Clóvis Moura, quilombagem e luta de classes

Artigo publicado como apresentação do livro Os quilombos e a rebelião negra e da Coleção Quilombagem.

Entendendo os quilombos como unidade básica de resistência e fenômeno contínuo durante os quase quatro séculos de escravismo no Brasil, que se articulava às diversas formas de luta contra o cativeiro, desde as insurreições nas cidades até o bandoleirismo, passando pelas reivindicações parciais e a ressignificação de elementos culturais, Clóvis Moura definiu o conceito de quilombagem como o conjunto das diferentes manifestações do protesto negro, cujo centro de rebeldia foram os quilombos. Partindo de uma interpretação marxista da escravidão como uma relação de produção que opunha escravos e senhores, povo negro e elite branca, enquanto classes antagônicas, a quilombagem como expressão dessa luta de classes que constituiu nosso país é um conceito-chave no pensamento do nosso autor. 

A quilombagem é concebida então, a partir do “marxismo negro” de Moura, como um movimento intermitente que se reestruturava e se reproduzia historicamente, em processo permanente de negação radical da escravidão, que existiu durante o longo período escravagista e por todo o território brasileiro, desgastou o sistema de dominação e afundou suas bases econômicas, sociais e político-militares. Compreender a formação social brasileira e interpretar corretamente nossa realidade histórica é uma tarefa fundamental para a qual os estudos da obra do piauiense Clóvis Steiger de Assis Moura é indispensável.

Nascido em 10 de julho de 1925, em Amarante, pequeno município no Piauí rodeado pelos rios Canindé, Mulato e Parnaíba na divisa com o Maranhão, Clóvis era o irmão do meio e único mulato de uma família de classe média e miscigenada, filho de mãe branca, Elvira Steiger, e pai negro, Francisco de Assis Moura. Seu bisavô pelo lado materno, Ferdinando vön Steiger-Münssingen, cidadão suíço e que teria sido um barão na Europa, se tornou fazendeiro no Brasil e senhor de escravos em Ilhéus, com influência política na região cacaueira da Bahia. Pelo lado paterno, Abidon Moura, avô de Clóvis e comerciante mulato vindo do Maranhão, era filho da negra Carlota com um senhor de engenho na zona da mata pernambucana, de quem teria sido escrava. Ainda criança, em 1935, Clóvis se muda com a família para Natal (RN), mesmo ano em que a capital norte-rio-grandense seria palco do Levante Comunista dirigido pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) com o apoio do Partido Comunista do Brasil (PCB). Estudando em uma escola de padres maristas, o Colégio Diocesano Santo Antônio, onde escutava pregações contra malvados comunistas e anarquistas que lutavam contra as falanges fascistas de Francisco Franco e queimavam igrejas e símbolos católicos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39), o jovem Clóvis Moura participou do Grêmio Cívico-Literário 12 de Outubro e dirigiu o pequeno jornal estudantil, O Potiguar, onde publicou seus primeiros artigos ainda com 14 anos de idade.

Em 1941, a família Steiger-Moura se transfere para Salvador, mesmo ano em que o irmão mais velho de Clóvis, Carlitos, falece aos 17 anos, vítima de uma tuberculose. Em sua curta estada na capital baiana, Moura faz amizades com jovens intelectuais soteropolitanos e frequenta reuniões acadêmicas onde se discute sobre política e literatura, fazendo parte de um pequeno círculo inspirado pela chamada Academia dos Rebeldes, grupo do qual participaram destacados intelectuais comunistas como Jorge Amado e Edison Carneiro. Em 1942, por motivos de trabalho do seu pai, funcionário público de carreira e responsável pelo fisco, Clóvis se muda com a família para Juazeiro, na região do Vale do São Francisco e divisa da Bahia com Pernambuco, porém mantém sua rede de contatos formada na capital. Através dessas amizades é convidado para participar da Associação Brasileira de Escritores (ABDE) e começa a escrever artigos e poemas para a revista Caderno da Bahia e para o jornal comunista O Momento, editado pelo PCB baiano, ao qual se filia em 1945.      

