Sobre Problemas e Princípios Estratégicos – Carlos Marighella

Carlos Marighella, janeiro de 1969*

O problema mais importante de revolução brasileira é o de estratégia, e sobre isto, quer dizer, sobre o sentido em que deve ser encaminhada, não há completo acordo entre os revolucionários. Nossa organização adotou uma determinada conceituação estratégica e por ela vem se orientando, mas é evidente que outras organizações têm pontos de vista diversos.

Os conceitos e princípios que expomos aqui dizem respeito, por conseguinte, aquelas questões sobre as quais nossa organização pode emitir uma opinião adquirida da própria experiência.

Para nós a estratégia da revolução brasileira é a guerrilha. A guerrilha, por sua vez, faz parte da guerra revolucionária do povo. Em “Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil” já havíamos estabelecido os princípios que norteiam nossa estratégia, e para os que desejarem conhecê-los basta recorrer ao referido trabalho.

Aqueles princípios já enumerados queremos juntar outros, cujo enunciado ajudará a formar uma ideia da nossa conceituação estratégica sobre a revolução brasileira.

O estudo e confronto desses princípios com a prática dos grupos revolucionários e a experiência pessoal dos militantes poderá contribuir para melhor compreensão não só dos objetivos pretendidos em nossa luta como dos meios fundamentais para alcançarmos. São os seguintes os princípios estratégicos aos quais nos importamos.

1. ESTRATÉGIA DA AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL

a) Em um país como o Brasil, onde existe uma crise política permanente, originária do agravamento da crise crônica de estrutura e do agravamento da crise geral do capitalismo, e onde em consequência, surge um poder militar, nosso princípio estratégico é transformar a crise política permanente numa luta armada do povo contra esse poder militar.

b) O princípio básico da estratégia revolucionária, nas condições de uma crise política permanente, é desencadear tanto cidade como no campo, um volume tal de ações revolucionárias que o inimigo se veja obrigado a transformar a situação política do país em uma situação militar. Então, o descontentamento atingirá todas as camadas e os militares ficarão responsáveis absolutos por todos os desacertos.

c) A principal finalidade da estratégia revolucionária, ao transformar a crise política em luta armada e a situação política em situação militar, é destruir a máquina burocrático-militar e substituí-lo pelo povo armado.

d) Para destruir a máquina burocrático-militar do Estado brasileiro, a estratégia revolucionária parte da premissa de que essa máquina, dentro das condições de crise política permanente que caracteriza a situação do país, tem uma vinculação cada vez mais íntima com os interesses do imperialismo norte-americano. Não se pode destruir tal máquina sem que o golpe principal de nossa estratégia seja desfechado contra o imperialismo norte-americano, o inimigo comum da humanidade e principalmente dos povos latino-americanos, asiáticos e africanos.

e) Em nosso conceito, a estratégia revolucionária é uma estratégia global, quer no sentido de que sua função consiste em contrapor-se à estratégia global do imperialismo, quer no sentido de que a estratégia política e a estratégia militar existem e atuam como uma coisa só e não como coisas separadas.

Por sua vez, a tática funciona subordinada à estratégia, não havendo nenhuma possibilidade do seu emprego fora dessa subordinação.

f) Dado o caráter global de nossa estratégia, ao empreender e parar derrubar o poder militar, devemos ter em vista, como princípio estratégico, transformar radicalmente a estrutura de classes da sociedade brasileira e chegar ao socialismo. Ao mesmo tempo, temos o imperialismo norte-americano como nosso inimigo principal e devemos transformar a luta contra ele numa ação nacional-libertadora e anti-oligárquica.

Assim, em face dos ataques desfechados pelos revolucionários, o poder militar será compelido, por seu lado, a tomar a defesa do imperialismo e da oligarquia brasileira, desmoralizando-se perante o povo.

Por outro lado, com a derrubada do poder militar e o aniquilamento de suas forças armadas, expulsaremos os norte-americanos e destruiremos a oligarquia brasileira, eliminando os obstáculos à marcha para o socialismo.

