O homem estampado como criminoso procurado e descrito na capa do periódico reacionário que circulava nas bancas do país em novembro de 1968 como chefe comunista, apreciador de batida de limão, fã de cantores de feira, crítico de futebol e guerrilheiro era Carlos Marighella, dirigente da Ação Libertadora Nacional, a ALN, principal organização revolucionária que enfrentou em armas a ditadura empresarial-militar brasileira. Declarado como “inimigo número 1” pelo regime fascista dos generais, Marighella era caçado e perseguido pelas forças de repressão, sendo exposto como um “terrorista perigoso” pela máquina de propaganda dos verdadeiros criminosos de farda da ditadura vassala do imperialismo. A mesma revista anunciaria exatamente um ano depois, em uma nova capa, com tons comemorativos e sua imagem ensanguentada, o assassinato do mais importante comunista revolucionário brasileiro, emboscado e morto em 4 de novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, em São Paulo.
Carlinhos, como era chamado por seus vizinhos e amigos na infância e juventude, antes de se tornar um personagem envolto em uma mística heroica e referência para a esquerda revolucionária de todo o mundo, teve sem dúvida alguma, uma existência poética, e acima de tudo, corajosa. Nascido na Baixa dos Sapateiros, em Salvador, era o primeiro filho de Augusto Marighella, um operário italiano com influências anarquistas de Ferrara, região da Emília-Romagna, e de Maria Rita do Nascimento, uma mulher negra e descendente de escravizados haussás sequestrados na região do Sudão Central, atual norte da Nigéria, de onde vieram parte dos negros islamizados que protagonizaram a Revolta dos Malês, insurreição antiescravagista que tomou a capital e o recôncavo da Bahia em janeiro de 1835. Marighella era, portanto, um mulato baiano na significação invertida do termo, que apesar da origem controversa, provavelmente deriva de fato da palavra em árabe para descrever um filho mestiço entre um pai árabe e uma mãe não árabe. Carlos, primogênito de sete irmãos, que desde muito cedo se interessava por poesia e justiça social, é, portanto, a melhor síntese da formação social do povo brasileiro e da busca por libertação dos diversos sujeitos que aqui convergiram e resistiram.
Em uma carta autobiográfica escrita enquanto estava em Moscou, em maio de 1954, Marighella assim se descreve: “Meu pai é um trabalhador italiano que migrou da Itália para o Brasil. Minha mãe era filha de escravos africanos. Tenho irmãos e irmãs que são trabalhadores e empregadas. Mas meu pai me mandou para a escola e estudei na escola secundária, fazendo o curso completo, como um dos primeiros alunos da sala. Depois, ingressei no curso superior, estudando na Escola Politécnica, faculdade superior dos estudos de Engenharia Civil em meu estado natal, a Bahia. Depois de completar a maior parte do curso, fui afastado da Escola como punição, depois de um inquérito que a direção da Escola mandou fazer. Isso foi em 1934, quando eu tinha 22 anos. Eu participava da Federação Vermelha dos Estudantes e liderei uma série de movimentos na Escola, motivo pelo qual fui afastado. Em seguida, transformei a Federação Vermelha dos Estudantes em Sindicato dos Estudantes. Logo fui recrutado pelo Partido e ingressei em uma célula de trabalhadores de tecido.
Neste período, organizei células do Partido entre os trabalhadores do porto da Bahia, entre os trabalhadores do serviço de trens da cidade, entre os padeiros, etc., chegando a ser secretário do Partido, tendo, também, organizado a Juventude Comunista. Em 1935 me mudei para o Rio de Janeiro e trabalhei na Comissão Especial da Comissão de Organização do Comitê Central. Essa Comissão Especial estava incumbida de fazer comunicações marítimas, com os jornais ilegais e com as casas ilegais da Direção. Nesse trabalho ilegal, fui preso em 1936 pela polícia, quando tentava dar um telefonema na casa de um companheiro, que eu não sabia que havia sido preso naquela madrugada. O país estava então sob terror policial, que tinha sido implantado depois da derrota da Insurreição de 1935. Na Polícia Central e na Polícia Especial fui torturado e espancado por três semanas para que confessasse o local do jornal, mas em face das negativas fui depois levado para a detenção. No ano seguinte, 1937, o país entrou no período eleitoral, o movimento das massas havia crescido e a polícia teve que soltar muitos presos. Empregando meios jurídicos (habeas-corpus), o Partido conseguiu que eu e outros tivéssemos a liberdade. Em seguida, apesar de estar em liberdade, o Tribunal de Segurança Nacional me condenou a dois anos e meio de prisão. A Direção do Partido me enviou então para São Paulo, para, como secretário de propaganda do Comitê Regional, ajudar a combater o fracionismo trotskista […].”
