Osvaldo Bayer*
“Viver em monotonia as horas mofadas dos medíocres, dos resignados, dos acomodados, das conveniências, não é viver, é somente vegetar e se mover na forma ambulante de um monte de carne e de ossos. À vida é necessário brindá-la com a sublime elevação do braço e da mente.”
Severino Di Giovanni, 10 de janeiro de 1929
O embaixador italiano em Buenos Aires, Luigi Aldrovandi Marescotti, Conde de Viano, espera na própria escadaria do Teatro Colón o presidente da Nação. Soam aplausos. Aí vem Don Marcelo T. de Alvear acompanhado por Dona Regina Pacini. Atrás dele, os ministros do Interior, das Relações Exteriores e de Instrução Pública.
É evidente que o resultado será uma grande festa. A comunidade italiana resolveu festejar com toda ostentação o 25º aniversário da chegada ao trono de Victor Emanuel III. O ponto culminante será a grande tarde artística no Teatro Colón na noite de sábado, de 6 de junho de 1925.
Essa festa será um teste para o embaixador italiano. Primeiro, porque se sabe que o próprio Mussolini tem grande interesse nas repercussões sobre seu regime na comunidade italiana na Argentina, e segundo, porque precisa demonstrar poder e eficácia diante dos outros embaixadores que andam com desconfianças em relação ao fascismo.
O certo é que nessa noite o Colón parece estar na própria Roma. Tudo está magnificamente organizado e com a ostentação própria dos atos fascistas. Qualquer tentativa de desordem será imediatamente reprimida pela juventude camisas-negras [1] da comunidade. A delegação do Fascio cuidou bem desse detalhe.
O público brilha com suas melhores roupas. As damas italianas da endinheirada burguesia colocaram seu melhor nessa festa que é o encerramento de todo um dia de atos. Fala-se de forma engomada e se admira os uniformes com muitos adornos, especialmente de diplomatas e militares. Os bersaglieri [2] fazem suspirar algumas damas quarentonas.
Ao ingressar ao palco presidencial, Alvear é recebido com uma salva de entusiasmados aplausos. Os jovens camisas-negras, distribuídos estrategicamente, observam que tudo está tranquilo. É uma verdadeira festa dos bons filhos da Itália.
Imediatamente, a banda municipal inicia a execução do Hino Nacional. Todo mundo de pé, com unção e circunspecção. A música passa a cair como um bálsamo que acalma o nervosismo próprio dos grandes acontecimentos. Terminada a canção pátria, aplausos respeitosos. Mas logo começa a marcha real italiana. Agora sim, todo o temperamento meridional desborda. Lágrimas nos olhos. O sangue arde nas veias de todos esses homens reunidos a tanta distância da Pátria. Aqueles sons! A orquestra está mais afinada do que nunca. Escutam-se as vozes roucas. Todos cantam. A Itália vive uma época nova, renasceu. A Itália volta a ser Roma.
Mas parece que existe alguém que quer tornar amarga a noite dessa gente tão entusiasmada. Da plateia se começa a perceber um murmúrio que vai descendo desde o paraíso [3]. O embaixador segue cantando. Não, não pode ser, mas é. O embaixador desperta como de uma sacudida quando no meio das vozes, acredita escutar claramente:
— Assassinos! Ladrões! Matteotti! [4]
Mas o embaixador ainda não está inteiramente convencido. Não, não pode ser. Sim, desgraçadamente, sim. Na frente do nariz de Luigi Aldrovandi Marescotti, Conde de Viano, passam centenas de panfletos como uma chuva de papel picado. Agora se escutam claramente os gritos:
— Ladrão! Assassino! Viva a Matteotti!
Toda a sala se levanta e olha para cima. Seguem caindo panfletos. A orquestra continua tocando, mas ninguém mais presta atenção.
Agora os gritos de “Assassino!” e “Viva a Matteotti!” dominam. Uma luta começa no paraíso.
A desordem surgiu da primeira fila do paraíso. Ainda no início da marcha real italiana, começam com os gritos e a jogar panfletos para plateia. Os jovens camisas negras não reagem com a prontidão prevista, precisamente porque não esperavam um ataque assim. Apenas quando despertam de sua surpresa, se lançam com uma santa indignação contra os rebeldes.