Em Juazeiro, Clóvis inicia o desenvolvimento de uma militância político-cultural e funda o jornal O Jacuba, enquanto estuda a teoria marxista e começa a desenvolver suas pesquisas sobre a questão negra no Brasil, trocando correspondências com intelectuais como Arthur Ramos, Caio Prado Júnior, Astrogildo Pereira, Edison Carneiro e outros.        

Com o fim do Estado Novo em 1945, o PCB volta a legalidade e sob a liderança de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, tem um avanço considerável em sua popularidade, participando das eleições daquele ano e conseguindo eleger uma importante bancada de deputados, porém, a vida legal do partido logo seria interrompida com a ascensão ao governo do marechal fascista Eurico Gaspar Dutra. Em 1947, o registro do PCB, e logo depois, os mandatos pecebistas são cassados. Com o partido na ilegalidade, as candidaturas comunistas migram para legendas legais como o Partido Socialista Brasileiro (PSB), agremiação proveniente da Esquerda Democrática da UDN que havia sido recém-fundada, e da qual João Mangabeira, tio de Clóvis, era um dos líderes. Moura se candidata ao legislativo estadual pelo PSB na Bahia, mas tem sua candidatura cassada em um episódio nunca muito bem esclarecido. Nesse mesmo período colabora com a revista Literatura, dirigida por Astrojildo Pereira e que contava em seu conselho editorial com Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Orígenes Lessa e outros importantes intelectuais.

Em 1950, Clóvis participa como delegado do III Congresso Brasileiro de Escritores em Salvador e nesse mesmo ano, então com 25 anos, inicia uma nova etapa em sua trajetória, mudando-se para São Paulo, onde se integra à Frente Cultural do PCB, organismo do partido que reunia intelectuais como Caio Prado Júnior e Villanova Artigas, começando também sua carreira como jornalista profissional. O PCB nesse momento voltava a assumir uma linha revolucionária com o Manifesto de Agosto de 1950, assinado por Prestes em nome do Comitê Central, onde se afirma que “diante da violência dos dominadores, a violência das massas é inevitável e necessária, é um direito sagrado e o dever ineludível de todos os patriotas. É o caminho da luta e da ação, o caminho da revolução”. O partido vai manter uma forte oposição à primeira fase do segundo governo de Getúlio Vargas, organizando históricas greves operárias e construindo o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), além da defesa aberta da luta armada das massas e do impulsionamento das primeiras Ligas Camponesas. É nesse período que o PCB tem papel preponderante nas revoltas camponesas em Porecatu, no norte do Paraná, em Capinópolis, no Triângulo Mineiro, e na região de Trombas e Formoso, em Goiás, onde sob a liderança de José Porfírio chegou a se formar um “território livre” com o povo em armas.

A família Moura também se transfere para São Paulo e segue com Clóvis para o interior do estado, ao mesmo tempo em que o marxista piauiense consolida sua carreira como “homem de imprensa” e tem grande circulação nos meios culturais e intelectuais paulistas. Em 1952, assume a condição de redator no jornal Última Hora, veículo da chamada “grande imprensa”, enquanto também é secretário de redação da Revista Fundamentos e redator-chefe do jornal Notícias de Hoje, ambas iniciativas jornalísticas ligadas à intelectuais e jornalistas do PCB, além de fundar com sua irmã mais nova, Merita Moura, a Revista Flama, em Araraquara. Nesse período, Moura iniciará uma forte relação de amizade e colaboração com Pedro Pomar (1913-1976), que também era jornalista no Notícias de Hoje.    