Desde sua entrada no Partido Comunista do Brasil ainda jovem (que passou a se chamar oficialmente Partido Comunista Brasileiro apenas em 1961), Marighella, apesar de muito afável, emotivo, sorridente e irreverente como um bom baiano, foi sempre um homem disciplinado, um comunista militante decido pela causa do povo, disposto a dedicar sua vida e seguir fielmente os princípios e métodos marxista-leninistas. Participando ativamente da vida partidária, Marighella que já havia sido preso em 1932 na Bahia, após escrever um poema contendo críticas ao interventor Juracy Magalhães, em maio de 1936 é novamente preso, agora no Rio de Janeiro, onde era responsável também pelo setor de propaganda do partido, sendo torturado por 23 dias pela polícia especial do nazista Filinto Müller durante a ditadura do Estado Novo de Vargas. O clima era de guerra e repressão total, após o malsucedido Levante Comunista de novembro de 1935 organizado pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) e o PCB, Getúlio Vargas desfechou uma violenta perseguição aos opositores do regime, superlotando as cadeias. Marighella sai da prisão em 1937, entra na clandestinidade e muda-se para São Paulo, mas é mais uma vez capturado em 1939, e mesmo preso é eleito para a direção do PCB na Conferência da Mantiqueira que reorganizou a estrutura do partido, em 1943.
Entre as diversas prisões, primeiro o Estado Novo lhe confinou na Ilha de Fernando de Noronha (PE), onde organizou cursos de formação política para os presos, cuidou da horta comunitária e participou de jogos de futebol contra os integralistas também presos, depois foi transferido, em 1942, para a temida Colônia Correcional Dois Rios, na Ilha Grande (RJ), sendo anistiando apenas em 18 de abril de 1945.
É nesse ano, com o fim da 2ª Guerra Mundial e a derrota do nazifascismo, que ocorrem mudanças significativas no cenário político nacional, com a anistia dos presos políticos, a legalização do PCB, a deposição de Getúlio Vargas e a realização de eleições para a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1946. Marighella, juntamente com Jorge Amado, é eleito deputado à ANC pela Bahia, tornando-se um dos 14 membros da bancada comunista.
No governo do marechal de extrema-direita Eurico Gaspar Dutra, o PCB é novamente colocado na ilegalidade em 1947 e, logo após, os mandatos da bancada comunista são cassados. Marighella volta a atuar na clandestinidade, e até o início dos anos 1950 se torna o principal dirigente do partido em São Paulo, responsável também por coordenar o trabalho sindical e a mobilização operária que resultam na grande Greve Geral de 1953, conhecida como a Greve dos 300 mil. O PCB na clandestinidade havia retomado uma linha revolucionária com o “Manifesto de Agosto” de 1950, mas em 1956, após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e a consolidação do golpe contrarrevolucionário da burocracia soviética com a divulgação do famoso relatório de Nikita Khrushchev, o PCB é novamente abalado internamente, assim como a maioria dos partidos comunistas ao redor no mundo. É aberto um processo de debate e disputa interna, um “núcleo intelectual” de jornalistas responsáveis pelos órgãos da imprensa comunista, Voz Operária e Tribuna Popular, deixa o partido após a conclusão precipitada do debate interno. Outro importante setor, parte do núcleo dirigente e do Comitê Central é expulso do PCB ainda em 1957, na cisão que dará origem ao PCdoB, em 1962.
O PCB assume a linha revisionista oficialmente com a “Declaração Política de Março de 1958”, onde defende a via pacífica para as transformações do país, a confiança na democracia burguesa, o etapismo e a colaboração de classes. Marighella se mantém fiel a Prestes, ocupando funções de direção no partido. A fidelidade ao partido e a confiança na liderança do “Cavaleiro da Esperança”, Luís Carlos Prestes, é por parte de Marighella nesse momento, um tanto quanto cega. Ainda em 1952, Marighella foi enviado para uma viagem à China maoista e depois passou pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), estava nesse momento fazendo sérias críticas em relação ao trabalho de massas do partido, e sua viagem teve um caráter punitivo de afastamento temporário. Sua reação ao relatório de Khrushchev, com acusações e falsificações sobre Josef Stalin em 1956, foi uma das piores, entre crises de choro e um quadro depressivo profundo que durou algumas semanas, para finalmente aderir à linha revisionista e contrarrevolucionária de Prestes e do PCUS.