Porém, estes tipos se defendem bem. A situação se generaliza, as filas próximas do paraíso ficam vazias, as mulheres gritam e os homens fogem. Soco vem e soco vai. Começam aparecer porretes trazidos de um canto pelos garotos do Fascio. Mas os indóceis parecem ter a cabeça muito dura. Particularmente, tem um loiro que se defende como um leão. Pega um panfleto e com um vozeirão que chega até a plateia e grita:
— Santificados da Casa de Saboia, vocês se esqueceram que sob o reinado de Victor Emmanuel III, pela graça e pela vontade… de alguns (…).
Nesse momento um camisa negra o pega pelo pescoço e o arrastra sobre as poltronas. Mas esse jovem loiro com casaco preto tem a força de uma besta. Com alguns golpes ele derruba aqueles que tentam lhe dar socos e chutar, fica na primeira fila e continua:
— (…) que o Rei da Itália, subiu se alimentando com o sangue derramado pela quadrilha de bandidos, os chamados fascistas (…) com todos os seus Dumini, Filipelli, Rossi, e Vecchi, Regazzi, Farinacci (…) e se encontrou em Benito Mussolini (…).
A luta segue sem quartel. Um grupo de homens se golpeiam e se estapeiam no chão. Os revoltosos se defendem com unhas e dentes, mas cada vez vão chegando mais reforços para os camisas negras.
Os homens que estavam nos setores da cazuela e na tertúlia se sentem no dever de subir e colocar ordem nas galerias do paraíso. Jovens e velhos, alguns com porretes, sobem as escadas longas para dar aos arruaceiros o devido tratamento.
Os bombeiros e a polícia também intervêm. A orquestra tenta continuar, mas seus sons são um pouco menos marciais que no começo.
Alguns dos revoltosos vão sendo controlados. Entre dez ou doze braços, punhos e bastões caem sobre as cabeças dos rebeldes. Mas o jovem loiro vestido de negro segue de pé e de uma das poltronas ele continua com seu, várias vezes interrompido, discurso:
— (…) em Benito Mussolini a representação mais precisa e perfeita de toda a infâmia. Os glorificadores da monarquia que apunhalam pela adaga de Dumini, escrevem isso na história da Casa de Saboia este nome glorioso: Matteotti! [5]
Simplesmente não dá mais. Braços fortes agarram o jovem rebelde pelo pescoço enquanto um camisa-negra lhe dá alguns socos no olho esquerdo. Quando é arrastado pelo corredor, ainda grita:
— Lembre-se dos 700 assassinatos em 1898 pelos canhões de Umberto il Buono!
Todos queriam golpeá-lo, senhores elegantes com rostos decompostos de raiva e jovens com expressões do campo de batalha. Finalmente, os dez atrevidos são controlados e entregues aos bombeiros e policiais. Os concentram no hall de entrada e ali os algemam.
Quando o camburão chega eles são colocados em fila indiana e tem que seguir em frente cercados por uma multidão indignada. Antes de subir, o jovem loiro revoltado acerta uma cusparada certeira no rosto de um imponente militar italiano com um chapéu bersaglieri, enquanto grita:
— E viva a anarquia! [6]
Reconstruímos o episódio do Teatro Colón, com base nas publicações da época e depoimentos de testemunhas presenciais, para mostrar o clima que vivia a comunidade italiana da Argentina dessa época, profundamente dividida pelas ideias políticas e pela violência, e também para mostrar o ponto de partida da atuação de um jovem homem que durante pouco mais de cinco anos vai aparecer constantemente na crônica jornalística.
O resultado da desordem no Teatro Colón, para os homens da Ordem Social da Polícia, é o seguinte: dez detidos e, recolhidos no lugar “dois tacos de madeira, um bastão, dois chapéus pretos e um par de óculos com o aro direito torto e faltando a lente direita”.
Dos dez detidos, nove se negam a declarar que ideologia defendem e qualquer outro dado que o oficial sumariamente lhes pede.
Apenas um responde sem nenhum problema: o jovem loiro vestido de preto, que é o que mais apanhou de todos e apresenta um olho machucado. Suas declarações textuais são as seguintes: “Que foi até a homenagem ao Rei da Itália para distribuir mil panfletos em que trata de demostrar a influência funesta que tem exercido a Casa de Saboia e as fatais consequências que terão o governo do senhor Mussolini”.