2. ESTRATÉGIA DA LUTA NA CIDADE E NO CAMPO

a) A cidade é a área de luta complementar e, por isso, toda a luta urbana, provém da frente guerrilheira ou de frente de massas, com o respectivo apoio da rede de sustentação, assume sempre o caráter de luta tática.

b) A luta decisiva se trava a área estratégica quer dizer, na área rural, e não a que se desenvolve na área tática, ou seja, na cidade.

c) Se por qualquer equívoco, a luta na cidade for encaminhada como luta decisiva, a luta estratégica na área rural, onde estão os camponeses, ficará relegada a um plano secundário. Vendo a pouca ou nenhuma participação dos camponeses na luta, a burguesia se aproveitará de tal circunstância para torpedear a revolução e deixá-la a meio caminho. Quer dizer, para manobrar com o proletariado, desprovido do apoio de seu aliado fundamental, o camponês, e tratará de conservar intacta a máquina burocrático-militar do Estado.

d) Só quando as forças armadas da reação já estão destruídas e o aparelho do Estado militar burguês não mais pode agir contra as massas, é que deve ser decretada na cidade a greve geral, em combinação com a luta guerrilheira prestes a ser vitoriosa.

Este princípio, derivado daquele outro que afirma ser a principal finalidade da estratégia revolucionária destruir a máquina burocrático-militar e substituí-la pelo povo armado, é empregado o propósito de evitar que a burguesia manobre na cidade com a greve geral – e lance mão do golpe de Estado para antecede-se aos revolucionários, – cortando-lhes o caminho do poder.

3. ESTRATÉGIA DA GUERRILHA URBANA

a) Sendo a cidade a área de luta complementar, a guerrilha urbana exerce um papel tático em face da guerrilha rural.

Devemos, assim, fazer da guerrilha urbana um instrumento de inquietação, distração e retenção das forças armadas de ditadura, para evitar sua concentração nas operações repressivas contra a guerrilha rural.

b) Ao desencadear a guerrilha urbana, as formas de luta que empregamos não são formas de luta de massas e sim de pequenos grupos armados, dotados de potência de fogo e empenhados na luta contra a ditadura.

 Nosso princípio estratégico é jamais violar os interesses das massas e sempre empregar a violência contra a ditadura.

Sentindo que a potência de fogo dos revolucionários é para combater os seus inimigos, as massas, até então impotentes em face a ditadura, verão a guerrilha urbana com simpatia e lhe darão seu apoio.

c) As formas de luta que caracterizam a guerrilha urbana são as táticas guerrilheiras e ações armadas de todos os tipos, ações de surpresa e emboscadas, expropriações, capturas de armas, atos terroristas revolucionários, sabotagens, ocupações, incursões, punição de agentes norte-americanos e policiais torturadores, além de comícios relâmpagos, de distribuição de volantes e pinturas murais por grupos armados e outras.

Ao desencadear a guerrilha urbana, devemos partir da premissa de que tais formas de luta são empregadas nas condições do cerco estratégico do inimigo na cidade e que não podemos decidir com eles na luta final.

d) Tanto a infraestrutura de guerrilha urbana como da guerrilha rural tem pontos comuns obrigatórios, tais como adestramento e aperfeiçoamento do guerrilheiro, aumento de sua resistência física, defesa pessoal, utilização da capacidade profissional, aparelhagem técnica para artefatos caseiros e outros fins, criação e aumento da potência de fogo, capacitação para seu manejo, rede de informações, meios de comunicação e transporte, recursos de medicina e primeiro socorros.

Nosso princípio é contar sempre tanto com uma como com outra infraestrutura, para não ficarmos reduzidos somente à guerrilha urbana ou à guerrilha rural, e podermos fazer corretamente a combinação das duas.

e) Os revolucionários que travam a luta de guerrilha dão uma enorme importância ao movimento de massas na área urbana e suas formas de luta, tais como ações reivindicatórias, greves, passeatas, protestos, boicotes e outras.

Nosso princípio estratégico em face do movimento de massas urbano é dele participar com o objetivo de criar uma infraestrutura da luta armada no meio dos operários, dos estudantes e de outras forças a fim de passar ao emprego da guerrilha urbana, desencadeando as operações e táticas guerrilheiras com grupos de massa armados.

4. ESTRATÉGIA DA GUERRILHA RURAL

a) As lutas dos camponeses por suas reivindicações contra os latifundiários e pela organização dos sindicatos rurais poderão degenerar em choques armados, e nesse sentido são positivas. Mas, sem a potência de fogo, os camponeses serão esmagados pela força de reação.