Em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros abre-se uma nova situação no país e se inicia a Campanha da Legalidade para a posse de João Goulart, vice-presidente eleito separadamente. A partir de 1962, o PCB e o recém formado Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) participam ativamente do apoio ao governo trabalhista de Jango e da ampla campanha pelas reformas de base, a conjuntura se radicaliza rapidamente com as movimentações populares de um lado, e de reacionários e conservadores de outro, que culminarão com o golpe de Estado dos generais fascistas em 1964. É nesse período que Marighella inicia um processo de autocrítica impiedosa, luta interna e radicalização revolucionária, influenciado pelos ventos castro-guevaristas da Revolução Cubana de 1959, que culminará na sua expulsão do PCB e fundação da ALN. Marighella critica principalmente o imobilismo, o dirigismo, a confiança em acordos de cúpulas e a política reboquista do PCB em relação à burguesia nacional e ao governo Jango. Com o golpe empresarial-militar e imperialista e a clara incapacidade e covardia da maioria da direção do PCB em resistir e responder às tarefas que a conjuntura impunha, Marighella que se manteve fiel à disciplina partidária em outras crises e mesmo combateu outras dissidências, inicia sua rebelião interna, disputando o partido, formando maioria em São Paulo na famosa “Ala Marighella” que dará origem ao Agrupamento Comunista e mais tarde conformará, com outros setores da esquerda revolucionária oficialmente a parir de 1968, a Ação Libertadora Nacional.
É nesse processo, entre o início da sua radicalização, as críticas ao partido e sua direção, principalmente a partir 1966 até o seu assassinato em 1969, onde Marighella desenvolve sua teoria da revolução brasileira, esboça elementos da estratégia revolucionária e uma teoria político-militar da guerra de guerrilhas e de movimento (ou de manobras, como também chamou), além da proposta organizacional e programática da ALN como uma organização de novo tipo. A prática política da ALN se baseia na centralidade da ação revolucionária e negação do teoricismo e do burocratismo, onde a guerrilha urbana, através dos Grupos Táticos de Armados, os GTA, abre caminho e se combina com a guerrilha rural, que assume um papel estratégico, acompanhando o avanço da resistência popular e a insurreição das massas operárias e camponesas, em unidade com a intelectualidade dissidente e as camadas médias radicalizadas para derrubar, com uma guerra revolucionária de libertação nacional, a ditadura empresarial-militar que se encrudesceu com o Ato Institucional Nº 5 em 1968, o fechamento completo do regime e o golpe dentro do golpe, e estabelecer através da guerra de guerrilhas, que evoluiria para a formação de um Exército Revolucionário de Libertação do Povo, o processo de construção do socialismo no Brasil.
A saída um tanto quanto tardia de Marighella do PCB, com sua expulsão se confirmando apenas em 1967, com o episódio da Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), foi de certa forma compensada pela sua completa radicalização, intensidade e dedicação integral ao projeto revolucionário armado, com a ALN se tornando a principal organização da esquerda revolucionária em 1968/69, chegando a reunir no seu auge cerca de 5 mil militantes nas suas bases e em seu setor militar, de logística e inteligência. A saída do dirigente baiano carregou consigo também o apoio direto de Cuba e já em 1967, a primeira turma de guerrilheiros do Agrupamento Comunista começa a treinar na Ilha, que antes havia apoiado também com treinamento, armas e financiamento às Ligas de Francisco Julião e os movimentos ligados a Leonel Brizola. Junto com Marighella, Joaquim Câmara Ferreira e Virgílio Gomes da Silva, outros importantes dirigentes como Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho também saíram do PCB, mas optaram pela fundação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) em 1968. Muitos deles, em oposição ao imobilismo do partido, haviam assinado ainda em 1964, nos meses seguintes ao golpe, o documento “Esquema para Discussão”, afirmando que a causa da derrota estava no fato do PCB ter incorrido em um “grave desvio de direita”, pois alimentava ilusões a respeito das reformas por meios pacíficos, confiando em uma aliança com a burguesia nacional e com o governo João Goulart, por isso não tendo preparado as massas trabalhadoras para resistir ao golpe.