Perguntado o que fez no interior do teatro, responde: “Que quando a banda tocava a marcha Real Italiana jogou pelos ares os panfletos, que caíram na plateia, e que então um sujeito que havia ordenado que se identificasse lhe aplicou um soco no seu olho esquerdo e outras pessoas o atacaram até que perdeu a consciência”.
Perguntado se conhece os outros nove detidos: Nazareno Tirabassi, Antonio De Marco, Dionisio Di Giustini, Carlos Marchese, Santiago Sabatino, Albino Carpinetti, José Romano, Agostino Del Medico e Domingo Coliberti, responde: “Que foi sozinho ao teatro, porém no paraíso se encontrou com outros antifascistas, mas ignora seus nomes.”
Perguntado de que ideologia é, responde: “Que fazem quatro anos que milita no anarquismo”.
Perguntado se propaga sua ideologia política, diz: “Propaga o anarquismo por meio de conferências ou artigos publicados nos jornais e revistas, especialmente criticando o atual governo italiano. Publicou notas no periódico anarquista ‘L’Avvenire’, órgão da comunidade anarquista italiana”.
Perguntado se acredita na violência como meio para mudar a sociedade, responde: “Que repudia todo ato que significa violência estando seu jeito de pensar mais próximo de Tolstoi que de Ravachol”. [7]
Perguntado se faz parte de alguma entidade sindical, diz: “Que não faz parte de nenhuma sociedade sindical porque é antiorganizacionista.”
Por último assinala que tem como profissão tipógrafo e que trabalha na imprensa de Polli, em Morón. Tão pouco tem inconveniente em dizer que mora na Rua Yatay, nº 1389, em Morón.
A polícia está um tanto confusa. Não está acostumada que um preso ideológico reconheça com tanta franqueza sua filiação política. Esse homem de 24 anos, de simpática presença e traços atraentes responde às perguntas com um tom de desafio, como se estivesse seguro de que em sua ideologia está a verdade.
Não tem problema em assinar sua declaração e faz com a letra firme: Severino Di Giovanni.
Ainda que a prisão de Severino Di Giovanni não tem como motivo um crime, mas uma briga entre compatriotas de uma comunidade estrangeira, os homens da Ordem Social já o catalogam como um temível agitador anarquista. É que nesse homem existe uma convicção e uma firmeza que não passa despercebida aos perspicazes olhos policiais.
Mesmo fazendo apenas dois anos de sua chegada da Itália, fala espanhol fluentemente e com pouco sotaque italiano. Havia nascido em Chieti, filho de Carmine Di Giovanni e de Rosaria Duranti, na região dos Abruzos, uns 189 quilômetros ao oeste de Roma, em 17 de março de 1901. “De sua a infância pouco se conhece – escreverá ‘L’Adunata dei Refrattari’, periódico anarquista da coletividade italiana nos Estados Unidos –, mas se sabe que desde pequeno foi inteligente, vivaz, rebelde contra a autoridade familiar, e que seus pais o enviaram por um certo tempo para um instituto de Ancona.”
Ele estudará para ser professor, mas não consegue o diploma. Mesmo assim irá exercer a profissão em uma vila de Abruzzo. Existem poucos professores na Itália; a guerra levou a vida de muitos homens e se deixa nas mãos dos jovens (pouco mais que adolescentes) as funções na vida civil deixadas pelos que morrem ou que vão para o front neste último ano da guerra.
Severino, nesse período, aprende em suas horas livres o ofício de tipógrafo. E lê, lê muito: Proudhon, Bakunin, Reclus, Kropotkin, Malatesta, Nietzsche, Stirner.
