento e leitura é prioritário, assim como os de Marighella. O segundo, que o estudo seja planejado e orientado, ou seus resultados serão muito dispersos. O grupo revolucionário deve constituir a base para a leitura e o debate organizados.

O segundo aspecto é a formação técnica. Sua importância é exaustivamente desenvolvida no Minimanual. Não bastam as armas, mas é preciso que o combatente domine com segurança o funcionamento das mais diversas armas e aperfeiçoe constantemente a pontaria. O tiro é a razão de ser do guerrilheiro urbano. É verdade que não dispomos de grande variedade de armas. No entanto, a preocupação de, nas frentes guerrilheiras, todos conhecerem as armas que possuem, saber desarmar, armar e dispará-las, não é muito grande. Tal subestimação precisa ser sanada. É preciso também haver uma maior divulgação e conhecimento de explosivo, cuja correta utilização torna-se uma arma terrível em nossas mãos.

A análise dos métodos de organização e formas de luta empregados nestes três anos é muito importante. Devemos procurar tornar uma constante o balanço de cada ação, realizada pelo grupo que a praticou, de cada volume maior de ações, pelo conjunto de combatentes. Insere-se aí também a divulgação, debate e estabelecimentos de normas quanto às mais variadas atividades; como cobrir pontos, segurança de aparelhos, sinais, sentes, etc.

Todo este conjunto de medidas coordena/separa uma penetração política maior da nossa parte. A situação de movimentos de massas estagnados, sem orientação clara e de pouca combatividade não nos deve surpreender. A mudança de qualidade na luta, causa, como escreveu Marighella, “um impacto em todos os setores em luta”. Ao não estar preparado para a mudança violenta que ocorreu, o movimento de massas sofreu um natural retrocesso.

É preciso compreender este fenômeno para entender sua situação hoje e poder levar uma política acertada para seu meio, nas perspectivas de organização e luta que o devem orientar. Caso contrário ele continuará em estagnação ou sofrerá sérias e contínuas derrotas.

“A frente de massas exige a organização de grupos revolucionários nos locais de trabalho e de estudo, na cidade e na área rural. Ao lado disto, é preciso dar à frente de massas uma potência de fogo razoável. As ações do movimento de massas devem ser ações armadas, e uma infraestrutura idêntica à da frente guerrilheira deve ser montada na frente urbana de massas.” (Questões de Organização, dezembro de 1968) 

Com as modificações de organização que a experiência nos impõe, o conceito de que as ações de massas têm que ser de caráter armado, baseado em uma infraestrutura guerrilheira, é hoje mais verdadeiro que nunca. As formas específicas de sua realização dever sair das necessidades e realidades concretas. Seu conceito geral de aplicação é a propaganda armada.

Apesar disto não negamos que outros tipos de trabalho, como a atuação em órgãos legais, mesmo os criados pela ditadura podem ser utilizados, em dependência da situação do setor e de nossos objetivos locais. O que deve estar claro é seu limitado alcance e que não é esta nossa principal atividade, através da qual pretendemos mobilizar e organizar o povo contra o regime.

“A rebelião do guerrilheiro urbano e sua persistência em interceder nas questões populares constituem a melhor maneira de assegurar o apoio do povo à causa que defendemos.” (Minimanual, junho de 1969).

Um aspecto da questão é que devemos concentrar esforços de organização na classe operária, objetivamente subestimada até agora, devido, por um lado a seu baixo nível de atuação e penetração das ideias revolucionárias, e do outro, à combatividade demonstrada por setores da classe média.

No entanto hoje, com o nível alcançado pela repressão e os golpes por nós recebidos, na classe média tende a ganhar corpo o aspecto negativo e a vacilação, apenar dos setores que temos condições de ganhar decisivamente para a revolução.

Nos ressentimos, portanto, de uma maior base nas camadas populares, cujo papel decisivo é claro em nossa guerra de libertação.

Tal conjunto de atividades, a guerrilha urbana, deve ser intensificada, paulatinamente e em correspondência ao nível de estrutura que criarmos, e levada a outros pontos do país, nos quais seja nula ou muito pequena nossa influência.