Essas rupturas se inscrevem em um contexto de crise geral do Partidão e darão origem a diversos novos agrupamentos revolucionários dispostos a enfrentar em armas a ditadura empresarial-militar. Mesmo antes dessa crise, da qual o PCB não se recuperaria jamais, algumas organizações já impulsionavam projetos de luta guerrilheira, inclusive antes do golpe de 1964, como as Ligas Camponesas de Julião, originadas na Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP) e a POLOP, a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária, fundada em 1961, por militantes provenientes do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e do trabalhismo, ou logo após o golpe, como no caso do MR-26 e da Guerrilha de Três Passos, no Rio Grande do Sul e Paraná, por iniciativa de ex-militares expulsos das forças armadas, e do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), inicialmente ligado a Brizola e que protagonizou Guerrilha do Caparaó entre o Espírito Santo e Minas Gerais, e também da Ação Popular, organização vinculada à esquerda católica que foi se radicalizando cada vez mais e evoluiria para a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), e do próprio PCdoB, que iria protagonizar o último grande movimento de resistência armada ao regime com as Forças Guerrilheiras do Araguaia, as FOGUERA, derrotadas finalmente apenas em 1974.
O nome e sigla da ALN eram uma clara referência à ANL, a Aliança Nacional Libertadora dos anos 1930, organização de massas antifascista e anti-imperialista que, sob a direção do PCB, protagonizou a Insurreição de 1935 com um programa antilatifundiário, antioligárquico e de defesa das liberdades democráticas e dos direitos do povo, materializando a linha revolucionária do PCB no período com um levante armado com forte apoio popular e a palavra de ordem “Todo Poder à ANL”, que chegou a assumir o poder em Natal (RN) por alguns dias e foi também deflagrado em Recife (PE) e no Rio de Janeiro. Derrotado o Levante, chamado pejorativamente pela historiografia burguesa de “Intentona Comunista”, seguiu-se uma grande repressão e terror de Estado contra as forças populares e o PCB.
A ALN não foi apenas uma organização militar, nem mesmo foi uma organização adepta da teoria do “foco guerrilheiro” sistematizada por Régis Debray, como é comumente descrita, apesar de uma decidida influência da revolução cubana. Ainda em 1966, em novembro, Che Guevara passou clandestinamente por São Paulo em sua rota para seguir até a Bolívia, a viagem foi organizada pelo militante da ALN, Farid Helou. Che ficou hospedado no Hotel Samambaia, no centro da cidade, disfarçado de executivo uruguaio, e reuniu-se longamente com Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, organizando uma rede solidária e o apoio logístico do setor que fundaria o Agrupamento Comunista à passagem de revolucionários e armas para o projeto de Che na Bolívia, onde o maior ícone da luta revolucionária latino-americana seria capturado e assassinado entre 8 e 9 de outubro de 1967. A política fundante da ALN envolvia uma necessária dialética entre a luta guerrilheira e as lutas populares, sendo também uma organização de massas com milhares de militantes, apoiadores e simpatizantes em seus diversos setores, que investiu em lutas estudantis, mobilização operária e greves insurgentes, operou militarmente através dos GTAs, principalmente no triângulo São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte onde se concentrava a estrutura da repressão, mas também em outras regiões do país, protagonizando espetaculares ações de propaganda armada para desafiar o regime e realizando dezenas e dezenas de assaltos e expropriações, algumas dessas ações coordenadas com outras organizações como o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), o PCBR e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que conformariam a “Frente Armada”, abrindo caminho para a guerrilha rural com um planejamento que passava pela libertação de áreas rurais com colunas guerrilheiras móveis, promovendo uma autogestão camponesa nos territórios liberados pela ALN, para a partir da aliança entre o campesinato, o operariado urbano e setores médios da intelectualidade e grupos religiosos antiditadura, avançar em uma guerra revolucionária de libertação nacional e de caráter anti-imperialista e socialista.