Da violência da guerra mundial vivida em sua adolescência, uma guerra triste e miserável em que os italianos são enfiados, passa-se ao período mais violento mesmo no período do pós-guerra, culminando com o advento do fascismo. Este é o momento em que acabam as garantias individuais. Tudo o que é oposição é varrido pelos squadristas [8]. Os antifascistas são humilhados ao ponto da exaustão: a prisão, o exílio, a perda do emprego, surras, torturas, quando não o assassinato. Galeazzo Ciano, o arrogante favorito de Mussolini, descreverá bem o ambiente desses anos com sua famosa frase: “Il popolo bisogna tenerlo inquadrato e in uniforme della mattina a la sera. E ci vuole bastone, bastone e bastone.” (“O povo precisa ser treinado durante todo o dia e deve estar fardado de manhã à noite. E é preciso bastão, bastão e bastão!”). Severino Di Giovanni, agora desempregado, deixa a Itália. Isto acontece em 1922. Ele já se casou com Teresa Masciulli, uma jovem simples que Severino sempre chamará de Teresinha. O casamento foi um pouco repentino. Ela, sua prima, estava encarregada de lhe trazer a comida. Uma noite, a menina não pôde voltar por causa de uma forte tempestade e teve que ficar com ele. O suficiente para que, de acordo com as leis não escritas da região, eles se casem para que Teresinha não fosse envergonhada. Ela era quatro anos mais velha que Severino. Os Di Giovanni eram três irmãos e duas irmãs. Severino viajaria para a América do Sul, Alejandro para a França e José e as duas mulheres permaneceriam em Villamagna.
Severino e Teresinha vão parar em São Paulo, Brasil, e lá, em Santana, onde vai trabalhar na colheita de milho. Nesse lugar, nascerá a primeira filha, Laura. Do Brasil retornarão à Itália onde empreenderão a viagem final à Argentina.
Em maio de 1923, Di Giovanni, sua esposa e a filha Laura chegaram a bordo do vapor Sofía no porto de Buenos Aires. Eles foram morar em Ituzaingó. Ali, em meio hectare e com um motor a óleo para a água, Severino cultivava flores que vendia no mercado atacadista e também no varejo, por ramo. Mais tarde, Severino conseguiria um emprego como tipógrafo e começaria a trabalhar na oficina de Polli, em Morón. A partir daquele momento, Di Giovanni faria a vida comum dos trabalhadores politizados daqueles tempos. Tornou-se um bom trabalhador gráfico especializado: geralmente trabalhava como tipógrafo, mas também era linotipista, à noite participava de reuniões anarquistas ou com grupos antifascistas.
Severino e Teresina compõe um matrimônio prolífico: em 1924 nasce a segunda filha, Aurora, e um ano mais tarde, Ilvo. “L’Italia del Popolo”, jornal liberal-socialista da comunidade italiana – de 31 de janeiro de 1931 descreve o Di Giovanni desses anos assim:
“Nas reuniões distribuía ou vendia jornais e revistas de tendências anarquistas e falava para expressar seu desacordo com os oradores. Para ele, o antifascismo organizado por todas as tendências enganava as massas e por isso iniciou a publicação de um periódico libertário chamado ‘Culmine’. Escrevia, editava e imprimia ele mesmo, em seus momentos livres, roubando-lhe horas de sono (…) Quando o conhecemos era um homem simples, com um rosto esgotado de garoto que nem sempre tinha o que comer. Vestia-se de forma muito humilde, como um operário comum: jaqueta e calça que, à primeira vista, mostravam uso prolongado, camisa sem gola, um lenço no pescoço, um boné na cabeça e as alpargatas proletárias clássicas (…) Al Capone – continua o jornal italiano, e esta frase é uma alusão a um editorial do ‘La Nación’ onde comparava Di Giovanni com o gangster norte-americano – não se via por nenhum lado. Com traços bem fortes, loiro puxando ao castanho, tez levemente rosada, tinha em seus olhos – de cor azul mar uma luz intensa, quase febril…”
Antes de começar com essa verdadeira jornada de violência que Severino Di Giovanni irá protagonizar ao longo de quatro anos – com toda sua gama de crueldade, romantismo, lenda, valentia e esse algo indefinido que caminha entre o incrivelmente delitivo e uma paixão pela justiça com as próprias mãos (um chefe da Ordem Social da polícia cometerá a gafe de chamá-lo de Robin Hood moderno) – queremos definir o caráter e a mente deste homem antes que comece sua perseguição implacável. Porque durante seus últimos três anos de vida viverá encurralado, e um homem encurralado pela sociedade vai reagir de forma muito diferente do que quando goza de uma vida legal.