Como intelectual-jornalista, Clóvis Moura amplia sua produção para além da poesia e da crítica literária, diversificando seu campo de estudos e aprofundando o processo iniciado ainda na Bahia com suas primeiras pesquisas em história e sociologia sobre a questão negra no Brasil. Passando a colaborar com artigos também na Revista Brasiliense, cujo círculo intelectual pecebista ligado a Caio Padro Jr. e a Editora Brasiliense tensiona por uma renovação acadêmica a partir da teoria marxista, e concomitantemente, mantém uma relação crítica com a direção e algumas posições do PCB. O círculo caiopradiano exerce uma importante influência inicial sobre os estudos de Clóvis, que igualmente rejeita a tese sobre o caráter feudal da sociedade escravista brasileira, naquele momento afirmada pelo Partidão. Em 1952, a pesquisa para o livro Rebeliões da Senzala é concluída, rejeitando as críticas de Caio Prado Júnior, mas incentivado por Edison Carneiro, Moura que inicialmente tenta publicar o livro pela Brasiliense, conseguirá sua impressão por um selo editorial próprio, as Edições Zumbi, apenas em 1959, mantendo-se profissionalmente como redator nos jornais Diário da Noite e Diário de São Paulo. Realizando uma crítica dupla, tanto ao culturalismo antropológico de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e outros, quanto ao marxismo acadêmico e caiopradiano, que insistiam nas teses da passividade do negro ou na coisificação do escravo, Clóvis propõe, a partir do estudo sistemático da práxis negra, uma leitura da realidade brasileira em que o escravizado é um sujeito político, entendendo a contradição entre elite branca e povo negro como um conflito de classes definidor da formação social brasileira e do ethos nacional. A resistência negra em seus vários aspectos – políticos, econômicos e culturais – é interpretada como um processo histórico protagonizado pelo próprio escravizado, personagem principal das lutas que desgastaram e fizeram ruir as bases do escravismo como modo de produção.          

Mais tarde, Clóvis se aproximaria intelectualmente de Nelson Werneck Sodré (1911-1999), militar comunista e grande estudioso da realidade brasileira, cuja crítica e diálogo serviram para a segunda edição revisada de Rebeliões, e que estava também ligado ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que reunia intelectuais como Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira e Ignácio Rangel. Após publicar os livros de poesia O espantalho na feira (1961) e Argila da Memória (1962), Moura inicia o processo de revisão para a segunda edição aumentada do seu clássico livro, consegue publicar Âncora no Planalto, também de poemas, e seu ensaio de crítica literária Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha, em 1964, um pouco antes do golpe de Estado, fato que atrasaria a nova edição de Rebeliões para 1972, quando foi publicada com intermédio e prefácio de Werneck Sodré.  

Clóvis Moura e sua filha Soraya, em registro de 1963.

Desde sua chegada em São Paulo e o início do desenvolvimento mais sistemático de sua atividade intelectual-jornalística, Moura se relaciona cada vez mais com os círculos comunistas, sendo fichado pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) por conta da publicação da Revista Flama, ainda em 1952. Envolvo na luta interna e no intenso debate que se abateu sobre o PCB a partir do famoso relatório de Nikita Kruschev contra Josef Stalin apresentado ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956, Clóvis que vinha radicalizando sua posição ao se afastar da influência do grupo de Caio Padro, toma partido pelo setor liderado por Mauricio Grabois e Pedro Pomar, que critica o revisionismo alinhado a nova direção do PC soviético e se rebela contra a maioria da direção prestista do PCB. Aprovando uma nova linha baseada na tese da “transição pacífica ao socialismo”, o setor majoritário da direção do partido torna pública a chamada Declaração de Março de 1958 e consolida seu poder no V Congresso de 1960, que se seguirá com a mudança de nome para Partido Comunista Brasileiro, para fins de registro eleitoral do PCB, além de novos estatutos e programa onde não constam a definição ideológica como marxista-leninista ou referências ao internacionalismo proletário e ao comunismo como objetivo final.

A luta interna ocorre em meio à crise política desatada pela renúncia de Jânio Quadros em 1961, com seu vice João Goulart sendo vetado de tomar posse pela cúpula militar, mas com o golpismo acabando por vencido pela “Rede da Legalidade”, liderada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, que garantiu a posse de Jango. A maioria revisionista da direção do PCB decide pela expulsão da minoria do Comitê Central e dos signatários da chamada “Carta dos 100” (Em defesa do Partido). Esse mesmo setor, vai liderar a nova formação do Partido Comunista do Brasil em 1962, que usando a sigla PCdoB e reivindicando a continuidade do partido fundado em 1922, publicará o manifesto intitulado “Aos comunistas e amigos do Partido”, e ao qual Clóvis Moura se ligará politicamente.      