É improvável que das lutas reivindicatórias surjam guerrilhas rurais de sentido estratégico. Os camponeses brasileiros têm consciência política reduzida e a tradição de lutas não vai além do misticismo ou do banditismo, sendo ainda recente e limitada sua a experiência de luta de classes, sob a direção do proletariado.

Nas atuais condições do país, dominado pela ditadura, a luta estratégica na área rural surgirá e se desenvolverá como fruto da infraestrutura guerrilheira montada no meio dos camponeses. Vendo surgir no meio deles uma potência de fogo que combate os latifundiários e não viola os interesses da massa camponesa, os camponeses apoiarão a guerrilha e ingressarão nela.

b) O principal princípio estratégico de luta guerrilheira é que não pode ter consequência nem caráter decisivo na guerra revolucionária, se não for estrutura e consolidada a aliança de operários e camponeses, a qual devem se unir os estudantes.

Com tal aliança, dotada de crescente potência de fogo, a guerrilha disporá de alicerces firmes e irá adiante. A aliança armada do proletariado com os camponeses e a classe média urbana é a chave da vitória.

c) A guerrilha rural tem caráter decisivo porque, além de dotada de extrema mobilidade na área continental do país e além de levar à formação do exército revolucionário de libertação nacional é aquela que pode ser estruturada a partir de um embrião constituído pela aliança armada de operários e camponeses, com os estudantes. Na guerrilha urbana é impossível incorporar os camponeses, sem os quais a revolução não irá até as últimas consequências.

d) Em nenhum momento a guerrilha brasileira deve defender áreas, territórios, regiões ou qualquer base de operação fixa. Se a agirmos assim, permitiremos ao inimigo concentrar suas forças em campanhas de cerco e aniquilamento contra alvos conhecidos e vulneráveis.

e) A guerrilha rural brasileira deve estar sempre em movimento. Mesmo a guerrilha urbana deve ser extremamente móvel e jamais fará qualquer ocupação sem organizar antes meticulosamente a retirada. Em qualquer circunstância, no Brasil, a guerra revolucionária é uma guerra de movimento.

f) Fazendo parte da guerra revolucionária, a guerrilha nela desempenha o papel estratégico principal, tendo como finalidade política constituir na formação do exército nacional de libertação popular e conquistar o poder. Na luta revolucionária devemos evitar a distorção dessa finalidade política, impedindo que a guerrilha urbana ou rural se transforme em instrumento do banditismo ou empreguemos seus métodos.

5. ESTRATÉGIA DE ORGANIZAÇÃO

a) A extensão continental do país, a diversidade da importância estratégica de suas áreas, além da desigualdade do movimento revolucionário e outros fatores determinam em mais de um lugar a existência ou aparecimento de centros revolucionários, que tem como cúpula uma coordenação regional. Tais centros revolucionários se dedicam à implantação de uma infraestrutura guerrilheira, desencadeiam a luta revolucionária e tem liberdade de ação tática e política em plano regional.

b) A direção estratégica e tática global de nossa organização, ou seja, a direção política e militar unificada, não surge de uma vez desde o primeiro momento. Ela se forma através de um processo permanente, em cujo desenvolvimento a luta armada assume a forma fundamental de guerrilha, indo do campo estratégico ao tático e do tático ao estratégico, até afirmar-se um conjunto de homens e mulheres identificados com a ação revolucionária e capazes de levá-la até as últimas consequências.

c) A unidade revolucionária de nossa organização é em torno dos princípios estratégicos, táticos e orgânicos que adotamos e não em torno de nomes ou pessoas.

É esta identidade de concepções ideológicas, teóricas e práticas que faz com que, em vários pontos do país, revolucionários desligados uns dos outros acabam fazendo coisas que os identificam como pertencendo à mesma organização.

* Este é o primeiro texto em que a organização fundada por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira assina com o nome de Ação Libertadora Nacional, e portanto a data de apresentação da ALN como tal. O texto circulou em duas versões, uma delas incompleta, a versão completa do documento foi a que recuperamos para esta publicação. Todas as 5 fontes encontradas no Arquivo Brasil Nunca Mais foram usadas para fins de comparação e fidelidade histórica (BNM nº 12; 95; 100; 224; 392).

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