Alberto S. Bianchi, jornalista do “La Antorcha” e clássico orador anarquista das décadas de 20 e 30, quem conheceu precisamente Di Giovanni nesse período anterior, nos descreve graficamente desta maneira: “Di Giovanni era como um vinho espumante italiano no momento em que se abre: transbordante, entusiasmado, ativíssimo.
Com atraente aparência, sua paixão era, uma vez terminado seu dia de trabalho, continuar usando o chumbo e a tinta para expressar suas ideias, seja em seus folhetos ou em suas próprias publicações, nas quais gastou seu próprio dinheiro. Lembro-me dele se alimentando de um pequeno sanduíche enquanto escrevia cartas, em longas noites de trabalho febril.”
Donato Antonio Rizzo, então administrador do “La Antorcha”, nos descreveu quando foi à oficina na Rua Rioja, nº 1689: “Quando o conheci, Di Giovanni estava trabalhando na oficina do Banco de Boston.
Ele quase sempre trazia algo de lá, especialmente tintas, para que o custo de seu jornal ‘Culmine’ não fosse tão alto. Ele fez todo o trabalho. Ele escrevia sua maior parte, preparava as cartas, as juntava e finalmente seguia para expedir. Era um daqueles homens que queria fazer tudo, porque senão pensam que nada avança. Sempre esquecia de comer durante suas infindáveis horas de trabalho. De vez em quando mastigava um pedaço de pão duro que encontrava enquanto ainda estava absorvido em sua tarefa. Seu caráter era impetuoso e reagia espontaneamente, sem cálculos. Vestia-se de forma humilde, mas sempre corretamente. Não era um homem que se interessasse por sua aparência exterior.”
O “L’Adunata dei Refrattari” de Nova York dirá: “Quem se lembra dele quando ainda não era um fugitivo, sabe como ele se dedicou apaixonadamente à propaganda das ideias libertárias e lembra que, embora fosse impetuoso, com a jovialidade de seu caráter conquistou amigos e companheiros.”
Mas a chave para entender seu estilo é: Severino Di Giovanni era acima de tudo, um homem autodidata. Sua caligrafia, por exemplo, não é a de um trabalhador, mas a de quase um calígrafo. E quando se torna um jornalista, seu estilo será turbulento, avassalador, sem rodeios, direto. Ele escreve claramente, é um tanto repetitivo, mas sua linguagem é jornalística, interessante, ele sabe muito bem como se dirigir a seus leitores.
Pouco depois de começar como tipógrafo, entrou em contato com um grupo de anarquistas antifascistas que editava “L’Avvenire”, Pubblicazione Anarchica di Cultura e di Lotta, que era dirigida por Camilo D’Aleffe e incluía Ricucci, Cortese, Tibiletti, Tirabassi, Di Guistini e Aldo Aguzzi, este último, também exilado do fascismo, era o teórico mais qualificado de todos eles.
A primeira vez que Severino aparece naquele jornal, sob o pseudônimo de N. Donisver, está na lista de colaboradores com uma contribuição de cinco pesos, que naquela época era muito dinheiro (em geral, as contribuições não passavam de 0,50 centavos a um peso por mês), e o primeiro artigo que ele escreve já é bem significativo de sua ação futura. É de 1º de julho de 1924, se intitula “Delenda Cartago!” [9] e começa assim: “Vamos destruir Cartago. A Cartago moderna, a dos ricos, dos sacerdotes e dos militares! Este deve ser o grito dos rebeldes e o lema da revolução social. O grito do cansado vagabundo, do faminto que é consumido pela fome, daqueles que têm sede de justiça, daqueles que caíram por suas justas críticas, culpados de rebelião.” E então repete: “Destruam os hipócritas! Destruam as cavernas dos tiranos! Destruam os tribunais, sejam eles monárquicos ou republicanos! Destruam os quartéis! Destruam os tribunais! E destruam também a igreja!”. E ele explica em cada caso os males que todas essas estruturas da sociedade trouxeram ao ser humano.
É uma canção para a rebelião que o jovem imigrante assina com todo seu nome: Di Giovanni, SEVERINO.