Com o golpe militar-fascista de 1964, apoiado diretamente pelo imperialismo norte-americano, o PCdoB que faz uma defesa do caminho revolucionário e da luta armada desde a sua fundação, assume a linha maoísta da guerra popular prolongada e uma estratégia guerrilheira exclusivamente a partir do campo, sintetizada depois no documento “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil”, de 1969. Enviando militantes para a preparação militar na China socialista e diferindo seu acionar político de outras organizações armadas como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que à despeito do reconhecimento do campo como área estratégica para a luta revolucionária e da guerrilha urbana como meio tático de viabilização, desenvolveram suas ações armadas principalmente nas cidades, o PCdoB, ainda a partir de 1967, passou a enviar combatentes para a região do Rio Araguaia, principalmente na área do Bico do Papagaio no norte de Goiás (hoje Tocantins) e sul do Pará. As Forças Guerrilheiras do Araguaia (FOGUERA) comandadas pelo veterano Maurício Grabois e divididas nos Destacamentos A, B e C ao longo da Transamazônica e da serra das Andorinhas, respondiam ao objetivo estratégico da formação de um exército guerrilheiro que avançaria a partir de colunas de combatentes para cercar as cidades e foram impulsionadas ao mesmo tempo que a União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP), formada por diversos núcleos camponeses nos lugarejos da região. Clóvis Moura, que não chega a ser um quadro militar ou um dirigente do partido, como seu amigo Pedro Pomar, atua no apoio clandestino aos guerrilheiros do Araguaia e o pensamento de Mao Tsé-Tung, que serve como guia para o PCdoB, também influi em sua obra tanto no que diz respeito à centralidade da questão agrária, como na leitura maoísta sobre a materialidade da raça e no entendimento da questão racial como uma questão de classe.

Em 1972, o trabalho clandestino de mobilização popular e preparação da luta armada dos comunistas na região do Araguaia é descoberto pela repressão, que já havia conseguido destroçar boa parte das organizações armadas de guerrilha urbana. São organizadas grandes operações militares para a destruição das Forças Guerrilheiras do Araguaia, que apesar de resistir heroicamente às primeiras investidas da repressão, entre 1972 e 1974 é completamente exterminada. Com uma brutal repressão sobre camponeses e combatentes, além do comandante Maurício Grabois, são mortos dezenas de guerrilheiros como Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, Helenira “Preta” Resende, André Grabois e outras dezenas de filhos e filhas do povo que lutavam contra a ditadura militar fascista. 

Após os massacres perpetrados pela repressão no Araguaia, as diversas operações da ditadura que envolveram diretamente cerca de 7.200 militares contra menos de 80 guerrilheiros, e a própria existência da guerrilha no Bico do Papagaio, são abafadas pela censura do regime. O PCdoB, que sofreu rachas anteriores com a Ala Vermelha (PCdoB-AV) e PCR (Partido Comunista Revolucionário), mas que havia incorporando um importante setor da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), é debilitado também com assassinatos de dirigentes nas cidades e se abre uma luta interna acerca do balanço da derrota. O Comitê Central do partido se dividiu sobre o documento “Gloriosa jornada de luta” e enquanto Pedro Pomar e outros, como Ângelo Arroyo, um dos poucos sobreviventes Araguaia, fazem a defesa da continuidade da luta armada contra a ditadura e uma dura autocrítica para a correção dos erros, outro setor ligado a Elza Monnerat e João Amazonas, que já se encontrava refugiado na Albânia socialista, defende a revisão das teses da guerra popular e da luta armada, mas o debate é abruptamente interrompido pela Chacina da Lapa. Após infiltração e delações de traidores, em uma operação do DOI-CODI, militares invadem a casa localizada no bairro da Lapa, em São Paulo, no dia 16 de dezembro de 1976, onde se reunia o Comitê Central do partido. Pomar, Arroyo e João Batista Drummond são assassinados e os demais membros da direção são presos. Amazonas toma as rédeas do partido e reorganiza o PCdoB do exterior, realizando a chamada “VII Conferência Nacional” em 1979, na Albânia.