Distante das acusações de militarismo, ou mesmo de “aventureirismo pequeno-burguês”, vindo do colaboracionismo covarde do PCB e outros setores, a ALN foi uma organização de novo tipo que mesclou elementos do marxismo-leninismo, e do guevarismo especificamente, com um tipo de anarquismo revolucionário instintivo, rejeitando o “centralismo democrático” e qualquer forma de burocratismo, com um método de organização interna batizado de “democracia revolucionária”, usando como lemas as afirmações de que “a ação faz a vanguarda” e que não se “precisa pedir licença para praticar atos revolucionários”, manteve desde o seu início uma frente de massas, com forte presença no movimento estudantil, principalmente no Rio de Janeiro, onde teve decisiva participação na Passeata dos 100 Mil, após o assassinato do secundarista Edson Luís, uma influência considerável no movimento operário, participando da greve insurrecional de 1968 em Contagem (MG), através da Corrente Revolucionária de Minas Gerais que viria a se fundir com a ALN; e junto com a VPR que depois seria comandada pelo capitão Carlos Lamarca, da mítica greve de Osasco (SP) também em 1968, além de diversas outras greves com ocupações de fábrica ou dando suporte armado em lutas de trabalhadores. A luta de massas operária, camponesa, dos estudantes, e o apoio de religiosos progressistas e da intelectualidade sempre tiveram para a ALN uma importância fundamental, o papel das mulheres também foi preponderante na organização, principalmente nas atividades relacionadas à logística e a inteligência, mas também político-militar.
A ALN manteve, ademais, uma importante política de propaganda de massas e para a vanguarda com boletins, comunicados, panfletos, lambes e jornais impressos como O Guerrilheiro, Venceremos, Ação e Guerrilha Operária, além disso, fez diversas ações de propaganda armada, incluindo a Rádio Libertadora com a espetacular ação de tomada dos transmissores da Rádio Nacional. Marighella, além de ser declarado como “inimigo número 1” pela ditadura e pela burguesia brasileira, a partir da Conferência da OLAS, se tornava também uma personalidade internacional, sendo reverenciado na França, publicado pelo filósofo Jean-Paul Sartre e François Maspero, e tendo seus escritos traduzidos em quase todos os países da América Latina e na Europa. Ações especulares com protagonismo ou participação da ALN se tornaram notícia no mundo, como o justiçamento do capitão do Exército norte-americano Charles Rodney Chandler (em conjunto com a VPR, em outubro de 1968) e o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick (em conjunto com o MR-8, em setembro de 1969). Está última ação, famosa também pelo filme pouco fidedigno “O que é isso, Companheiro?” (1997), ocorreu mesmo com a discordância de Marighella, que previa um aumento brusco dos níveis de repressão, e o que de fato aconteceu. O Minimanual do Guerrilheiro Urbano e outros textos sobre a luta armada foram referência fundamental para organizações guerrilheiras como a Fração do Exército Vermelho (a Rote Armee Fraktion, RAF da Alemanha), para os Tupamaros, o Movimento de Libertação Nacional do Uruguai, os Montoneros da Argentina, as Brigadas Vermelhas na Itália, a organização basca ETA (Euskadi Ta Askatasuna), o Exército Republicano Irlandês, mais conhecido por sua sigla em inglês, o IRA, a Weather Underground dos EUA e mesmo o Partido dos Panteras Negras havia traduzido o “Minimanual” e o “Chamamento ao Povo Brasileiro” em 1969.
A organização também manteve uma rede de apoio na Europa e Marighella, assim como Che, foram a inspiração da Junta de Coordenação Revolucionária, a JCR, formada em 1972 por remanescentes do Exército de Libertação Nacional da Bolívia, pelos Tupamaros, pelo Movimento de Esquerda Revolucionária chileno, o MIR de Miguel Enríquez, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores – Exército Revolucionário do Povo da Argentina, o PRT-ERP de Mario Roberto Santucho, como uma coordenação internacionalista e revolucionária, em reposta e oposição à aliança político-militar das ditaduras sul-americanas coordenada pelo imperialismo e conhecida como Plano Condor, cuja ALN não teve participação formal visto que já se encontrava abalada pela repressão.