Embora ele esteja mais interessado em manter contatos com os anarquistas italianos do que com os argentinos, a divisão destes últimos em Buenos Aires irá se relacionar com toda a sua tragédia.
Os ácratas argentinos – cujos grupos constituíam o conglomerado mais importante da América Latina e eram herdeiros de uma grande tradição de luta sindical e trabalho cultural – estavam em desacordo entre si. Os protestistas por um lado (com seu jornal “La Protesta” liderado pelos espanhóis Emilio López Arango e Diego Abad de Santillán) e os antorchistas por outro (com seu jornal “La Antorcha”, e com Rodolfo González Pacheco e Teodoro Antillí, como ideólogos, este último tendo morrido prematuramente, mas cujas ideias continuaram a ter influência por muitos anos). Além desses dois grupos de ação bastante teóricos, havia os anarcossindicalistas agrupados na FORA, e os grêmios autônomos. Em poucas palavras: “La Protesta” e a FORA vieram para formar a ala moderada do anarquismo argentino, enquanto os grêmios autônomos e o grupo “La Antorcha” representavam a ala esquerda do movimento.
O grupo do “La Protesta” era, sem dúvida, o mais importante, e a posse de máquinas de impressão lhes permitia editar diariamente sua publicação sem apertos econômicos. Tinha uma verdadeira solidez administrativa.
Seus homens eram contra a ação violenta e pregavam a educação e o esclarecimento. Em todo caso, o movimento anarquista argentino havia começado seu lento e amargo declínio; as lutas internas multiplicavam-se.
Além disso, atuavam os grupos de italianos integrados quase todos por imigrantes da península que eram ativos e carregavam a marca comum do antifascismo. Entre eles havia uma divisão entre anarco-comunistas (quase todos eles malatestianos) e individualistas. Entre os primeiros, os mais destacados foram Carlo Fontana – que escreveu a página italiana do “La Protesta” –, Aldo Aguzzi, que dirigiu “L’Avvenire”, e Camilo Daleffe, que se separaria do “L’Avvenire” para publicar “La Rivolta”. O anarquismo individualista, que teve um grande impulso no final do século XIX, renasceu com a publicação de “Culmine”, de Severino Di Giovanni.
Quando Di Giovanni passa a ser registrado na seção de Ordem Social da Capital pela desordem no Teatro Colón, ele já era conhecido da polícia de Buenos Aires por ter sido o protagonista de um motim em uma assembleia de trabalhadores em 25 de outubro de 1924.
Este episódio mostra que Severino está começando a se interessar pelos problemas do movimento operário. Vinte dias antes, ele havia assinado uma declaração do grupo “L’Avvenire” de confronto com o grupo de “La Protesta” e a FORA. Será o início de uma diferença profunda. Tudo começou no Comitê de Defesa dos Prisioneiros e Deportados – dominado pela direita do anarquismo – que excluiu alguns de seus integrantes. A origem foi ideológica: os homens do “La Protesta” e da FORA não queriam ajudar aqueles que estavam presos por terem cometido expropriações, crimes contra a propriedade ou falsificação de dinheiro. Por outro lado, “La Antorcha” sustentou que não havia necessidade de diferenciar companheiros de ideias. O grupo italiano, mesmo sem querer entrar na controvérsia entre os dois porta-vozes do anarquismo argentino, toma a posição do “La Antorcha”. “La Protesta” decidiu então não publicar mais os anúncios do “L’Avvenire”. Em reação, um documento assinado pelos italianos afirma que eles não aceitam a excomunhão lançada pelo anarquismo oficial argentino. Na mesma edição do “L’Avvenire”, Di Giovanni publicará seu segundo artigo – desta vez sob o pseudônimo de Giovanni Rolando – intitulado “Fascismo e o Papado”, onde analisa a relação entre Mussolini e o Vaticano. Ele diz que não se deve ser enganado por certos ataques do fascismo contra algumas propriedades da igreja. A verdade, ele aponta, é que o fascismo não pode ser mantido sem o apoio do clericalismo. E que foi o Papa e depois a Casa Real de Saboia que deram sua bênção para que Mussolini pudesse governar.