Comprometido com o trabalho clandestino de apoio ao PCdoB realizado entre o início da Guerrilha do Araguaia até a Chacina da Lapa, período marcado por sua amizade e afinidade política com Pedro Pomar, Clóvis Moura seria acusado de ligações com o jornal A Classe Operária e fichado pelo DEOPS de São Paulo, que monitorava suas atividades literárias e o convocou para depor em 1970, não tendo comprovado seu envolvimento com a esquerda armada. A despeito da brutal repressão do regime, nosso autor mantém sua vida política legal e algum nível de atuação institucional, segue se dedicando principalmente ao trabalho intelectual-jornalístico como secretário de redação e crítico literário no Correio Paulistano, até 1969, quando trabalha também nos jornais O Momento e O Escritor e torna-se sócio honorário da Academia Piauiense de Letras (APL), nesse mesmo ano.

Em 1972, após haver conseguido publicar a segunda edição ampliada de Rebeliões da Senzala, exerce o cargo de diretor de redação do jornal A Folha de São Carlos, onde publica crônicas sob o heterônimo “Sparkenbroke”. A partir de 1973, inicia intensos contatos com o CEAO, o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, participando por intermédio deste, do Colóquio sobre Negritude na América Latina realizado em 1974, em Dacar, no Senegal, então sob o governo do poeta e intelectual Léopold Senghor. Ao voltar da África, Moura abre uma polêmica com Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e do Instituto Nacional do Negro, criticando o que chamou de “aristocratização da negritude” em oposição ao projeto socialista de libertação dos povos colonizados e o protagonismo das “massas negras” que defendia. Em julho de 1975, funda o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA) com o objetivo de estudar a história afro-brasileira, mantém relações institucionais com a UNESCO e conta com a colaboração de intelectuais como Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Jacob Gorender e outros. Nesse mesmo período realiza conferências nos EUA e também mantém uma interessante interlocução com Décio Freitas, autor de Palmares – A guerra dos escravos,e quemfaz o intermédio para a edição em espanhol do livro Sociologia de la práxis, publicado no México em 1976, ano em que também publica O preconceito de cor na literatura de cordel.

Até 1979, Clóvis, que segue aprofundando suas pesquisas e desenvolvendo a produção intelectual que ficaria conhecida como sociologia da práxis negra, publica também dezenas de artigos em diversos meios. Em 1977, é editado o livro O negro: de bom escravo a mau cidadão? e no ano seguinte A Sociologia posta em questão, volta a publicar poesia com Manequins Corcundas, em 1979. No contexto da luta pela anistia dos presos políticos, exilados e banidos pela ditadura militar publica Sacco e Vanzetti: o protesto brasileiro pela Brasil Debates e organiza a publicação do documento histórico Diário da Guerrilha do Araguaia, pela Alfa-Ômega, ambas ligadas ao PCdoB, que nesse momento apesar de uma importante atuação no Movimento Contra a Carestia e apoio às massivas greves operárias que ocorriam, passava por mais um processo de luta interna que envolvia o debate e a publicização das questões relacionas a luta armada no Araguaia, após a reorganização do partido sob as rédeas de João Amazonas. Clóvis que era redator do jornal Movimento e ligado ao setor do PCdoB que se organizava em torno da Editora Brasil Debates e do jornal, se relaciona com o grupo que ficou conhecido como Dissidência do PCdoB e que ao sair do partido inicia o processo de construção do que mais tarde seria o clandestino Partido Revolucionário Comunista (PRC), depois diluído no PT. Clóvis, embora prossiga em sua filiação ideológica marxista, se distancia da militância partidária e passa a apoiar o processo de formação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, o MNUCDR, fundado em julho de 1978 no bojo da luta contra os assassinatos de trabalhadores negros e reunindo diversos setores da luta antirracista no Brasil, e que em 1979, passaria a se chamar apenas MNU.