A ALN inicia sua decomposição final, assim como os demais grupos guerrilheiros, no início dos anos 1970, especificamente entre o final de 1973 e início de 1974. Com o assassinato de Marighella em 4 de novembro de 1969, a queda de Joaquim Câmara Ferreira, o “Comandante Toledo”, em 23 de outubro de 1970, o exílio de Carlos Eugênio da Paz, o “Comandante Clemente”, e finalmente o assassinato em 13 de julho de 1973 de Luís José da Cunha, o “Comandante Crioulo”, último dirigente máximo da ALN. A organização, que já sofrei alguns, como o Movimento de Libertação Popular – MOLIPO, a Tendência Leninista no exílio, o M3G (Marx, Mao, Marighella, Guevara) no Sul e a Frente de Libertação do Nordeste, quedas e mortes de militantes, chega ao seu fim. Ainda assim, em 1970 a guerrilha conseguiria um grande êxito na campanha pelo voto nulo com o Manifesto Contra a Farsa Eleitoral assinado por diversas organizações e uma tentativa de unidade na Frente Armada Revolucionária, primeiramente uma aliança da ALN com a VPR, onde depois se juntariam o MRT, a REDE (Resistência Democrática, que entraria para ALN), o PCBR e o MR-8. O sequestro do embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried von Holleben, pela ALN e VPR em 1970, o justiçamento, pela ALN e MRT, do empresário dinamarquês Henning Albert Boilesen em 1971, sádico e presidente da Ultragaz que acompanhava bárbaras torturas e assassinatos de militantes pessoalmente, assim como, os sequestros do cônsul-geral japonês, Nobuo Okuchi, pela VPR e MRT, e do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, pela VPR, deram fôlego para a luta armada. Mas as organizações guerrilheiras, incluindo a ALN como a mais importante delas, que conseguiram desnortear a ditadura e a repressão em 1968 e 1969, fazendo crer no possível avanço e vitória da guerra revolucionária, seriam complemente destruídas até 1974, com o assassinato do Capitão Lamarca no sertão da Bahia, em 17 de setembro de 1971 quando já estava no MR-8, chacinas contra a VAR-Palmares e a VPR entre 1972 e 1973, o massacre das FOGUERA no Araguaia, após três grandes operações da ditadura, onde foi assassinado também Osvaldo Orlando da Costa, o “guerrilheiro imortal” Osvaldão, em fevereiro de 1974, a queda final da ALN também no início 1974 e mais diversos massacres, centenas de assassinatos de militantes, com outras centenas de exilados e desaparecidos.
Essa publicação, que apresentamos agora ao nosso leitor e na qual reunimos fundamentais textos, artigos e entrevistas a partir do fim de 1966, tem como objetivo apresentar Marighella através de suas palavras e escritos, não apenas como o mítico guerrilheiro e homem de ação capaz de resistir as mais bárbaras torturas e enfrentar uma ditadura brutal, mas também como um teórico da revolução brasileira e estrategista político-militar. É parte do esforço de resgatar a tradição revolucionária, a coragem e os ensinamentos do mulato baiano para os novos tempos de luta, se inserindo em uma série de publicações que chamamos de “Pensamento Marighella” e para a qual também dedicamos outras edições com textos inéditos e documentos recuperados de Marighella e da ALN.
Nesse livro, parte de uma publicação dupla com o “Minimanual do Guerrilheiro Urbano e textos da ALN” para as quais a pesquisa e levantamento bibliográfico foram feitos principalmente com fontes primárias e documentos originais, ou a partir da revisão cuidadosa de fontes secundárias, onde reunimos parte da produção de Marighella no período da luta armada, assim como documentos da ALN após sua morte, decidimos a título de introdução publicar o precioso artigo escrito por Joaquim Câmara Ferreira, velho e leal companheiro de Marighella, assim que recebeu a notícia do seu assassinato no Brasil, quando estava entre a França e Itália e seguiria para a Coreia Popular para tarefas da organização. Abalado com a morte do principal dirigente da organização, o “Comandante Toledo” ou “Velho”, segundo no comando da ALN, teria que mudar seus planos e escreveu o artigo “Marighella: vida e ação criadoras” primeiro para a publicação no jornal L’Unità do Partido Comunista Italiano (PCI), reafirmando o compromisso da ALN e decidindo seguir para Cuba e retornar ao Brasil para assumir a condição de novo comandante da ALN e dar continuidade aos planos para implantação da guerrilha rural. Em 1970, o mesmo artigo foi publicado como prólogo no livro Carlos Marighella, uma coletânea de textos traduzidos ao espanhol, organizada e publicada pela Tricontinental, em Havana, Cuba.