Ela deve expressar o protesto popular nas áreas urbanas, organizando-o e aguçando a luta de classes, assim como, servir de suporte (municiadora de recursos) ao trabalho no campo de preparação da luta rural.

D

Toda nossa estratégia é condicionada por uma necessidade: a formação do Exército Revolucionário de Libertação Nacional. E, por isto, o desencadeamento da luta armada no campo constitui o nosso principal objetivo. Os reveses sofridos, dificultaram e impediram sua concretização, mas permanece como tarefa prioritária.

A guerrilha rural é decisiva no plano político em função da integração da massa camponesa em nosso processo de luta. Nenhuma revolução verdadeira poderá se realizar e manter-se no Brasil se não contar com a participação dos camponeses.

No plano militar para a criação de um exército, no âmbito de uma guerra revolucionária integrada a uma luta de classes, onde devemos contar com nossas próprias forças a partir do combate com o inimigo através de um pequeno grupo de homens, só é possível no campo. Já, fora do cerco estratégico do inimigo, contamos com a imensidão de nosso território para, passo a passo, sairmos de uma situação de inferioridade, onde contamos com poucos efetivos e poucas armas, para uma situação de superioridade, com a junção da luta rural (através do Exército Revolucionário) e da guerrilha urbana (através de um número imenso de pequenos grupos de ação).

Por isto nossa guerra revolucionária será uma guerra de movimento, não defenderemos territórios, nem bases fixas. Em contante marcha, impediremos que o inimigo possa concentrar efetivos em número suficiente para nosso cerco de aniquilamento.      

Ao formarmos o Exército Revolucionário, a guerra assumirá o caráter de guerra de manobras. Será a última fase, para a derrubada da ditadura e a instauração do Governo Revolucionário Popular.

Porém, para trilhar todo este longo caminho, é necessário dar o primeiro passo. E este é o lançamento da guerrilha rural. Em seu início, o que nos interessa é realizar a propaganda armada, intensificar ao máximo os distúrbios sociais no campo. Para isso, necessitamos conhecer e ter em conta os problemas da massa camponesa, praticar as ações respeitando seus interesses fundamentais.

“As plantações de fazendeiros devem ser queimadas, o gado dos grandes pecuaristas e dos frigoríficos e das invernadas devem ser expropriado e abatido para matar a fome dos camponeses, a parte restante deve ser dispersada pelas áreas guerrilheiras a fim de que o guerrilheiro rural encontre carne para comer. Os grileiros e os norte-americanos proprietários de terra devem ser tocaiados e mortos e bem assim os capangas dos fazendeiros. O mesmo castigo deverá ser imposto aos administradores, feitores e capatazes que perseguem os camponeses e destroem suas benfeitorias. Os latifundiários que exigem prestação de serviços gratuitos dos seus trabalhadores devem ser sequestrados e seus bens expropriados; os armazéns, os barracões onde são comprados gêneros a troco de vale devem ser saqueados; os cárceres privados em que os fazendeiros mantêm segregados os trabalhadores rurais devem ser destruídos, o mesmo deve acontecer com as cadeias públicas onde os camponeses estão presos; os arquivos das coletorias devem ser incendiados e bem assim as letras, as promissórias rurais e os demais papéis destinados à cobrança de dívidas e impostos dos camponeses; deve ser arrancado o capim onde os latifundiários ameaçam substituir por pastagem a lavoura dos camponeses. É preciso reprimir os despejos na bala, invadir as terras devolutas e as terras loteadas pelos fazendeiros e grandes companhias agrícolas.” (Alocução sobre a Guerrilha Rural, outubro de 1969).

Em meio a esta rebelião social, a guerrilha rural surge e cresce, originando uma mudança em nossa luta de libertação. O inimigo tem consciência clara de seu papel estratégico na guerra revolucionária brasileira. E assim, sua maior preocupação em evitar seu desencadeamento enquanto apregoa e demonstra sua inviabilidade.

Ao mesmo tempo, procura aceleradamente preparar segundo suas conveniências o cenário da luta. Constrói estradas, dispersa informantes por vastas áreas, adestra na luta anti-guerrilheira suas tropas, melhora a comunicação, moderniza o armamento, reconhece terreno, realiza a ACISO (Ação Cívica Social, atividade assistencial temporária praticada pelo Exército em áreas rurais), aperfeiçoa o controle sobre as áreas de tradicional tensão social, etc.