Severino tornou-se um colaborador constante de “L’Avvenire” e, na edição de 20 de outubro de 1924, em um artigo intitulado “Giacomo Matteotti: o gigante do martírio” ele reivindicou a vingança pelo assassinato do socialista italiano nas mãos dos fascistas. Neste artigo mostra o quanto ele amava à terra que teve que abandonar.
Diz: “Na pátria de Garibaldi e Mazzini, na terra fértil dos heróis puros e criadora dos arcanjos da libertação, da poesia sublime, da escultura fantástica e da pintura encantada; no berço de duas culturas que conquistaram o mundo: a de Roma e a de Cristo. Naquela terra escolhida pela natureza e pelo gênio como o Éden do mundo, as multidões que clamando por uma nova Idade Média, fizeram do crime o emblema mais luxuoso dessa proeza”. E ele continua denunciando a aliança da Igreja Católica com o novo regime. Este artigo é assinado com um de seus pseudônimos favoritos: Nivangio Donisvere, que é um anagrama de seu próprio nome e sobrenome.
Duas semanas depois, ele escreveu no mesmo jornal uma pequena biografia do escritor Anatole France, que havia falecido em Tours, em 12 de outubro. É um belo artigo intitulado “O arquiteto da ironia”, onde ele aponta que sua morte é uma grande perda para “a grande família do intelectualismo plebeu rebelde”. A nota é datada em Ituzaingó, o lugar onde cultivava flores.
Na edição de 5 de novembro daquele ano, Severino intervém em uma controvérsia sobre um assunto que era permanente para ele: o amor. Nele, ele argumenta que um anarquista que se casa com uma mulher na igreja apenas pelas dificuldades diante da família não comete nenhum pecado contra a ideia. Ele aponta que a ideia libertária é como um escudo que resiste a todos esses detalhes sem importância. O principal é alcançar a plenitude do amor com sua amada. E termina dizendo: “Não é um crime sacrificar um pouco dos preceitos e do convencionalismo anarquista por um amor imenso, especialmente quando a própria anarquia se baseia em um amor grande e infinito.”
Assim como ele era livre e generoso nas relações humanas, também era intransigente em sua luta contra exploradores e limitadores de liberdade. Não era importante para ele se um camarada entrava numa igreja para ver obras de arte ou mesmo para pedir a benção; o que era importante era se esse camarada se comportava de forma fiel e consistente na luta contra os inimigos. Se ele já estava mobilizado, se saía às ruas, se levava em sua mente o conceito de revolução. Para ele, a teoria tinha que ser posta em prática imediatamente. Ele não aceitou métodos dialéticos, ou circunstâncias propícias, ou situações maduras, ou políticas realistas. O sistema social é injusto, os poderosos são ladrões comuns que roubam dos trabalhadores, a polícia é formada por criminosos armados e protege o dinheiro dos poderosos. Não resta nada além de roubar dos poderosos para devolver o dinheiro a seus legítimos proprietários. A polícia, os militares, os poderes constituídos: tudo está a serviço da classe burguesa. E tudo isso não é conseguido com boas palavras e conferências. É alcançado com armas, com violência vinda de baixo. Terror contra o terror. “Faccia a faccia col nemico”, assim chamará Severino uma seção do próprio jornal que ele batiza de “Culmine”, ou seja, o “Pico”, o “Topo”. O “Pico” dos anseios de amor, liberdade, justiça. Por tudo isso, Severino já está começando a irritar até mesmo certos círculos anarquistas onde, mesmo que também queiram as mudanças, não sem tanta pressa.
* Este ensaio que publicamos pela primeira vez em português foi traduzido a partir do primeiro capítulo da edição argentina do livro “Severino Di Giovanni. El idealista de la violência”, publicado em 2009 pela Sombraysén Editores, cujo título original é “Faccia a faccia col nemico”. A primeira edição do ensaio foi publicada em 1970 pelo Editorial Galerna, em Buenos Aires, Argentina.