Em sua “Carta à Comissão Executiva do Partido Comunista Brasileiro” publicada em dezembro de 1966, Marighella demite-se da executiva do partido e abre um processo de divergência pública com a política de conciliação e o burocratismo do Partidão. Daí em diante as divergências apenas se aprofundam e em agosto de 1967 publica sua “Crítica às Teses do Comitê Central”, escrita em Havana. Em setembro desse ano, participando à revelia do partido da Conferência da OLAS, cuja “Declaração da delegação brasileira” chefiada por Marighella e inédita em português reproduzimos aqui, é informado de sua expulsão do Comitê Central do PCB, e reafirma na sua “Entrevista à Rádio Havana (Cuba)”, que transcrevemos na íntegra, a ruptura com o PCB e a luta armada revolucionária como caminho para enfrentar a ditadura militar-empresarial e fascista no Brasil.
Em “Algumas questões sobre as Guerrilhas no Brasil”, artigo publicado no Brasil em setembro de 1968, mas escrito em Cuba em outubro de 1967, logo após saber do assassinato de Che Guevara na Bolívia, Marighella presta uma homenagem ao guerrilheiro heroico e sintetiza sua concepção de luta guerrilheira. Em fevereiro de 1968 é publicada a primeira edição do jornal O Guerrilheiro, onde aparece pela primeira vez o “Pronunciamento Agrupamento Comunista de São Paulo”, de assinatura coletiva e onde se confirma publicamente o alinhamento com a OLAS. O “Chamamento ao Povo Brasileiro” foi publicado em dezembro de 1968, sendo republicado e traduzido em diversos países da América Latina, mesmo mês da publicação da carta dirigida aos revolucionários de São Paulo, intitulada “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, que faz referência e marca o gosto de Marighella pelo samba. Em “Questões de Organização”, versão sintética do documento apreendido pela repressão, também datado de dezembro de 1968, e em “Sobre a Organização dos Revolucionários”, de agosto de 1969, assinado pela ALN, Marighella avança em questões sobre a estrutura organizacional e os métodos guerrilheiros.
Nos “Discursos da Rádio Libertadora”, Marighella e a militante da ALN, Iara Xavier, se revezam na leitura de manifestos, cartas e posições da ALN, transcritos e revisados a partir do projeto “Rádio Libertadora – A palavra de Carlos Marighella”. A espetacular ação de propaganda armada aconteceu no dia em dia 15 de agosto de 1969, às oito e meia da manhã, quando um destacamento de doze guerrilheiros da Ação Libertadora Nacional invadiu a estação transmissora da Rádio Nacional, em Piraporinha, perto de Diadema, em São Paulo, interrompendo a ligação com o estúdio e transmitido as gravações.
Na última e inédita “Entrevista à Revista Front (França)”, que publicamos agora em português na íntegra, Marighella, que foi entrevistado pelo jornalista franco-belga Conrad Detrez em outubro de 1969, deixa uma espécie de testamento sobre suas ideias e posições. Publicada em francês em novembro de 1969, dias após sua morte, na revista mensal de política internacional, utilizamos aqui uma versão revisada e traduzida da entrevista a partir dos arquivos do famigerado Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), dos originais da revista Front e a partir do livro em francês “Pour la libération du Brésil”, organizado também por Conrad Detrez. Finalizamos essa publicação com o posfácio “Marighella e a Ação Libertadora Nacional”, de Jacob Gorender, historiador e fundador do PCBR, um dos textos mais conhecidos sobre Marighella e parte do clássico livro “Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas a luta armada”, acompanhando de algumas notas críticas.
O objetivo dessa publicação é divulgar a atualidade do programa revolucionário de Marighella e avançar na sistematização de suas formulações estratégicas e político-militares, considerando sua construção teórica original, em diversos aspectos inovadora, e que chamamos de Pensamento Marighella, aporte fundamental para pensar e fazer a revolução brasileira. Desejamos uma boa leitura, e pôr fim, agradecemos apoio do jornalista e pesquisador Mário Magalhães, autor da seminal e incrível biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, e da historiadora e pesquisadora da ALN, Maria Cláudia Badan, autora de “Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN”, assim como, a solidariedade de todas e todos companheiras e companheiros, militantes combativos que insistem na luta revolucionária pela libertação de nosso povo, e que apoiam nosso projeto editorial autogestionário.
MARIGHELLA VIVE E VENCERÁ!