A importância da guerrilha rural é o eixo de nossa estratégia. Entretanto, apesar de todos concordarem com o seu papel, teoricamente, quando voltam-se para a atividade prática muitos companheiros tendem objetivamente a subestimá-la. Absorvem-se completamente em sua atuação na guerrilha urbana e nunca consideram suficientes os esforços e recursos para esta última desviados.

A luta no campo deve ser iniciada como consequência de um nível razoável alcançado nas cidades pela guerrilha. Nisto estamos todos claros. Mas, tal coisa não pode ser encarada, e concretamente muitas vezes o é, reconheçam ou não alguns companheiros, como organizar e intensificar as ações na área urbana para então nos dedicarmos ao campo.

Ao encararmos o processo revolucionário, devemos nos esforçar para apanhá-lo como um todo, e não analisá-lo e encerrá-lo simplesmente em nosso setor de atuação.

A guerra precisa ser levada a todos os pontos do país, urbanos e rurais. Obedecendo a critérios e progressivamente, é verdade, mas firme e decididamente. Tal coisa nos obriga a esforços gigantescos, a travar combates em várias frentes simultaneamente.

Portanto, o papel decisivo da guerrilha rural não pode ser uma constatação unicamente. A guerrilha rural não é algo que surge espontaneamente, ela exige planejamento e preparação. É preciso organizar os eixos guerrilheiros, reconhecer e selecionar áreas, adestrar os combatentes. Preparar as comunicações, os serviços médicos e o abastecimento. Tais tarefas são dispendiosas, difíceis, absorventes e demoradas. Para ela devem convergir nossos maiores recursos e os melhores quadros. Sem pressa, mas decididos, é nosso dever tornar tal atividade o eixo e a real razão de ser da Organização.

E

A concretização de nossos objetivos, a libertação do Brasil da dominação imperialista e da exploração da oligarquia nativa, tem ainda como fator básico a unidade dos revolucionários.

Na história da esquerda brasileira, sua unidade tem sido difícil e sempre efêmera. Quando houve, baseava-se em situações concretas que, ao deixarem de existir, levaram como consequências ao fim da atuação conjunta.

As origens de tais fatos se devem à maneira como desenvolveu-se o progresso brasileiro: às origens de classe dos partidos e organizações criadas, às suas perspectivas; ao sectarismo, desconfiança que dominaram e envenenaram as relações entre os revolucionários.

O desencadeamento das ações armadas constitui um acontecimento que permite uma virada em tal situação. O entendimento deixa de situar-se em um plano meramente formal e teórico conduzido por cúpulas burocráticas. Ele torna-se dinâmico, vivo, a prática das ações permite e exige uma participação comum.

Entretanto, em virtude das desconfianças passadas, a unidade avança vagarosamente e ainda é muito débil. Permitimos que questões secundárias e oportunismos de caráter organizativo influam, dificultando a solidariedade fraternal que deveria existir, no mais alto grau, entre nós.

O inimigo tem claro o problema da unidade, ao mesmo tempo em que forja e zela pela sua, alegra-se com nossas diferenças e procura aprofundá-las, dentro da máxima “dividir para vencer”.

Nós não queremos a unidade das forças revolucionárias por capricho. Ela, levando a uma atuação político-militar conjunta, reduz as condições e possibilidades do inimigo de nos golpear e aumenta, por outro lado, nossa capacidade de atingi-lo com maior Intensidade, volume e eficácia.

Permite também atenuar o desconhecimento e confusão da massa quanto a nossos objetivos, que é resultado do enorme número de organizações e partidos com diferentes práticas e orientações.

Portanto, a formação da Frente Revolucionária Brasileira é uma de nossas metas. Mas não a vemos como algo estático, fruto unicamente de discussões e acordos, e sim como resultado de um processo em que jogam papel determinante a atuação político-militar em comum dos revolucionários.