[1] Camisas-negras foi um grupo paramilitar da Itália fascista, a Milícia Voluntária para a Segurança Nacional que mais tarde passou a ser uma organização militar. Devido à cor dos seus uniformes, os seus membros ficaram conhecidos como camisas-negras (em italiano: camicie nere). [NT]
[2] Bersaglieri (atirador, artilheiro) é um corpo do exército italiano criado originalmente pelo general Alessandro La Marmora em 18 de junho de 1836 para servir ao exército do Reino da Sardenha, sendo mais tarde o Regio Esercito (Exército Real Italiano). Sempre se caracterizou por ser uma unidade de infantaria de alta mobilidade e que existe até os dias atuais, podendo ser reconhecido pelo famoso chapéu de abas muito largas, decorado com plumas negras de faisão. [NT]
[3] O Teatro Colón fica no coração da cidade de Buenos Aires, sendo considerado um dos melhores teatros do mundo. O teatro original foi inaugurado em 1857, depois reformado e reinaugurado em 1908. O local destinado ao público em formato de “U” é dividido em diversos setores com partes mais baixas e mais altas e diferentes visões do palco do teatro que tem 15m de altura e 20m largura. Os setores em volta da plateia que fica de frente para o palco são nomeados na ordem de proximidade com o palco como cazuela, tertulia, galeria e por último o paraíso que fica mais longe do palco, com algumas dessas alas sendo exclusivas para homens e outras para mulheres ou mistas. [NT]
[4] Optamos por traduzir os diálogos originalmente em italiano. [NT]
[5] Amerigo Dumini foi um assassino fascista italiano de origem americana que liderou o grupo responsável pelo assassinato de 1924 do líder do Partido Socialista Italiano Giacomo Matteotti, que denunciou no parlamento italiano, com provas, a violência fascista que originou a falsificação dos resultados das eleições de abril de 1924, sendo assassinado em 10 de junho desse ano. [NT]
[6] Esclarecimento dos nomes mencionados por Di Giovanni no Teatro Colón: Matteotti, deputado socialista italiano, sequestrado e morto pelo fascismo em junho de 1924. Dumini, Filipelli, De Vecchi, Rossi, Regazzi, Farinacci: membros do partido fascista e da polícia política envolvidos na repressão. Américo Dumini, por exemplo, quando se apresentou, disse ironicamente: “Dumini, oito assassinatos”. Isto só foi superado por outro de seus companheiros que se apresentou como: “Sandro Carosi, dez assassinatos políticos”. (Ver Franco Fuchsia: Le polizie di Mussolini, Mursia, Ed. Milano, 1985.) [NA]
[7] Di Giovanni nomeia os dois antípodas: Tolstoi, o não violento por excelência; Ravachol, o símbolo da violência desesperada. Aqui Severino engana a polícia. Nessa época […] ele já havia publicado artigos justificando a violência de baixo como um direito à rebelião. [NA]
[8] Squadristas, membros da esquadra d’azione, milícias fascistas não-oficiais organizadas em um movimento que ficou conhecido como esquadrismo. Eram grupos armados liderados pelos chamados “Ras”, que organizavam ataques terroristas contra opositores do fascismo na Itália durante o Biennio nero (1921-1922), período que marca a ascensão fascista até a Marcha sobre Roma e a chegada ao poder de Benito Mussolini. Originalmente foi formada por fazendeiros e membros da classe média como milícia para enfrentar socialistas e revolucionários. [NT]
[9] Referência a expressão abreviada Delenda est Carthago (“Cartago deve ser destruída”), proveniente de Ceterum autem censeo Carthaginem delendam esse (em latim, “Considero ainda que Cartago deve ser destruída”), costumeiramente abreviada também como Ceterum censeo ou Carthago delenda est. É uma frase célebre da oratória latina cujo uso se popularizou na República Romana, no século II a.C., durante os últimos anos das Guerras Púnicas, travadas por Roma contra Cartago, especialmente pelos membros do partido político que visava eliminar qualquer ameaça à República Romana de seus velhos rivais cartaginenses, que haviam sido derrotados anteriormente por duas vezes e tinham uma tendência a reconstruir rapidamente suas defesas após cada derrota militar. Simboliza uma política de aniquilação dos inimigos de Roma que se envolvessem em quaisquer atos de agressão, e a rejeição de tratados de paz como uma forma de dar um fim aos conflitos bélicos. A frase é lembrada por ser proferida frequente e persistentemente, de maneira quase absurda, pelo senador romano Catão, o Velho (234-149 a.C.), que a usava para finalizar seus discursos. [NT]