Consciência racial e revolução social – Por Aimé Césaire

Conscience raciale et révolution sociale foi publicado originalmente na seção Nègreries do jornal L’Étudiant noir, n° 3, em maio de 1935, publicado pela Associação de Estudantes Martinicanos na França, sendo o artigo onde Aimé Césaire inaugura o conceito de negritude, que servirá de base para o chamado “movimento da negritude”, uma corrente político-intelectual que reivindicou a identidade e o conjunto de valores culturais da África negra contra a dominação colonial e que Jean-Paul Sartre definiu conceitualmente como “a negação da negação do homem negro”. A palavra nègre em francês, ao contrário de noir, sempre foi a forma pejorativa para se referir as pessoas negras. Além de Césaire, o movimento da negritude foi impulsionado principalmente pela revista Présence Africaine e teve também a importante participação de Léopold Sédar Senghor, poeta e escritor senegalês, defensor do socialismo africano que se tornaria presidente do Senegal independente em 1960. Nègreries é o termo francês que se refere aos locais onde os escravizados negros eram mantidos presos.

O materialismo não diz que os pensamentos não são eficazes, mas apenas que suas causas não são os pensamentos. Que seus efeitos não são os pensamentos.

Nizan, em Os Cães de Guarda (Les Chiens de garde). 

Qual revolução já foi feita por um povo inocente de curiosidades? Quem sublevou alguma vez um brinquedo contra seu dono? No entanto, aí reside a proeza que nossos revolucionários negros desejam realizar quando exigem que o negro se rebele contra o capitalismo que o oprime. Desta forma, como podemos chamar um povo de assimilados de outra maneira que não seja um “brinquedo”? Dostoievski já o disse, ou quase: toda raça que acredita não ter nada a dizer ao mundo não passa de uma “curiosidade étnica” e todo indivíduo é um brinquedo quando acredita que, no encontro de receber e dar, seu povo chega com as mãos vazias.

“Aja!”, dizem eles aos negros. Mas como agir é criar, e como criar é amassar e dar à luz sua substância natural, o negro de nossa terra não agirá, pois ele está distraído de si e vive separado de si mesmo.

De fato, um estranho mal nos atormenta nas Índias Ocidentais: um medo de si mesmo, uma capitulação do ser frente ao aparente, uma debilidade que leva um povo de explorados a voltar as costas à sua natureza, porque uma raça de exploradores a envergonha com o pérfido propósito de abolir “a consciência própria dos explorados”.

Os exploradores brancos deram a nós os negros explorados, uma cultura, mas uma cultura branca; uma civilização, mas uma civilização branca; uma moral, mas uma moral branca; eles nos paralisam com malhas invisíveis para o caso hipotético em que nos libertaríamos da mais sensível escravidão material que eles nos impuseram. E traçam sua trama, pacientemente, incansavelmente, por meio da diligente astúcia, até morrermos no conhecimento de nós mesmos.

Agora, se é verdade que o filósofo revolucionário é quem elabora as técnicas de libertação, se é verdade que o trabalho da dialética revolucionária é desfazer “todas as falsas percepções prodigalizadas sobre os homens para encobrir sua servidão”, não devemos denunciar a cultura soporífica da identidade e colocar, sob as prisões que o capitalismo branco construiu para nós, cada um de nossos valores raciais como várias bombas libertadoras? Aqueles que dizem ao homem negro para se rebelar sem antes o conscientizar, sem lhe dizer que ele é belo, bom e legítimo porque é negro, esqueceram o principal.

Esqueceram de falar ao negro a única linguagem que ele pode legitimamente escutar, já que, diferente daquele “funcionário do escritório de M. Gradgrind*”, o “escravo negro” ainda tem sangue rico em afeto humano e que é desde o afeto humano, como assinala Chesterton, que ele vai querer a fidelidade ou a liberdade.

A verdade é que aqueles que pregam a rebelião ao negro não têm fé no negro e que, no orgulho de serem revolucionários, esquecem que, antes de tudo, são negros: escravidão ainda e da espécie mais estéril.

O herói Paul Morand, que “assimilou” Occide**, é também um revolucionário: graças a ele, o Haiti tem seus sovietes, Porto Príncipe se torna Octobreville; uma vantagem agradável se ele continuar prisioneiro dos brancos, um símio inútil imitador!

Uma lástima para aqueles que se contentam em ser como Occide por desprezo ao que chamam de “racismo”. Queremos explorar nossos próprios valores, conhecer nossas próprias forças através da experiência pessoal, cavar nosso próprio domínio racial, certos de que devemos encontrar, no fundo, as fontes que brotam do humano universal.

Deste modo, então, antes de fazermos a revolução, e para fazer a revolução – a verdadeira revolução – a onda destrutiva e não o tremor superficial, uma condição é essencial: quebrar a identificação mecânica das raças, rasgar os valores superficiais, capturar em nós mesmos o negro imediato, plantar nossa negritude como uma bela árvore até que tenha seus frutos mais autênticos.

Só então estaremos conscientes de nós mesmos; só então saberemos até onde podemos correr sozinhos; só então saberemos onde o fôlego nos falta e, como nós teremos compreendido nossa diferença particular e “desfrutado legitimamente de nosso ser”, poderemos triunfar sobre todas as escravidões, nascidas da “civilização”.

Ser revolucionário é bom; mas para nós, negros, é insuficiente; não devemos ser revolucionários acidentalmente negros, mas propriamente revolucionários negros, e convém dar ênfase tanto ao substantivo como ao qualificativo.

É por isso que para aqueles que desejam ser revolucionários apenas para poder zombar do negro pelo nariz “suficientemente achatado”; é por isso que para aqueles que acreditam em Marx apenas para ultrapassar a linha, dizemos: para a revolução trabalhamos, para tomar posse de nós mesmos, dominando a alta cultura oficial branca, o “aparelho espiritual” do imperialismo conquistador.

Dedicar-nos corajosamente à tarefa cultural, sem medo de cair em um idealismo burguês, o idealismo que tem sido aquele que considera a ideia como filha da Ideia e como a matriz das Ideias, pois como nós a vemos, é uma promessa que não pode senão desabrochar em um bosque de atos.

Sim, trabalhamos em ser negros com a certeza de isso é trabalhar pela revolução, pois isso fará a revolução, que estará em sua força, e aquilo que está em sua força está em seu verdadeiro caráter.

* M. Gradgrind, personagem de Tempos difíceis (1854) de Charles Dickens, é o professor de uma escola cuja única paixão é preencher a cabeça de seus alunos com dados úteis.

** Occide Jeanty (1860-1936) foi um músico, compositor e chefe de Orquesta haitiano. Na França, onde aprofundou sua formação, foi designado para o Corpo Militar de Música do Palácio Nacional, compondo várias marchas militares francesas.  

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