Para tal atuação estamos abertos, e ela queremos concretizar em qualquer nível, desde a simples troca de informações, passando por auxílios fraternais quando de dificuldades, até a realização de ações conjuntas em níveis e perspectivas cada vez mais amplas. As condições para isto são que estas relações se desenvolvam em um ambiente de honestidade, confiança e fraternidade, e que tenham como objetivo comum a derrubada da ditadura, a expulsão do imperialismo e o estabelecimento de um governo revolucionário popular.

Marighella não tinha como objetivo, com nossa organização, ser a vanguarda da revolução brasileira. O que pretendia era que desencadeássemos e estendêssemos no limite de nossa capacidade as ações armadas. Tinha consciência, e expôs claramente que a vanguarda de nossa revolução se estava forjando com os combatentes de todas as organizações e que tal vanguarda se cristalizaria na guerrilha rural, no Exército Revolucionária de Libertação Nacional.

F

A guerra revolucionária no Brasil não se desenvolve isoladamente. Ela está integrada em um panorama internacional que é condicionado por relações de classe cada vez mais agudas.

Como parte integrante de uma luta entre dois sistemas econômico-sociais antagônicos, capitalismo e socialismo, nossa revolução influi e é influenciada pelos acontecimentos que se desenvolvem em todo o mundo. Dentro de suas peculiaridades, travam uma luta comum com os povos da Ásia, África e América Latina contra a dominação imperialista e a exploração oligárquica, pela libertação nacional. Sua luta não pode ser dissociada igualmente da realizada pelos trabalhadores europeus diretamente contra a exploração capitalista pela paz e a justiça.

Na América Latina, insere-se em um ambiente em efervescência, onde os métodos de luta contra a dominação do imperialismo norte-americano assumem formas das mais diversas e interessantes. Assim, não nos devem surpreender as repercussões que, em todo o mundo, alcançam nossas ações, assim como as manifestações de apoio e ajuda que recebemos. Elas nos encorajam e sensibilizam.

Nossa política é contatar e manter relações com os que, em qualquer parte, mostram-se interessados e inclinados a divulgar e auxiliar nossa luta. Nestas relações devemos respeitar a independência de ação e não nos intrometermos na política que, em seu país, desenvolve este grupo, organização, partido ou governo. Tal reciprocidade em pensamento e ação é o necessário para o estabelecimento, manutenção e desenvolvimento de fraternais relações de solidariedade.

Devido às características próprias de nossa luta, um grande número de elementos encontre-se no exterior. Muitos para lá se dirigiram antes mesmo do início e intensificação das ações armadas, outros o fizeram quando do endurecimento da repressão, alguns saíram para cumprir tarefas da Organização, há muitos companheiros libertados em sequestros, etc.

Tal diversidade ocasionou muita confusão. Alguns elementos oportunistas (que combinam, como regra geral, também a covardia), procuraram ter uma atividade não de divulgação e auxílio à luta guerrilheira no Brasil, mas de promoção pessoal. Outros, mesmo sinceros e decididos, devido ao distanciamento no tempo е no espaço tiveram iniciativas contraproducentes. Tendeu-se muitas vezes a considerar a frente externa mais importante que a interna.

Para a Organização não é fácil a orientação permanente a seus militantes no exterior. Assim, estes devem ter muita discrição em suas atividades. Ninguém, no exterior, pode ser recrutado para a Organização. Pode trabalhar para e em conjunto com ela, mas a opção é concretizada aqui, na guerra. Não temos embaixadores, elementos com poderes absolutos para desenvolver e decidirem qualquer coisa. Cada combatente no exterior deve estar cumprindo uma tarefa, por tempo determinado, e integrado em um trabalho conjunto.

E este trabalho tem que estar subordinado às necessidades e a orientação da Organização no Brasil. Quando desenvolvido em frente com outra organização, deve corresponder à atuação em conjunto no Brasil. Não trabalhamos com quem não atue no país ou que aqui não tenhamos contato.

OU FICAR A PÁTRIA LIVRE OU MORRER PELO BRASIL!

Junho de 1971 – ALN   

Iara e Iuri Xavier Pereira, ambos irmãos de Alex de Paula Xavier e filhos dos comunistas João Batista e Zilda Xavier Pereira, antigos militantes do PCB que que acompanharam com Marighella e fundaram a ALN no estado da Guanabara.

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