Na década de 1980, Clóvis Moura se desliga do trabalho jornalístico profissional e passa a se dedicar ao trabalho como historiador e acadêmico, simultaneamente ao processo de “abertura política” e definhamento da ditadura militar publica a terceira edição Rebeliões da Senzala, em 1981, pela Editora Ciências Humanas, e no ano seguinte, é agraciado com o título de doutor com notório saber concedido pela Universidade de São Paulo (USP). Nesse período também publica por editoras como Brasiliense, Ática e Global uma sequência de livros paradidáticos como Os quilombos e a rebelião negra (1981), Brasil: raízes do protesto negro (1983), Quilombos: resistência ao escravismo (1987), Sociologia do negro brasileiro (1988) e História do negro brasileiro (1989), que são bem aceitos pelo público, contam com diversas edições e circulação nacional, consagrando nosso autor como “historiador dos quilombos”, que à despeito de sua trajetória de embates com a academia e pesquisador autodidata firma suas relações com universidades como UNICAMP e UFPI, além de fundações de apoio à pesquisa. Mantendo-se como um simpatizante do PCdoB, apoia em 1988 a fundação da União de Negros pela Igualdade (Unegro), organização colateral do partido. Os livros Imprensa Negra (1984), O Negro no Mercado de Trabalho (1986) e o poemário História de João da Silva (1986), também desse período, além das dezenas de artigos e a quarta e definitiva edição de Rebeliões da Senzala (1988), marcam uma década de intensa escrita e grande dedicação à produção historiográfica.

Nos anos 1990, um Clóvis Moura já idoso, mas incansável em sua militância intelectual e um apoiador da luta sem-terra, publica As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira (1990), Dialética Radical do Brasil Negro, pela Editora Anita Garibaldi em 1994, e novamente volta à poesia com Flauta de Argila (1995), além de A República de Palmares e o seu significado sócio-político (1995) e Bahia de Todos os Homens, última coletânea de poemas que publica em 1997. Nos últimos anos de sua vida ainda presta contribuições relevantes com Sociologia política da guerra camponesa de Canudos: da destruição do Belo Monte ao aparecimento do MST, pulicado pela Editora Expressão Popular em 2000, organiza o livro Os quilombos na dinâmica social do Brasil (2001), que é seguido de A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro (2003) e conclui seu Dicionário da Escravidão no Brasil, publicado postumamente em 2004, assim como, Duelos com o Infinito, que reúne seus poemas não publicados em vida. Clóvis Moura falece aos 78 anos, em 24 de dezembro de 2003, na cidade de São Paulo, tendo suas cinzas jogadas ao rio de sua infância, o Parnaíba, e deixando um legado fundamental para pensar e entender o Brasil.

Nosso autor, que se consagrou como um dos mais importantes intelectuais brasileiros no século XX publicando quase 30 livros, manteve até o fim suas convicções socialistas e a coerência com a luta antirracista que transformou em ofício e compromisso de vida. Moura, que a partir da sistematização pioneira da práxis negra contra o sistema escravagista, definido em seu primeiro período como escravismo pleno, e depois, como escravismo tardio na segunda metade do século XIX, decifrou a formação do capitalismo racial brasileiro, onde as relações de produção baseadas na escravidão se conectam em linha histórica com a modernização conservadora do pós-abolição, as políticas eugenistas de branqueamento do país, a permanência do latifúndio e o regime de superexploração do trabalho. Clóvis desnudou os problemas centrais de um Brasil desigual e brutal contra as maiorias, pensou nossa realidade sempre sob o prisma de um “marxismo negro”, com uma produção intelectual genuína que não se furtou às polêmicas e nunca fugiu da necessária batalha de ideias. A defesa de um processo revolucionário de longo prazo a partir da periferia do capitalismo, com o protagonismo dos povos colonizados, é marca indelével da trajetória de Clóvis Moura, pensador fundamental para a transformação radical e necessária do nosso país.

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